Luar do Sertão
Texto
Uma das mais conhecidas músicas do cancioneiro brasileiro, Luar do Sertão tem sua primeira gravação por Eduardo das Neves (1874-1919), em disco da Odeon lançado em 1914, catalogado como toada sertaneja. Na esteira da música chamada “caipira” ou “sertaneja” – fusão de ritmos e gêneros do interior do país, tais como modas, toadas, cateretês e emboladas – esta gravação se encerra com um diálogo entre o intérprete e uma das coristas, remetendo aos laços comunitários do homem rural. Com versos singelos, intercalados pelo estribilho:
Não há, oh gente
Oh não,
Luar como esse
Do Sertão.
A canção traz referências à natureza e à simplicidade da vida no campo. Evoca a lua, a serra, a mata, a viola, o canto da sururina, o galo triste, a onça contemplando o luar sem pressa, em contraponto à “gente fria” e ao “luar escuro” da cidade. A simplicidade é um dos fatores responsáveis por sua perpetuação na memória afetivo-musical de várias gerações.
Os versos são inspirados no coco É do Maitá ou Meu Engenho é de Humaitá, adaptado e apresentado a Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) pelo violonista João Pernambuco (1883-1947), que leva alguns anos para reivindicar a coautoria. O motivo provável é o fato de se considerar um adaptador, não compositor. O radialista e pesquisador Almirante (1908-1980) que, a partir de 1939 torna Luar do Sertão prefixo musical da Rádio Nacional, reacende a polêmica em seus programas nos anos 1950. Mais tarde, em seu livro No Tempo de Noel Rosa (1963), reitera a versão de que Catulo teria se apropriado da melodia de Pernambuco para compor seus versos, amparando-se em depoimentos de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Mozart de Araújo (1904-1988), Sílvio Salema (1901-1976) e Benjamin de Oliveira (1870-1954). Na mesma direção, Ary Vasconcelos (1926-2003) relata, em seu Panorama da Música Popular Brasileira na Belle Époque (1977), ter ouvido Luperce Miranda (1904-1977) tocar duas versões do É do Maitá: a original e outra de João Pernambuco, esta muito parecida com Luar do Sertão.
Quando a toada é lançada, Catulo já é reconhecido como poeta e mediador cultural. Consegue levar o violão, instrumento rechaçado pela elite, ao prestigiado recital no Instituto Nacional de Música (1908). João Pernambuco também conquista espaço, e lança moda no Rio de Janeiro, com a caracterização sertaneja do seu Grupo Caxangá, que encerra o ciclo de conferências Lendas e Tradições Brasileiras. O ciclo foi promovido pelo escritor Afonso Arinos (1868-1916) no Theatro Municipal de São Paulo no ano seguinte à gravação. A tendência regionalista ganha fôlego: toadas, canções sertanejas e outros gêneros regionais passam a conviver com valsas, mazurcas e cançonetas francesas nos salões da capital. Tais gêneros perdem a preferência para o samba no final dos anos 1920.
Dedicado a Assis Chateaubriand (1982-1968), o poema, com suas 12 estrofes, é publicado por Catulo em seu livro Mata Iluminada (1924). Antes disso, a canção já é cantada nas rodas de serestas em versão reduzida, fixada pelo padrão dos registros fonográficos, com faixas em torno de três minutos de duração. Ela se estrutura em uma única frase. A segunda parte é uma variação estrita da primeira, permitindo ao refrão soar ao fundo, cantado ou tocado, simultaneamente à estrofe, que traz as novas letras. A dos anos 1930, todas as gravações restringem-se a três estrofes, que variaram conforme o intérprete, assim como o gênero indicado no selo do disco. Isto aponta a fluidez dos gêneros na indústria fonográfica brasileira, e o estabelecimento de padrões de instrumentação na música gravada, nos quais os grupos de choro e seresta têm papel fundamental.
Além de toada, Luar do Sertão é chamado de canção, nas gravações de Paraguassu (1890-1976), em 1936; de Francisco Alves (1898-1952), em 1943; na versão de Singing Babies, em 1935; de Vicente Celestino (1894-4968), em 1952 e Paulo Tapajós (1913-1990), em 1955. Nota-se o contraste entre as gravações de Eduardo das Neves e Paraguassu, nas quais o coro e a instrumentação são mais contidos, com o tratamento orquestral grandiloquente; a versão de Vicente Celestino tem seu característico dó de peito, e a de Francisco Alves, orquestração em ritmo jocoso. A mais discrepante das versões é a do conjunto vocal feminino norte-americano Singing Babies, que, segundo Mário de Andrade (1893-1945), “não chega a ser caricatura porque nos assombra em seu maligno exotismo”.1
A partir do sucesso de Luar do Sertão, Catulo muda os rumos de seu trabalho, passando de conhecido autor de modinhas a poeta sertanejo. A poesia de Luar do Sertão, ainda fiel às regras gramaticais e aos cânones românticos, é a porta de entrada para trabalhos que ora levam o poeta a ser criticado, ora elogiado. A crítica vem de autores como Monteiro Lobato (1882-1948), avesso às deturpações da norma culta em função do dialeto caipira. O elogio vem, por exemplo, de Mário de Andrade que reconhece na imitação da dicção e do sentir do homem rural o aspecto mais admirável de sua poesia. Em entrevista para Joel Silveira (1918-2007) e Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), Catulo declara ter escrito mais de 200 modinhas, criado um novo estilo, “mas, com o império dos sambas e das marchinhas, tudo isso já morreu! De todo esse florilégio lírico só não morrerá o Luar do Sertão.2
A percepção do poeta parece acertada: Luar do Sertão é uma das canções mais regravadas na história da música popular brasileira de todas as gerações. Recebe versões de Orlando Silva (1915-1978), Luiz Gonzaga (1912-1989), Inezita Barroso (1925-2015), Maria Bethânia (1946), Elba Ramalho (1951), Elomar (1937), Xangai (1948), Chitãozinho e Xororó, Baden Powell (1937-2000), Caetano Veloso (1942), Jair Rodrigues (1939-2014), Milton Nascimento (1942), Roberto Côrrea (1957), Eliete Negreiros (1951). No funeral de Catulo, ela é entoada por milhares de pessoas.
Notas
1. ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: INL, 1975. p. 126.
2. Segunda edição publicada em 1945, citada por VASCONCELOS, Ary. Panorama da Música Popular Brasileira na Belle Époque. Rio de Janeiro: Livraria Sant’Anna, 1977. p. 121.
Fontes de pesquisa 8
- ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: INL, 1975. 247 p.
- CEARENSE, Catullo da Paixão. Matta Iluminada. Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1924.
- GALVÃO, Walnice Nogueira. Metamorfoses do sertão. Estudos Avançados. São Paulo, v. 18, n. 52, set./dez. 2004. Disponível em:< http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000300024 >. Acesso em: 21 out. 2015.
- MORAES, Kleiton de Sousa. Catullo Cearense ou a trajetória literária de um bardo ordinário. XXVII Simpósio Nacional de História. Natal, 22 a 26 de julho de 2013. Disponível em: < http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371332449_ARQUIVO_Catullosertanejo-artigo_1_.pdf >. Acesso em: 21 out. 2015.
- PINTO, João Paulo do Amaral. A Música Caipira e o advento do disco. Sonora – Revista do Instituto de Artes da Unicamp. Campinas, v. 2, n. 3 (2). Disponível em: < http://www.sonora.iar.unicamp.br/index.php/sonora1/article/viewFile/20/19 >. Acesso em: 21 out. 2013.
- SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 1: 1901-1957). São Paulo: Editora 34, 1997. (Coleção Ouvido Musical).
- VASCONCELOS, Ary. Panorama da Música Popular Brasileira na Belle Époque. Rio de Janeiro: Livraria Sant'Anna, 1977.
- ZAN, José Roberto. Tradição e assimilação na música sertaneja. Anais do 9º Congresso Internacional da Brazilian Studies Association (Brasa). Nova Orleans, Louisiana, Tulane University, 2008. Disponível em: < http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Jose-Roberto-Zan.pdf >. Acesso em: 21 out. 2015.
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LUAR do Sertão.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra6120/luar-do-sertao. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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