Santiago
Texto
Análise
Dirigido pelo documentarista João Moreira Salles (1962) e produzido pela Videofilmes, Santiago é um ponto de virada decisivo na filmografia do diretor, cujo filme Notícias de uma Guerra Particular (1999), realizado com Katia Lund (1966), é um marco do cinema brasileiro dos anos 1990 sobretudo no contexto de um mapeamento analítico do problema do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Se em Nelson Freire (2002) e Entreatos (2004) João Moreira Salles acompanha, por um determinado período, a rotina de personagens tão singulares quanto ilustres, como o pianista Nelson Freire ou o então candidato à presidência da República, Luis Inácio Lula da Silva, é em Santiago que Salles, reencontra um novo caminho para seu documentário. Com Santiago, cujo personagem em questão é Santiago Badariotti Merlo (1912-1994), que fora mordomo da família Moreira Salles por mais de 30 anos, Salles realiza seu filme mais pessoal e "intransferível", como ele mesmo costuma dizer, colocando em prática uma idéia que vinha defendendo nos últimos anos. Segundo Salles, o documentário não teria a obrigação de consertar o mundo, mas de transformar o próprio documentário, quando a atenção migra do tema para a maneira de narrar e o olhar que se voltava para fora, interessado apenas no "outro", de outra classe social, volta-se para dentro, interessado em temas próximos à vida dos diretores. Respondendo a suas necessidades pessoais e a essa defesa por um "cinema inútil", conforme expressão do diretor, um cinema comprometido em primeiro lugar com a investigação da própria linguagem (e não apenas da realidade), Salles retoma em 2005 a tentativa de um filme, sobre o ex-mordomo Santiago, por ele não-concluído treze anos antes, época em que as imagens foram rodadas.
Filme intransferível, apenas Salles pode realizar o longa-metragem, fruto de um fracasso. Filmadas em 1992, as imagens do filme não foram então editadas, pela incapacidade de Salles em ver sentido na articulação delas na montagem, assim como pela sensação de artificialidade que delas emanava. Na época, o diretor passou cinco dias interagindo com Santiago em seu pequenino, mas povoado de objetos e memórias, apartamento no bairro do Leblon, enquanto também filmava os espaços vazios da então abandonada "casa da Gávea", mansão onde Salles nasceu e viveu até os 20 anos, e que hoje constitui o Instituto Moreira Salles (IMS), Rio de Janeiro. Personagem incomum, homem de vasta cultura, prodigiosa memória e hábitos idiossincráticos (como ter compilado por mais de 50 anos a história da aristocracia da humanidade), a presença de Santiago, junto a imagens ilustrativas de seu imaginário e aquelas da casa da Gávea não garantiam a unidade e existência do filme. Em 2005, treze anos depois e não contando com o patrocínio de leis de incentivo ou de editais públicos, Salles resolve voltar a esse material, porém sem a intenção de necessariamente transformá-lo em uma obra acabada. Imbuído da liberdade e do descompromisso em relação ao que ao futuro do material filmado, o diretor convida o montador Eduardo Escorel, que, junto a sua assistente Lívia Serpa (depois tornada co-montadora), dão forma ao filme que recebe então o subtítulo "uma reflexão sobre o material bruto". Na montagem, é acrescida ao plano das imagens, já captadas em sua quase totalidade, uma narração auto-reflexiva e em primeira pessoa, que discorre sobre o processo de filmagem, sobre a relação de Salles com Santiago e sobre a própria natureza do documentário. Construída simultaneamente ao processo de edição, essa narração permite que o cineasta possa refletir sobre o tempo que separa a filmagem da montagem e sobre a distância que se instala, não só no tempo, mas no próprio espaço da cena, entre diretor e personagem. Suspeitando de seus procedimentos e opções estéticas, João Moreira Salles delega essa narração em primeira pessoa à voz de seu irmão Fernando, criando com isso a primeira e mais evidente camada de ambigüidade. Antes de Fernando Moreira Salles, outras narrações foram testadas, nas vozes do montador Eduardo Escorel e do ator Fernando Alves Pinto, que também narra a versão em inglês do filme.
Construído em camadas, tanto do ponto de vista da composição dos planos como da estrutura urdida pela montagem, Santiago contempla diversas linhas narrativas: filme sobre o processo equivocado de um primeiro documentário fracassado; filme sobre o encontro (ou a tensão) entre a memória prodigiosa do ex-mordomo Santiago e a memória do próprio João Moreira Salles, que acaba tornando-se personagem de seu próprio personagem; filme sobre a transformação de um documentarista, que passa a suspeitar de seu material filmado e enfim da própria vida; filme cujo tema último é o tempo e o desaparecimento, mas cuja forma crê na imagem como antídoto para o esquecimento. Se Santiago apresenta tantas camadas, ele o faz incorporando seus restos, aquilo geralmente sobra no material filmado antes e depois dos comandos de "ação!" e "corta!", aquilo que no filme original estaria de fora. Gestos de Santiago, expressões faciais, aflições, silêncios, hesitações. Falas do documentarista, recusas, pedidos de repetição, afeto dominador, impaciência e prepotência. Construído como um ensaio cinematográfico, isto é, como um filme que se organiza a partir do questionamento de seu próprio método, Santiago termina por ser um filme sobre a mediação: há o diálogo com o cinema (com trechos de filmes de Vincent Minellli, Yasujiru Ozu, imagens domésticas em super-8 e fotografias) e a opção pelos planos fixos, abertos e em profundidade de campo, em que há sempre algum anteparo entre a câmera e o corpo do ex-mordomo (como cortinas, sombras, portas, maçanetas e objetos diversos). Dessa forma, Santiago, o filme, evita uma aproximação invasiva e íntima de Santiago, o personagem.
Vinculado a um mundo nobre e aristocrático, fundado no valor da arte e dos rituais (uma reza em latim, uma dança com as mãos, a liturgia frente ao texto e a contrição diante do passado), Santiago era um admirador da distinção, do decoro e do respeito, valores que o filme se empenha em formalizar. Essa formalização "distanciada", às vezes asfixiante em seu rigor, somada a uma evidente prepotência de Salles, que vai se acentuando no decorrer das filmagens, dá margem a que, numa das seqüências finais, o narrador questione o motivo pelo qual uma distância intransponível teria se instalado entre ele e Santiago, a ponto de Salles recusar um último pedido do ex-criado - "e por fim, quando Santiago tentou me falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmera". Ao admitir, em um gesto de contundente autocrítica social, que essa distância é fruto de uma relação entre patrão e empregado que se manteve ao longo das filmagens, Santiago, em mais uma camada, também se torna um filme sobre uma relação de poder. Entretanto, se, de um lado, a postura de Salles nas filmagens de 1992 é marcada pelo autoritarismo, de outro, ao manter na montagem de 2005 essa recusa a um último pedido de Santiago, provavelmente por uma "confissão", Salles alça esse gesto a uma dimensão política.
Santiago fez mais de 50 mil espectadores em sala de cinema e recebeu diversos prêmios, como Melhor Documentário no Festival Cinéma du Réel (França, 2007), Prêmio do Público de Melhor Filme no Festival de Alba (Itália, 2007), Melhor Documentário no 11º Festival Latinoamericano de Cine (Peru, 2007), Prêmio do Público de Melhor documentário no 6º Discovering Latin America Film Festival (Inglaterra, 2008), Melhor Documentário no Miami International Film Festival (EUA, 2008) e Melhor Documentário e Melhor Edição pela Academia Brasileira de Cinema (Brasil, 2008), tendo sido incorporado ao acervo permanente do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. No país, a crítica o recebe calorosamente, chamando atenção para o fato de que João Moreira Salles, através de Santiago, faz um ótimo filme sobre si mesmo, como enfatizou Inácio Araújo na Folha de S. Paulo. A tradicional separação entre sujeito-objeto, cineasta-personagem, que o filme põe em crise, também é muito comentada. Bernardo Carvalho (1960), no artigo "A falta é o sentido", também publicado na Folha de S. Paulo, afirma que Santiago trata não apenas da relação entre o mordomo e o filho do patrão, mas de um vazio constitutivo, que se exprime pela impossibilidade de o narrador realmente se expor. Não sendo sobre Santiago, o filme se serve da figura do ex-mordomo para dizer que nenhuma imagem ou palavra podem dar conta do que ele tem a dizer, e que em algum lugar desse vazio está a dor e a plenitude de um sentido que só pode ser compreendido pela falta. Ilana Feldman, em texto publicado na revista eletrônica Trópico, defende que em um momento histórico marcado por uma hipertrofia da primeira pessoa, quando a exposição da intimidade e a confissão são demandadas, Santiago produz como efeito político uma recusa estratégica - afinal, possivelmente Santiago confessaria algo que, por estar demasiadamente ligado a sua intimidade, lhe conferiria uma verdade ou uma identidade inescapável. Preservando Santiago da confissão de um "segredo" e da auto-exposição, Santiago termina por problematizar nosso próprio olhar, modernamente fundado na valorização do âmbito privado da vida, com sua crença na idéia de intimidade e autenticidade.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 12
- ARAUJO, Inácio. Salles usa mordomo como espelho e faz um ótimo filme sobre si mesmo. Folha de S.Paulo, Ilustrada, 24 agos. 2007.
- CARVALHO, Bernardo. A falta é o sentido. Folha de S.Paulo, Ilustrada, 10 abr. 2007.
- EDUARDO, Cléber. Subjetividade mediada: entre a família universal e a classe social. Revista Cinética, 2007. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/santiagocleber.htm.
- FELDMAN, Ilana. Na contramão do confessional: o ensaísmo em Santiago, Jogo de cena e Pan-cinema permanente. In: MIGLIORIN, Cezar (org.) Ensaios no Real. Rio de Janeiro: Azougue, 2010. p.149-167.
- FELDMAN, Ilana. Santiago sob suspeita. Trópico. ago-set, 2007. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2907,1.shl.
- FREIRE, Marcius. Relação, encontro e reciprocidade: algumas reflexões sobre a ética no cinema documentário contemporâneo. Revista Galáxia, São Paulo, n. 14, p. 13-28, dez. 2007.
- LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
- MESQUITA, Cláudia. Retratos em diálogo - notas sobre o documentário brasileiro recente. Novos estudos CEBRAP, n.86, mar. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n86/n86a06.pdf.
- MIGLIORIN, Cezar. Entre o saber e a experiência. Revista Cinética, 2007. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/santiagocezar.htm.
- SALLES, João Moreira. O cinema inútil. NoMínimo, 2005.
- _________. Fiz o filme para me curar - entrevista concedida a Armando Antenore. Revista Bravo!, agos. 2008.
- __________. As ambições do Brasil se tornaram mais medíocres - entrevista concedida a Silvana Arantes. Brasil, Folha de S.Paulo, 13 de agosto de 2007.
Como citar
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SANTIAGO.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67307/santiago. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7