Miltinho
Texto
Milton Santos de Almeida (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1928 – idem, 2014). Cantor, pandeirista. Em sua interpretação de timbre peculiar, Miltinho liga-se à linhagem tradicional do samba, particularmente àquela dos cantores mais sincopados, embora também tenha obtido grande sucesso com a gravação de sambas-canções e baladas românticas. É peça importante no processo da síncopa na música brasileira, efetuado por cantores ligados ao ritmo, como Luís Barbosa (1910-1938), Jackson do Pandeiro (1919-1982) ou ainda Germano Mathias (1934). O início do trabalho artístico, marcado pela participação em conjuntos vocais, expõe o artista, responsável pela base rítmica dos grupos que integra.
Inicia sua carreira na década de 1940, integrando o conjunto amador Cancioneiros do Ar, com o qual participa do programa de calouros de Ary Barroso (1903-1964), na Rádio Tupi do Rio de Janeiro. Em 1946, passa a integrar a segunda formação do conjunto vocal Namorados da Lua, ao lado do cantor Lúcio Alves (1927-1993), atuando também como pandeirista. Com esse conjunto, acompanha a cantora Isaurinha Garcia (1923-1993) na gravação do samba “De conversa em conversa”, de Lúcio Alves e Haroldo Barbosa (1915-1979), realizada pela gravadora Victor.
Em 1948, compõe o conjunto Anjos do Inferno, com o qual viaja pelo Brasil e pelo exterior, passando pela Bolívia, Uruguai, Paraguai, Argentina, Chile e México, onde permanece por dois anos, gravando e atuando em um programa de rádio dedicado ao Brasil. Viaja ainda pelos Estados Unidos, acompanhando a cantora Carmem Miranda (1909-1955). Volta ao Brasil em 1951 e é aprovado em um concurso para o Ministério da Fazenda, razão pela qual fica impossibilitado de excursionar como artista durante muito tempo. Ingressa, então, no conjunto Quatro Ases e um Coringa, como cantor e pandeirista. Atua ainda como crooner na Orquestra Tabajara de Severino Araújo, em boates no Beco das Garrafas, na boate Vogue e no conjunto Milionários do Ritmo, do pianista Djalma Ferreira (1913-2004), com o qual se apresenta em boates como a Monte Carlo, no Hotel Plaza, e a boate Drink.
Entre as décadas de 1940 e 1950, os conjuntos vocais são frequentes no Rio de Janeiro, contratados para programas de diversas rádios e boates. Desses conjuntos surgiram importantes cantores, como Lúcio Alves e o próprio Miltinho, do Namorados da Lua, e João Gilberto (1931-2019), do Garotos da Lua. Esses dois conjuntos são contratados pela Rádio Tupi na segunda metade da década de 1940, aparecendo com muita frequência no programa Parada de Sucessos, do cantor e pesquisador Almirante (1908-1980). Nessa época, um estilo de cantar brasileiro está amadurecendo e os crooners dos conjuntos vocais e orquestras influenciam uns aos outros e tentam se diferenciar, em uma busca por originalidade que traz resultados significativos para a música brasileira, em particular para o samba.
É com os Milionários do Ritmo que Miltinho faz suas primeiras gravações como crooner, lançadas em 1958, pelo selo Drink, do líder do conjunto Djalma Ferreira. Interpreta canções de Djalma Ferreira e Luís Antônio (1921-1996), como “Lamento”, “Recado” e “Nosso samba”. Se, por um lado, esses cantores estão desenvolvendo em conjunto algo como um estilo nascido e criado em terras brasileiras, por outro é bastante visível a influência norte-americana nos arranjos e timbres dos conjuntos vocais, orquestras e crooners atuantes no Rio de Janeiro. Frank Sinatra (1915-1998) e Stan Kenton (1911-1979) são bastante populares nas rádios e lojas de discos da época. A marca das harmonizações orquestrais americanas ou o tipo de emissão vocal de seus cantores está impressa nos melhores cantores e conjuntos vocais brasileiros da década de 1950. Ao desenvolver as variadas e ricas formas de síncopa da tradição musical brasileira do samba é que cantores brasileiros – e Miltinho em particular – realizam suas maiores contribuições e encontram o modo mais eficiente de desprender-se da forte influência da música americana.
Desses discos de 78 rpm surge o convite para lançar seu primeiro LP solo, Um novo astro (1960), pela gravadora Sideral. É acompanhado no trabalho pelo Sexteto Sideral, com participação de Baden Powell (1937-2000) no violão, na faixa “Eu e o Rio”. Em 1961, lança a canção “Poema do adeus”, que se torna parte da trilha sonora do filme O vendedor de lingüiças (1962), produzido por Mazzaropi (1912-1981) e dirigido por Glauco Mirko Laurelli (1930-2013). A gravadora Sideral entra em falência e Miltinho passa pela RCA, lançando Miltinho (1961) e, posteriormente, é contratado pela RGE, pela qual lança, em 1963, o LP Miltinho é samba.
Suas interpretações partem de uma base métrica bem definida e desenvolvem, na melodia vocal, novas nuances rítmicas, nas quais a relação entre os acentos da melodia e os do compasso criam um “balanço” novo, o sambalanço. No começo dos anos 1960, Miltinho torna-se um dos ícones do estilo sambalanço, com os sucessos “Mulher de trinta”, de Luís Antônio, “Eu quero um samba”, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida (1919-1945), e “Mulata assanhada”, de Ataulfo Alves (1909-1969). Somado aos êxitos em canções românticas, ele monopoliza as paradas de sucesso deste período, numa proporção só vista, a seguir, com Roberto Carlos (1941).
Em 1966, é contratado pela Odeon, pela qual grava, entre 1967 e 1969, três LPs ao lado de Elza Soares (1937-2022) e mais quatro, entre 1970 e 1973, ao lado de Dóris Monteiro (1934). Entre seus discos solos, destacam-se Samba + samba = Miltinho (1966), Miltinho, samba e cia (1967), Novo recado (1971) e Miltinho (1974). Após longo hiato de gravações, é lançado o CD Em tempo de bolero, pela Movieplay, em 1997, e Miltinho convida, pela Globo/Columbia, em 1998, com participações de artistas como João Bosco (1946), Luiz Melodia (1951-2017), João Nogueira (1941-2000) e Chico Buarque (1944).
Em carreira solo, Miltinho propõe uma interpretação marcada por um tipo de variação rítmica na qual coloca a frase musical em lugares diferentes do compasso. Ou, como o próprio artista explica: “Você já reparou que eu não canto na cabeça da nota. Eu canto dois tempos atrasados com a harmonia na frente”. Desta forma, gera deslocamentos entre os apoios da melodia que está cantando e o apoio do acompanhamento musical, que permanece fixo. Assim o cantor pode improvisar não apenas melodicamente mas também ritmicamente, “derramando” suas melodias sobre o compasso do samba.
Miltinho faz da maneira de improvisar e deslocar ritmicamente os acentos da melodia o principal traço de seu estilo. Não se trata, entretanto, de um tipo de canto nunca antes visto, mas sim de um desenvolvimento e uma nova forma de lidar com a tradição do samba sincopado, que já contava com artistas importantes como Luís Barbosa, Vassourinha (1923-1942), Geraldo Pereira (1918-1955), Cyro Monteiro (1913-1973) e Orlando Silva (1915-1978), este último uma referência de toda uma geração de cantores.
Fontes de pesquisa 6
- CAMPOS et alii. Um Certo Geraldo Pereira. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1983.
- CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
- MARCONDES, Marcos Antônio. Enciclopédia da música brasileira: erudita, folclórica e popular. 2. ed., rev. ampl. São Paulo: Art Editora, 1998.
- NO TEMPO DE MILTINHO, documentário de André Weller, produzido por Napressão, 17 min, RJ, Brasil, 2008.
- SOUZA, Tárik de. A bossa dançante do sambalanço. Revista USP, São Paulo, n.87, p. 28-39, set./ nov. 2010.
- ULHÔA, M. T. “Métrica Derramada: tempo rubato ou gestualidade na canção brasileira popular.” In: VII Congreso Latinoamericano IASPM - AL, 2006, La Habana. Actas Del VII Congreso Latinoamericano IASPM - AL, 2006. v. Online. p. 1-9.
Como citar
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MILTINHO.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa636156/miltinho. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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