João Moreira Salles
Texto
João Moreira Salles (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1962). Diretor, produtor, roteirista, jornalista e professor. Filho do empresário e diplomata Walther Moreira Salles (1912-2001) e irmão do cineasta Walter Salles (1956). Chega aos documentários de forma acidental, segundo depoimento do próprio João, por não ter ideia de qual carreira seguir. Começa na Rede Manchete, do Rio de Janeiro, a convite do irmão Walter, para escrever o roteiro do documentário Japão, uma Viagem no Tempo (1986).
Estreia na direção com China, o Império do Centro (1987). Em seguida, roda dois filmes nos Estados Unidos: América (1989), e Blues (1990). Ambos são exibidos pela emissora de Adolpho Bloch (1908-1995). Passa um ano no Quênia, onde leciona cinema documental para comunidades carentes em uma organização não governamental gerenciada pelo bispo Desmond Tutu (1931). Em 1998, quatro anos depois de retornar da África, realiza Futebol, em parceria com Arthur Fontes (1963).
Em 1999, dirige, com Kátia Lund (1966), Notícias de uma Guerra Particular, documentário veiculado por um canal a cabo, sobre a guerra, aparentemente sem fim, entre a polícia e os traficantes de drogas no Rio de Janeiro. Durante a realização do filme, o cineasta conhece o traficante Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP. Em 2000, por pagar a ele uma espécie de bolsa para que escrevesse sua biografia e abandonasse o crime, Salles é submetido a inquérito policial1. Duas acusações – formação de quadrilha e envolvimento com narcotráfico – são arquivadas; a terceira – favorecimento pessoal –, é encerrada com pagamento de multa e prestação de serviços comunitários.
No mesmo ano de 2000, João divide com Marcos Sá Corrêa a direção de dois episódios da série Seis Histórias Brasileiras, exibida na TV a cabo: “O Vale” e “Santa Cruz”. A estreia no cinema dá-se com um longa-metragem, lançado em 2003, sobre Nelson Freire (1944), pianista brasileiro reconhecido mundialmente. Seu trabalho seguinte é Entreatos (2004), filme no qual acompanha os bastidores da campanha eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva (1945), à época candidato à presidência de República.
Em 2006, João atua no jornalismo ao começar a editar a revista Piauí. Em 2007, lança Santiago, documentário sobre o mordomo da família Salles, Santiago Badariotti Merlo (1912-1994). O realizador serve-se das rememorações do antigo empregado para refletir sobre as memórias da própria família e também sobre a natureza do filme documental. A obra ganha prêmios, como o de melhor documentário no Festival Cinéma du Réel, França, e no Miami Film Festival, Estados Unidos.
No cinema, João exerce, ainda, a função de produtor de outros diretores, como em documentários – Edifício Master (2002), Peões (2004) e As Canções (2011), todos de Eduardo Coutinho (1933-2014), e Raízes do Brasil: uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda (2004), filme de Nelson Pereira dos Santos (1928) – e em filmes de ficção – Madame Satã (2002), dirigido por Karim Aïnouz (1966), e Lavoura Arcaica (2001), realizado por Luiz Fernando Carvalho (1960).
Análise
Em China, o Império do Centro, o diretor apresenta uma China em transição: a nação procura conciliar sua cultura tradicional com a modernidade que chega ao país. O choque entre o antigo e o novo é simbolizado, por exemplo, pelas imagens que o documentário oferece da tradicional Ópera de Pequim e da paisagem ultramoderna de Hong Kong.
No período americano do realizador, grava América e Blues. Na primeira obra, os Estados Unidos são mostrados como um país caracterizado pela velocidade e pelo movimento. Nada mais natural para uma nação que institui como documento de identidade a carteira de motorista. O ator estadunidense Dennis Hopper (1936-2010), o escritor e diplomata mexicano Octávio Paz (1914-1998) e o escritor e jornalista William Kennedy (1928) são alguns dos personagens que ajudam a compreender a “América”. No segundo documentário, os formatos de vídeo e de Super 8 são utilizados para apresentar ao público brasileiro o gênero fundamental na história da música norte-americana.
De volta ao Brasil, João dirige suas lentes para uma das manifestações mais representativas da cultura nacional. Futebol, feito em parceria com Arthur Fontes, revela o mundo da bola em tom melancólico. O principal esporte do país é visto como local de promessas – dificilmente realizadas – de enriquecimento rápido para jovens que vivem na pobreza. Na tela, surgem velhos jogadores, ídolos de multidões em outros tempos, que, com as exceções de praxe, têm espaço insignificante na imprensa e na lembrança das torcidas contemporâneas.
Notícias de uma Guerra Particular, codirigido por Kátia Lund, é uma obra essencial. Em pouco menos de uma hora, o filme oferece uma amostra da complexa relação entre o tráfico de drogas, a polícia e os “civis” dos morros cariocas. O documentário é pioneiro ao abordar um tema presente no cotidiano nacional: a violência. Influencia outras realizações, como Ônibus 174 (2002), documentário de dirigido por José Padilha (1967) e Felipe Lacerda (1969), e Cidade de Deus, produção do mesmo ano, realizado por Fernando Meirelles (1955) e Kátia Lund.
O tom de Notícias... é pessimista em relação à violência gerada pela guerra ao tráfico de drogas, e o fim do documentário insinua que a situação não pode ser resolvida. Segundo as autoras Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, é um documentário desesperançado, pois “não oferece consolo ao espectador, não lhe dá escapatória, coloca-o frente a frente com policiais exauridos, traficantes nada românticos, menores presos sem qualquer possibilidade de recuperação, moradores rendidos”2.
No documentário sobre o pianista Nelson Freire, a câmera comporta-se como o espectador dos concertos de música clássica, ambiente por excelência do protagonista. Ela se abre para captar momentos da vida do personagem, mas sempre mantém distância respeitosa de Freire. Segundo o crítico Luiz Zanin Oricchio, o dispositivo nunca é invasivo, “nem mesmo quando flagra momentos de intimidade, de bastidores, quando Nelson volta do palco depois de um concerto difícil e, enquanto o público aplaude, deseja apenas a companhia de um cigarrinho para descansar”3.
Em Entreatos, o documentarista acompanha os bastidores da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para as eleições presidenciais de 2002. A associação com o filme Primárias (1960), do americano Robert Drew (1924-2014), é imediata. O filme de Drew relata as prévias (ou primárias) do Partido Democrata para escolher seu candidato à presidência dos Estados Unidos entre os senadores John F. Kennedy (1917-1963) e Hubert Humphrey (1911-1978). A estrutura narrativa de Entreatos opta por mostrar os bastidores da campanha de Lula de forma discreta. Evitando intervenções explícitas, o cineasta revela conversas privadas, gravações de programas eleitorais e encontros familiares do candidato. O longa de João divide as sessões de cinema com Peões, de Eduardo Coutinho (1933-2014). Ambos os filmes integram um projeto comum dos dois cineastas. Peões tem como tema os antigos companheiros de Lula que participaram das greves do ABC paulista no final dos anos 1970. Os dois trabalhos são lançados ao mesmo tempo e ocupam a mesma sala de exibição, em horários alternados.
Em 1992, João tenta realizar um filme sobre Santiago Badariotti Merlo, antigo mordomo da família Moreira Salles. Em determinado trecho da versão lançada nos cinemas, em 2007, o cineasta, narrador do filme, afirma: “Não levei muito tempo até interromper a montagem. No papel, minhas ideias pareciam boas, mas na ilha de edição não funcionaram. O material bruto resistia. Foi o único filme que não terminei”.
Santiago é um ensaio sobre o filme inacabado dos anos 1990. João retoma o material bruto para compreender os motivos que o levaram a fracassar no projeto de retratar o personagem que, durante tantos anos, trabalhou para sua família. Nesse processo, o cineasta realiza um ensaio audiovisual sobre a natureza ética do documentário e mostra os processos de criação da obra cinematográfica que não são revelados ao espectador.
Santiago repete várias vezes determinadas falas a pedido do diretor, que procura a forma exata para expressar o momento. Essa excessiva preocupação formal, que coloca em segundo plano a humanidade do retratado, é uma das razões que impedem a conclusão do filme. Outro motivo é o distanciamento da câmera em relação à Santiago. A causa desse afastamento é apontado com muita propriedade pelo narrador: “É que ele não era apenas meu personagem; eu não era apenas um documentarista. Durante os cinco dias de filmagem, eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa, e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo”. Incapaz de romper os limites de sua posição, o diretor não alcança seu personagem. Ao esclarecer essa incapacidade, o filme revela uma de suas mais pungentes qualidades: a sinceridade.
Notas
1 CINEASTA Salles é indiciado no Rio. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. p. 3.
2 LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 16.
3 ORICCHIO, Luiz Zanin. Recato de músico dá tom e ritmo ao filme. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 2003. Caderno 2, p. D-3.
Obras 1
Exposições 4
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24/4/1994 - 29/5/1994
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13/12/1996 - 28/1/1995
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6/8/1996 - 7/9/1996
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18/11/2008 - 28/11/2008
Fontes de pesquisa 9
- AVELLAR, José Carlos. João Moreira Salles. In: PARANAGUÁ, Paulo Antônio (Org.). Cine documental en américa latina. Madrid: Cátedra, 2003. p. 245-253.
- FELDMAN, Ilana. Na contramão do confessional: o ensaísmo em Santiago, Jogo de cena e Pan-cinema permanente. In: MIGLIORIN, Cezar (org.) Ensaios no Real. Rio de Janeiro: Azougue, 2010. p.149-167.
- FRÓES, Maria Lúcia. Vamos passar uma semana na China? Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 nov. 1987. Caderno 2, p. 87.
- LINS, Consuelo. Imagem e tempo na série Futebol de João Salles. In: SOCIEDADE Brasileira de Estudos de Cinema. Estudos de Cinema: Socine II e III. São Paulo: Annablume, 2000, p. 193-198.
- MESQUITA, Cláudia. Notas sobre o documentário brasileiro recente. Novos Estudos Cebrap, n. 86, p. 105-118, mar. 2010.
- MOLFETTA, Andrea. O heroísmo no documentário contemporâneo ou Entreatos e a herança do Cinema Direto no Brasil. In: MACHADO JR., Rubens; SOARES, Rosana de Lima; ARAÚJO, Luciana Corrêa de (Orgs.). Estudos de cinema Socine. São Paulo: Annablume; Socine, 2006, p. 233-239.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Recato de músico dá tom e ritmo ao filme. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2 maio 2003. Caderno 2, p. D-3.
- PEIXOTO, Nelson Brissac. América. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
- RAMOS, Paulo Roberto. A Imagem, o som e a fúria: a representação da violência no documentário brasileiro. São Paulo: Novos Estudos:Cebrap, 2007, v.21, n.61.
Como citar
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JOÃO Moreira Salles.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa13466/joao-moreira-salles. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7