Rosinha de Valença
Texto
Maria Rosa Canelas Valença (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 1941 – Idem, 2004). Violonista, compositora, arranjadora, produtora e cantora. Interessa-se pelo violão na infância, incentivada pelo irmão Roberto. Abandona os estudos para se dedicar à música em 1960, e decide partir para o Rio de Janeiro em 1963. Lá, conhece Sérgio Porto (1923-1968), que lhe consegue shows na boate Au Bon Gourmet e apresenta-lhe o violonista Baden Powell (1937-2000) e o produtor Aloysio de Oliveira (1914-1995). Este contrata-a para gravar seu primeiro disco Apresentando Rosinha de Valença (1964). Apresenta-se ainda no Bottle’s Bar – Beco das Garrafas, em Copacabana, Rio de Janeiro.
Em 1965, é contratada pelo programa O Fino da Bossa, apresentado por Jair Rodrigues (1939-2014) e Elis Regina (1945-1982) na Record, onde toca ao lado de Baden Powell. No fim desse ano, integra o conjunto do pianista Sergio Mendes (1941) em tournée de oito meses pelos Estados Unidos e participa de gravações com o grupo. No final de 1965, outra tournée leva‑a a apresentar-se em 24 países europeus como solista de um grupo de música brasileira. Apresenta-se ainda no Japão, e, em seguida, viaja a Paris com bolsa de estudos concedida pela Embaixada da França. Em 1966, acompanha o grupo formado por Chico Batera (1943) no show Folklore e Bossa Nova do Brasil, na Alemanha, registrado em disco pela Basf. Também em 1966, lança Rosinha de Valença ao Vivo, gravado em estúdio com os músicos Paulo Moura (1933-2010) no sax e clarinete, Edison Machado (1934-1990) na bateria, Osmar Milito (1941) no piano e a participação de seu irmão Roberto Canelas, ao violão, em duas faixas. De volta ao país, torna‑se violonista do espetáculo Comigo me Desavim, de Maria Bethânia (1967). Em 1968, parte para uma nova série de concertos na Rússia, em Israel, Suíça, Itália, Portugal e outros países do sul da África. Na África, forma um conjunto com o organista inglês Duncan Mackay (1950) e grava o álbum Rosinha de Valença Apresenta Ipanema Beat (1970).
Em 1971, torna‑se parceira do sambista Martinho da Vila (1938), com quem trabalha por oito anos e grava 4 discos. Atua ainda como produtora, diretora musical e compositora para artistas como Marília Medalha (1944), Wanderléa (1946), Ney Matogrosso (1941), Maria Bethânia e Leci Brandão (1944). Em 1974, organiza uma banda com participação de artistas como o pianista João Donato (1934), o flautista Copinha (1910-1984) e as cantoras Dona Ivone Lara (1921) e Miúcha (1937), resultando no LP Rosinha de Valença e Banda ao Vivo (1975). Apresenta uma série de programas intitulado Eles Escolheram a Música na rádio MEC, entrevistando músicos como Gal Costa (1945) e Caetano Veloso (1942). Deixa um legado de nove álbuns solos, e discos em parcerias, como Sivuca e Rosinha de Valença ao Vivo (1977), e Violões em Dois Estilos (1980), com Waltel Blanco (1929). As canções que compõe são interpretadas por cantores como Ney Matogrosso, Zezé Motta (1944), Chico Buarque (1944), Norma Bengell (1935-2013), Wanderléa e Caetano Veloso.
Análise
Sérgio Porto, apresentando Rosinha de Valença em seu primeiro LP, relata que não podia elogiá-la, por ser padrinho da moça. "Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença, fui eu quem a levou, pela primeira vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme. Escolhi nesse dia o seu nome de Rosinha de Valença porque achei que ela toca por uma cidade inteira”. Devido à maestria técnica no instrumento e criatividade na criação de arranjos elaborados e virtuoses, torna-se um dos ícones da bossa nova. Integra um seleto grupo de instrumentistas que representam esse movimento e a música instrumental brasileira, nacional e internacionalmente.
A sonoridade, rítmica e vigorosa, é marca registrada da violonista. Valença constrói sua linguagem em base rítmica que toma partido de silêncios e de elementos surpresa para acompanhar melodias ou improvisar. Mesmo em momentos mais melódicos, o ritmo é preponderante. Essas características fazem com que, ao encontrar Baden Powell, o trabalho dos dois direcione a linguagem instrumental da bossa nova no país. No exterior, Rosinha de Valença segue um fluxo migratório de músicos brasileiros que, com o sucesso da MPB nos Estados Unidos e uma política de exportação da cultura nacional, se tornam “fenômenos mundiais nos anos 1960 e 1970 [competindo] nas paradas com os Beatles e com o rock”1. De fato, como revela a musicóloga francesa Anaïs Fléchet, nos anos 1960, o número de gravações de temas brasileiros aumenta: “às interpretações de jazzmen sempre mais numerosas se adicionam então os discos de músicos brasileiros instalados nos Estados Unidos”2.
Esse contexto, acrescido da queda pelo interesse da bossa nova no Brasil com a aparição de outras correntes musicais, sobretudo a jovem guarda, faz com que o sucesso no Brasil não acompanhe as conquistas fora do país.
No exterior, seu repertório, antes focado na música popular brasileira, expande-se e integra outros estilos, como testemunham os discos Bud Shank and his Brazilian Friends (com Rosinha de Valença e João Donato, 1965), muito jazzístico, e Rosinha de Valença apresenta Ipanema Beat (1970), que mescla jazz, samba e pop.
Ao regressar ao Brasil em 1971, engaja-se na valorização da música instrumental brasileira e trabalha com diversas tendências, como violonista e produtora musical. Suas parcerias com artistas tão variados como o sambista Martinho da Vila, Wanderléa (uma das maiores expoentes da jovem guarda) ou Maria Bethânia, atestam a liberdade estética da artista. Wanderléa, por exemplo, sob a direção de Rosinha de Valença e a influência do arranjador Egberto Gismonti (1947), muda sua imagem com o lançamento de Feito Gente (1975), misturando jazz, funk, blues e samba. A violonista cria, assim, uma bagagem musical com bossa nova, samba, jazz, pop, blues, funk, choro e a música caipira de sua infância – gêneros musicais que servem de inspiração para o álbum que lhe é dedicado postumamente, Namorando a Rosa (2004).
Como compositora, há predileção por temas tipicamente brasileiros, sejam eles caipiras (“Interior”, “Usina de Prata”, “Os Grilos São Astros”), de raiz popular (“Benzedeiras Guardiãs”), indígenas (“Cabocla Jurema” e “Uirapuru”), afro‑brasileiros (“Cana Caiana”) etc.
Sua carreira também é importante pela inserção da mulher no campo criativo e instrumental da música popular brasileira. Segundo o relato da própria musicista:
Eu era uma mulher que precisava de sorte, porque era a única contra um número enorme de violonistas, um bando de homens que não estava a fim de me ceder um lugar. Precisava quase arrancar as cordas do violão para que as pessoas compreendessem que eu sabia tocar. Quantas vezes fazia acordes fortíssimos para acordar as pessoas, para que calassem um pouco a boca e prestassem atenção: quando um artista toca ele tem que ser ouvido. Não importa que esteja de saia ou de cuecas3.
Mesmo quando se faz ouvir, são vários os que, para reconhecer o seu valor, equiparam-na a um homem, como faz violonista Turíbio Santos (1943) quando a denomina o “Baden Powell de saias”4, ou colocam-na numa categoria à parte, como faz Martinho da Vila ao declarar que “não existiu até hoje no Brasil nenhuma mulher violonista que tocou melhor do que ela”5.
Essas barreiras, acentuadas à época, fazem com que Rosinha de Valença represente, ao lado de outras compositoras de sua época, como Jovelina Pérola Negra (1944-1998), Dona Ivone Lara e Sueli Costa (1943), uma parcela ínfima de mulheres no mercado musical, como Chiquinha Gonzaga (1847-1935) ou Helza Cameu (1903-1995). Assim, é compreensível que só se aventure a mostrar um disco autoral (com 60% de composições suas) no álbum Cheiro de Mato (1976), que demonstra a importância de mulheres criadoras, e não apenas intérprete, como exigem a tradição e a moral da época.
Por essas razões, sua consolidação no cenário instrumental prova a maestria no instrumento e a força criativa como compositora e improvisadora. O instrumentista Hermeto Paschoal (1936) resume o problema: “Pelos músicos da minha geração, a mulher era desprezada pelos homens quando era vista tocando ou dirigindo carro. Quando o pessoal via que Rosinha esquentava tudo, acabava esse papo boboca”6.
Dos discos que deixa, Sivuca e Rosinha de Valença ao Vivo demonstra sua exímia técnica de improviso, como se pode ouvir na versão jazzística de “Asa Branca”. O relato de Sivuca, que a define como “uma das insubstituíveis da nossa música brasileira”7, faz jus à memória da violonista, compositora, arranjadora e produtora.
Notas
1. MACHADO Cristina Gomes. Zimbo Trio e o Fino da Bossa: uma perspectiva histórica e sua repercussão na moderna música popular brasileira. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2008. p. 155-156.
2. FLÉCHET, Anaïs. La Bossa Nova, les États‑Unis et la France. Bulletin de l'Institut Pierre Renouvin, Paris, n. 24, 2006. [s.p.].
3. BARAÚNA, Mara L. Uma homenagem a Rosinha de Valença [online]. Jornal GGN, 30 jul. 2014. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/uma-homenagem-a-rosinha-de-valenca. Acesso em: 05 dez. 2016.
4. BARAÚNA, Mara L., loc. cit. De fato, a projeção de Rosinha de Valença se dá quase ao mesmo tempo (ligeiramente posterior) à de Baden Powell. Além disso, a proximidade de técnicas e estilos na natureza de seus arranjos os aproximam extremamente, o que explica em parte a comparação, com a diferença que nunca ninguém se referiu à Powell como a Rosinha de Valença de calças.
5. O ESTADO de S. Paulo. Morre no Rio a violonista Rosinha de Valença. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10 jun. 2004. Cultura. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,morre-no-rio-a-violonista-rosinha-de-valenca,20040610p5466. Acesso em: dez. 2016.
6. SANCHES, Pedro Alexandre. Tributo de Bethânia redimensiona Rosinha de Valença [online]. Folha de S.Paulo, São Paulo, 22 dez. 2004. Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2212200417.htm. Acesso em: 05 dez. 2016.
7. TACIOLI, Ricardo; Sivuca. A Rosinha é uma das insubstituíveis [online]. In: Gafieiras: entrevistas de música brasileira, São Paulo, 25 jul. 2004. Disponível em: http://gafieiras.com.br/entrevistas/sivuca/17/. Acesso em: 05 dez. 2016.
Obras 4
Fontes de pesquisa 16
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- BARAÚNA, Mara L. Uma homenagem a Rosinha de Valença [online]. Jornal GGN, 30 jul. 2014. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/uma-homenagem-a-rosinha-de-valenca. Acesso em: 05 dez. 2016.
- CARDOSO, Teco. Repertório Popular - Rosinha de Valença (1977). In: Repertório Popular. Apresentação televisiva comentada por Teco Cardoso do programa gravado ao vivo na TV Cultura em 1977. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2016.
- COSTA, Bernardo. Sim, o músico Chico Batera está na ativa! In: Coisas da música, 10 mar. 2016. Disponível em: http://coisasdamusica.com.br/sim-chico-batera-esta-na-ativa. Acesso em: 05 dez. 2016.
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- FLÉCHET, Anaïs. La Bossa Nova, les États‑Unis et la France. Bulletin de l'Institut Pierre Renouvin, Paris, n. 24, 2006. [s.p.].
- INGREVALLO, Alexandre. Rosinha de Valença. Programa homenageia violonista e compositora que faria 75 anos em 2016. Ouça! In: Rádio Cultura Brasil, São Paulo, 17 de julho de 2016. Radiodifusão com Alexandre Ingrevallo (produção, roteiro e apresentação), Wesley Barbarino (apoio de produção) e Maria Cleidiane (trabalhos técnicos). Disponível em: http://culturabrasil.cmais.com.br/especiais/rosinha-de-valenca-3.
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ROSINHA de Valença.
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