Karim Aïnouz
Texto
Karim Aïnouz (Fortaleza, Ceará, 1966). Cineasta, roteirista, artista visual. Filho de uma cearense e um argelino, Aïnouz forma-se em arquitetura pela Universidade de Brasília e vai para Nova York estudar artes visuais e teoria do cinema. Trabalha como assistente de casting e de montagem em Veneno, de Todd Haynes, vencedor do Festival de Sundance de 1991, e participa das filmagens de Swoon (1992), do diretor Tom Kalin (1962), e Postcards from America (1994), dirigido por Steve McLean, . Ao lado dos cineastas Ira Sachs (1965), Jonathan Nossiter (1961) e Oren Moverman (1966), funda o Dependent Cinema, coletivo que visa viabilizar filmes independentes.
No Brasil, roda curtas-metragens, como O Preso (1992), ficção em vídeo sobre um lavrador; Seams (1993), documentário em 16mm sobre sua avó e suas tias; Paixão Nacional (1994), experimental em 16mm com base na história de um homem que tenta embarcar para a Europa no compartimento de bagagens de um avião e morre congelado; e Rifa-me (2000), ficção em 35mm sobre uma garota que rifa o próprio corpo, embrião do longa-metragem O Céu de Suely (2006). Trabalha também, com alguns cineastas, na redação de roteiros – é coautor do longa Abril Despedaçado (2001), com Walter Salles (1956), adaptação do romance do albanês Ismail Kadaré (1936); de Cidade Baixa (2005), com Sérgio Machado (1968); e Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), com Marcelo Gomes (1964) .
Exibido na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, Madame Satã (2002) é seu primeiro longa. O filme é dedicado ao personagem criado por João Francisco dos Santos, emblema da marginalidade na Lapa dos anos 1930 e 1940, vestindo-se de mulher em números musicais. Os dois longas seguintes de Aïnouz, O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009), realizado com Marcelo Gomes, exibidos na seção Orizzonti do Festival de Veneza, retomam imagens e situações de curtas anteriores, Rifa-me e Sertão de Acrílico Azul Piscina (2004), dirigido com Marcelo Gomes. Mostram um sertão nordestino em que a monocromia da natureza combina-se à explosão de cores dos objetos de consumo. Inspirado na canção Olhos nos Olhos, de Chico Buarque (1944), e rodado no Rio de Janeiro, Abismo Prateado (2011) estreia na Quinzena dos Realizadores de Cannes. Praia do futuro (2014), história de um salva-vidas de Fortaleza que se apaixona por um alemão, integra a mostra competitiva do Festival de Berlim.
O cineasta dirige em 2008 a série televisiva da HBO Alice, em parceria com Sérgio Machado. Em 2015, seu documentário Diego Velázquez ou le réalisme sauvage é exibido no Grand Palais, em Paris, e no canal franco-alemão de TV Arte. Aïnouz atua ainda como artista visual, fazendo filmes e instalações na fronteira entre cinema e arte contemporânea, como Sunny Lane (2011), filmado em Super 8 na Sonnenallee, em Berlim, e exibido na Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, além do episódio que dedica ao Centre Pompidou, em Paris. Este episódio faz parte da série Catedrais da Cultura (2014), do cineasta alemão Wim Wenders (1945), e do vídeo Domingo (2014), do dinamarquês Olafur Eliasson (1967).
Karim Aïnouz vive em Berlim e sua obra é premiada nos festivais de Chicago, Havana, Lima, Los Angeles, San Sebastian, Salonica e Toronto, entre outros.
Análise da Trajetória
Karim Aïnouzmanifesta interesse por personagens que nutrem uma relação de não-pertencimento com o espaço, tentados pela mudança e vivenciando questões de posse e subversão do próprio corpo, da identidade e da sexualidade. É o caso de João Francisco/Madame Satã e de Hermila/Suely, protagonistas de Matame Satã e O Céu de Suely, respectivamente. Outra questão recorrente em seu cinema é o convívio entre tradição e modernidade no sertão nordestino. Sobre a filmagem de Sertão de Acrílico Azul Piscina (inicialmente chamado de Carranca), realizado com Marcelo Gomes, o cineasta diz: “Sempre me incomodei muito, minha vida inteira, com essa imagem do sertão como espaço mítico. (...) Com Marcelo Gomes, a gente foi atrás de um sertão pop, porque achava que havia um apelo pop ali, das cores, por exemplo. (...) [N]aquela cena da feira de Caruaru (...) realmente havia temporalidades muito diferentes, mas que estavam aglutinadas ali num só tempo, que era o tempo do agora”.
Em termos formais, o cinema de Aïnouz insiste nas texturas da imagem. A granulação da matéria fílmica – 35mm, 16mm, Super 8 ou vídeo – evidencia-se na coabitação de suportes em um mesmo filme, como em O Céu de Suely e Viajo (...). O mesmo acontece nas obras produzidas para o contexto da arte contemporânea, como Sunny Lane, ensaio audiovisual exibido na Bienal de Sharjah em que o lirismo das imagens em Super 8 da Sonnenallee, em Berlim, combina-se com a incógnita sobre a separação entre oeste e leste antes da queda do muro, e sobre a presença árabe na cidade.
Há um componente tátil na maneira de filmar a pele dos personagens, os tecidos que a recobrem, a água, a areia, a neve, o asfalto... Em Madame Satã, a fotografia de Walter Carvalho é precisa e ousada ao enquadrar fragmentos do corpo do personagem-título de maneira a mostrar os pelos nascentes de seu peito, o suor que brota no braço ou as lantejoulas do figurino. Isso faz com que a crítica logo o considere “o cineasta do corpo”, para descartar essa hipótese depois de Viajo (...), em que a imagem do personagem principal nunca é vista. Aïnouz já havia dedicado o curta Paixão Nacional a um personagem ausente, que à semelhança de Quincas Borba inicia a narrativa ao descrever o momento de sua morte. No caso de Viajo (...), ainda que o rosto de Zé Renato (Irandhir Santos) jamais apareça, o longa se detém nos corpos de personagens que ele encontra, na materialidade da caatinga e de suas pedras, nas águas do São Francisco ou de Acapulco, onde homens mergulham de cabeça. A sensorialidade continua a ser explorada, por exemplo, O Abismo Prateado e Praia do Futuro, em que praias e boates, como as rodoviárias, as feiras, os bailes dos longas anteriores, são vistos em planos sequências e câmera na mão. Corpos em estado de semitranse são frequentes, e não faltam personagens inebriados pelo consumo de álcool ou drogas, pela dança, pelo sexo ou pelas lufadas de ar sentidas no rosto ao partirem – de carro, moto ou ônibus. Aïnouz insiste no travelling como movimento de câmera síntese do deslocamento dos personagens, em longas tomadas embaladas por músicas envolventes. Canções pop, românticas ou bregas marcam suas trilhas sonoras, fundamentais nas estratégias de obtenção desse êxtase – e na condução da melancolia que a ele sobrevém.
A relação pendular entre êxtase e melancolia, entre alegria efêmera e tédio cotidiano, afirmada em O Céu de Suely, ganha novos contornos ao longo da filmografia do cineasta, aparecendo notadamente em Viajo (...), Abismo Prateado e Praia do futuro, reconfigurando a relação histórica do cinema brasileiro com a noção de utopia. Em Aïnouz, ela tem a ver com personagens que não se conformam a seus destinos. O crítico Ismail Xavier (1947) vê na recusa do destino por parte de João Francisco/Madame Satã e Hermila/Suely a ruptura com o “ciclo de ressentimento” do chamado “cinema brasileiro da retomada”, realizado a partir da década de 1990:
Em O Céu de Suely, a protagonista aceita a experiência limite de rifar o seu corpo para viabilizar a sua liberação; ela não se desenha como a boa alma disposta a sucumbir em nome da pureza, do amor perdido ou do retorno nostálgico à ordem familiar. Seu ciclo de vida na pequena cidade compõe o entreato, a digestão da experiência que, por fim, a libera – sonho que Dalva (de Um Céu de Estrelas, Tata Amaral), por exemplo, não consegue efetivar, face à tragédia do último encontro com o namorado ressentido. No filme de Karim, a disposição da personagem se projeta no espaço, na afirmação da viagem como promessa.
Os homens e as mulheres que protagonizam os filmes de Aïnouz conseguem subverter, ainda que com sofrimento, limites ligados a questões de raça e racismo (Madame Satã), sexualidade e convenções de gênero (Madame Satã, O Céu de Suely, Praia do Futuro) etc.
Karim Aïnouz troca Fortaleza por Brasília, Nova York, Paris e São Paulo, e se estabelece em Berlim, numa acumulação de exílios. Ele atua no cinema, na televisão e no mundo das artes, frequentemente em coproduções internacionais. Está, portanto, habituado a ver e a ser visto de fora, de um entrelugares que apresenta pontos em comum com a situação de alguns de seus personagens. Não se pode, porém, falar que seus filmes são autobiográficos: cada filme traz uma situação nova, absolutamente desafiadora e rica, e o exercício da alteridade é fundamental na criação de cada um de seus protagonistas.
Notas
1 AÏNOUZ, Karim. A política do corpo e o corpo político – o cinema de Karim Aïnouz. (Entrevista concedida aa Ilana Feldman e Cléber Eduardo), Cinética, 2007. Disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/cep/karin_ainouz.htm >.
2 BUTCHER, Pedro. Cinema de Karim Aïnouz: alta voltagem poética, Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. 2010. Ilustríssima.
3 Ivana Bentes (2007, p. 38-40) escreve a esse respeito, afirmando que depois das imagens caseiras de felicidade na abertura do filme, “o filme segue monocórdio contando a volta de Hermila de São Paulo para Iguatu, uma prisão sem parede, com micro-movimentos de felicidade e deleites passageiros (...) Hermila é mestre em criar essas linhas de fuga. Melancolia e alegria se alternam em tom menor numa cidade de pequenas ocupações”.
4 XAVIER, Ismail. Ismail Xavier fala sobre o cinema de Karim Aïnouz. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. 2010. Ilustríssima.
Obras 2
Exposições 15
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24/10/1995 - 26/11/1995
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6/12/1996 - 21/1/1995
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27/1/2004 - 28/3/2004
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25/9/2004 - 19/12/2004
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4/3/2005 - 8/4/2005
Fontes de pesquisa 12
- AÏNOUZ, Karim. A política do corpo e o corpo político – o cinema de Karim Aïnouz. (Entrevista concedida a Ilana Feldman e Cléber Eduardo). Cinética, 2007, disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/cep/karin_ainouz.htm >.
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- BUTCHER, Pedro. Cinema de Karim Aïnouz: alta voltagem poética, Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. de 2010. Ilustríssima.
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Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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KARIM Aïnouz.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa241630/karim-ainouz. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7