O Céu de Suely
Texto
Fruto de uma coprodução entre Brasil, Alemanha, França e Portugal, o segundo longa-metragem de Karim Aïnouz retoma o argumento do curta Rifa-me (2000), em que uma mulher se coloca como objeto de uma rifa. O Céu de Suely foca a relação sensual entre câmera e corpo – com fotografia de Walter Carvalho (1947) –, além de questões constantes na obra de Aïnouz: o não-pertencimento, a tentação do deslocamento, a subversão da própria identidade.
O filme tem por protagonista Hermila [Hermila Guedes(1980)], garota de 21 anos que retorna a Iguatu, no interior do Ceará, dois anos depois de tê-la trocado por São Paulo ao lado de Mateus, sua paixão. Ela chega com o filho, Mateusinho, no colo. O marido deve juntar-se a eles em seguida, mas Hermila logo percebe que isso nunca ocorrerá. Ela vive com a avó [Zezita Matos], cozinheira de um restaurante por quilo, e tia Maria [Maria Menezes], mototaxista. Ganha algum dinheiro vendendo rifas de uísque ou trabalhando como frentista em um posto de gasolina. Apesar do reencontro com João [João Miguel (1970)], antigo namorado que continua apaixonado por ela, e dos momentos de dança e diversão com Maria e a amiga Georgina [Georgina Castro], que vive de fazer programas, a protagonista não suporta Iguatu e decide partir para “a cidade mais longe” a que se possa chegar de ônibus. Para pagar a passagem para Porto Alegre, inventa a rifa “uma noite no paraíso”: o vencedor terá uma noite inteira com “Suely”, nome fictício que cria para si.
O filme se inicia com uma sequência filmada em Super 8 na qual Hermila e Mateus se abraçam, brincando um com o outro em meio às traves de um campinho de futebol na areia. Em off, ela relembra o dia em que engravidou, um domingo de manhã: “tinha um cobertor azul de lã escura. Mateus me pegou pelo braço e disse que ia me fazer a pessoa mais feliz do mundo. Ele disse que queria casar comigo. Ou então morrer afogado”. Ouve-se então a versão brasileira, gravada por Diana na época da Jovem Guarda, da canção Everything I Own (1972). Na imagem, o azul do céu e da blusa de Hermila lembra a cor da coberta descrita pela protagonista. Esses elementos, mais a textura de filme caseiro, contribuem para intensificar o tom de rememoração, ainda que som e imagem não traduzam a mesma lembrança. A sequência em Super 8 se encerra com um flash branco, ao qual sobrevém um close-up de Hermila, já em 35mm. Com fones de ouvido e ar enfastiado, ela está no ônibus que a leva, junto com Mateusinho, de São Paulo a Iguatu. Fragmentos dos dois corpos são vistos em planos de foco inconstante, tendo ao fundo, através da janela do veículo, a estrada, num tipo de travelling.
O Céu de Suely retrata a peculiar forma de convivência entre tradição e modernidade presente no sertão nordestino, manifestada em cenas que alguns críticos consideram próximas à estética realista e/ou documental – ainda que o cineasta tenda a recusá-la – e na imagem do êxtase, obtida com uma câmera próxima à pele dos personagens. Em diversas ocasiões, a personagem Hermila passa, em instantes, do sorriso que transborda do rosto a um ar ausente, os olhos verdes apontados para longe. As contradições de sua figura – meio loira, meio morena, alegre e triste ao mesmo tempo –, assim como a contraposição das sequências iniciais – a alegria em Super 8 e a espera tediosa no ônibus –, sintetizam a relação pendular entre êxtase e melancolia costurada ao longo de toda o filme. Depois da abertura, o êxtase (quase sempre acompanhado de uma música romântica) ressurge em momentos em que a câmera na mão percorre os corpos bem de perto, como a traduzir o que Hermila sente na pele: quando dança com a tia e a amiga, jogando a cabeça para trás e rindo; na garupa da moto de João, em que o prazer tátil do vento que lhe roça o rosto parece ser compartilhado com o espectador; enquanto faz as unhas com Georgina, nas gargalhadas incentivadas pelas lufadas de acetona, em movimentos de câmera inebriados como elas. Em geral, aos instantes de torpor segue-se uma melancolia tenaz, presente no sexo com João, na rotina morosa e dura de Iguatu, no calor sufocante só aliviado diante da geladeira.
Pelo êxtase, tenta-se fugir da opressão que a cidade representa. Escapar ao deserto do real, das convenções sociais, dos limites do corpo e do espaço: o que Aïnouz busca, ao insistir nas imagens do êxtase, é uma estratégia de fuga e de subversão. É o que Hermila procura ao embarcar no ônibus para Porto Alegre. Como diz o cítico Ismail Xavier, “em O Céu de Suely, a protagonista aceita a experiência limite de rifar o seu corpo para viabilizar a sua liberação; ela não se desenha como a boa alma disposta a sucumbir em nome da pureza, do amor perdido ou do retorno nostálgico à ordem familiar. Seu ciclo de vida na pequena cidade compõe o entreato, a digestão da experiência que, por fim, a libera”. Ou nas palavras de Malcher dos Santos: “Suely desfaz a prisão do destino, afirmando – em ato, ação – que o que há é mesmo decisão. A estrada resume todas as possibilidades abertas, na qual ela segue com um esboço de sorriso no rosto”. Com poucas exceções – como a resenha publicada na revista Variety, que considera a segunda fuga de Hermila pouco convincente –, a crítica recebe O Céu de Suely calorosamente, elogiando a performance da atriz que dá corpo e nome à protagonista e o retrato, nada simplificado, da vida atual no sertão. O filme é comparado à estética neorrealista e a obras de cineastas contemporâneos, como Hou Hsiao-hsien, Jia Zhang-ke e Claire Denis.
O Céu de Suely estreia na Mostra Orizzonti do Festival de Veneza, em 2006, e é premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, a APCA (melhor filme, melhor diretor e melhor atriz), pelo Festival do Rio (melhor diretor, melhor filme e melhor atriz). No Festival Internacional de Salônica, na Grécia, conquista o Prêmio da Fipresci de melhor filme. Nascida em Cabrobó, Pernambuco, Hermila Guedes também leva os troféus de melhor atriz no Festival do Rio, no Cine Goiânia e no Festival de Havana, entre outros.
Notas
1. AÏNOUZ, Karim. “A política do corpo e o corpo político – o cinema de Karim Aïnouz” (entrevista a Ilana Feldman e Cléber Eduardo), Cinética, 2007. Disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/cep/karin_ainouz.htm >.
2. XAVIER, Ismail. XAVIER, Ismail. Ismail Xavier fala sobre o cinema de Karim Aïnouz (entrevista a Pedro Butcher). Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. 2010. Ilustríssima, p. 6.
3. MALCHER DOS SANTOS, Márcia Vanessa. O salto do cinema brasileiro contemporâneo no céu do sertão: uma análise dos filmes O céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014. p. 132.
4. YOUNG, Deborah. Review: Suely in the Sky. Variety, 5 set. 2006. Disponível em: http://variety.com/2006/film/markets-festivals/suely-in-the-sky-1200513711/.
5. OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. O céu de Suely. Contracampo, nº 82, 2006. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/82/festoceudesuely.htm.
Fontes de pesquisa 12
- AÏNOUZ, Karim. A política do corpo e o corpo político – o cinema de Karim Aïnouz. (Entrevista concedida a Ilana Feldman e Cléber Eduardo). Cinética, 2007, disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/cep/karin_ainouz.htm >.
- AÏNOUZ, Karim; BRAGANÇA, Felipe; ZACHARIAS, Maurício. O céu de Suely (roteiro). São Paulo: Imprensa Oficial, 2008. (Aplauso).
- BENTES, Ivana. Estéticas das periferias: rural, urbano, global. Revista Programadora Brasil, n. 1, fev. 2007. p. 38-40.
- BRAGANÇA, Felipe. Carta de Iguatu, 24 de agosto de 2005. Contracampo, n. 77. Plano geral. Disponível em: < http://www.contracampo.com.br/77/iguatu.htm >.
- BRANDÃO, Alessandra. O chão de asfalto de Suely ou a anti-Cabíria do sertão de Aïnouz. In: HAMBURGER, Esther; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro; AMANCIO, Tunico (Orgs.). Socine: Estudos de cinema. São Paulo: Annablume, Fapesp e Socine, 2008. (Socine - Estudos de cinema,VIII). pp. 91-98
- LOPES, Denilson. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
- MALCHER DOS SANTOS, Márcia Vanessa. O salto do cinema brasileiro contemporâneo no céu do sertão: uma análise dos filmes O céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.
- OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. O céu de Suely. Contracampo, n. 82. Crítica. Disponível em: < http://www.contracampo.com.br/82/festoceudesuely.htm >.
- SANTOS LIMA, Paulo. Corpo valioso. O céu de Suely, de Karim Aïnouz. Cinética, Edição especial cinema brasileiro, 2006. Disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/suelycartaz.htm >.
- SOUZA VIEIRA, Marcelo Dídimo. O sertão utópico do cinema brasileiro contemporâneo. In: SOUZA, Gustavo; CÁNEPA, Laura; DE BRAGANÇA, Maurício e CARREIRO, Rodrigo (Orgs.). XIII Estudos de cinema e audiovisual – Socine – Imaginários invisíveis. São Paulo: Socine, 2012. v. 2, p. 22-35.
- XAVIER, Ismail. Ismail Xavier fala sobre o cinema de Karim Aïnouz (entrevista a Pedro Butcher). Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. 2010. Ilustríssima.
- YOUNG, Deborah.Review: Suely in the Sky.Variety, 5 set. 2006. Disponível em: < http://variety.com/2006/film/markets-festivals/suely-in-the-sky-1200513711/ >.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
O Céu de Suely.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67352/o-ceu-de-suely. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7