O Anjo Nasceu
Texto
Análise
O Anjo Nasceu (1969), dirigido por Julio Bressane é realizado ao mesmo tempo em que Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), com o qual forma um dístico que marca a ruptura do cineasta com o Cinema Novo, movimento que até então participa, Bressane passa assim a ser identificado ao Cinema Marginal.
O Anjo Nasceu acompanha a trajetória de dois marginais: Santamaria [Hugo Carvana (1937-2014)] e Urtiga [Milton Gonçalves (1934)]. No começo do filme eles estão numa favela. Há um longo plano geral em que discutem, dando a entender que a polícia cercou o morro e é preciso fugir. No plano consecutivo vê-se a fuga de Urtiga e Santamaria, este já com um ferimento na perna, e a invasão dos dois foragidos a uma casa, que usam para se esconder. Em seguida, a dona da casa [Norma Bengell (1935-2013)] chega acompanhada da empregada (Maria Gladys) e de um rapaz, que logo é assassinado. As duas mulheres são feitas reféns e obrigadas a servir os bandidos, que passam a agir como os donos da casa. Criando um paralelo ao eixo central de ações apresentado, outras cenas, que não estão diretamente relacionadas com esse enredo, vão sendo enxertadas no filme, como, por exemplo, a visão idílica de um casal de noivos sendo fotografado num bosque em fim de tarde.
A seqüência, de tom suave que contrasta com o restante do filme, sugere a imagem de um paraíso perdido, um reino de felicidade ainda intocado (sensação reforçada pela agradável e antiga canção norte-americana que lhe faz fundo).
No entanto a suspensão causada pela cena só reforça a sensação de crueldade, quando a narrativa retorna ao domínio dos bandidos. Santamaria acha o diário da dona da casa e o lê em tom de deboche: “Só o casamento transforma uma rosa em repolho”. Assim a imagem idílica dos jovens se coloca não só como oposição à violência da trama central, mas em contraste com a desilusão e o desgaste na vida amorosa da personagem interpretada por Bengell.
Cada vez mais ambientados na casa, os bandidos vêem na televisão a chegada do homem à lua, evento que ocorre no mesmo ano em que é feito o filme. O discurso emocionado de Nixon, presidente dos EUA, enquanto os astronautas descem da nave, gera em Urtiga e Santamaria a mesma reação que a causada pelo diário da madame: deboche e descaso. O progresso e a civilização não só são vistos com descrença pelo filme como, na verdade, são tidos como molas mestras de um processo de degeneração.
O Anjo Nasceu se abre com cartelas, que são no decorrer do filme apresentadas como inserts, mostrando ilustrações da vida marinha que parecem tiradas de um livro infantil, com destaque para as que trazem um tubarão se alimentando ferozmente de peixes menores. Essas ilustrações colocam desde o início a violência sob um ponto de vista que destaca seu aspecto instintivo, como lei natural da cadeia alimentar. Essa violência se projeta no jogo de poder vigente na casa e em todas as relações humanas exploradas pelo filme. A comparação criada pela sobreposição da trama central com essas cartelas afasta O Anjo Nasceu de uma explicação sociológica para o cenário de violência. Santamaria e Urtiga não praticam banditismo social, não são bandidos justiceiros. Interessa a Bressane uma violência em estado bruto, irracional, bem como apresentá-la dentro de uma perspectiva em que toda e qualquer possibilidade de paz é utópica. Santamaria, por exemplo, a certa altura do filme, fala no desejo de ter um sítio para repousar, um sonho de descanso absolutamente inalcançável, sobretudo em se considerando o seu repertório de violência e brutalidade.
O filme que faz o dueto com O Anjo Nasceu, Matou a Família e Foi ao Cinema, possui uma narrativa fragmentada, compondo um mosaico de situações dramáticas independentes, que têm em comum atos de crime passional ou ações insólitas. O Anjo Nasceu mantém uma narração linear interrompida apenas pela cena do casamento e pelas cartelas com desenhos dos peixes. No entanto, apesar de linear, a narrativa recorre com frequência às elipses e descarta a evolução dramática convencional. O roteiro escrito por Bressane é mínimo, composto de frases lacônicas, puras descrições de ações secas, sem qualquer dado elucidativo sobre o passado dos personagens e sem qualquer fator de intriga. A narrativa é fundada em eventos representados segundo um princípio de observação neutra, que descreve de modo impassível as maiores barbaridades. Não procura refletir, na maneira de filmar, qualquer reação emocional aos acontecimentos nem ambiciona esboçar qualquer explicação, o que vale é a sucessão dos fatos consumados.
Sem conversas ou indícios que permitam ao espectador antever a decisão de abandonar o lugar, os bandidos matam as duas mulheres a navalhadas e fogem no carro da dona da casa. A morte das mulheres é filmada com absoluta frieza e imparcialidade: uma câmera distante, não-participativa, diametralmente oposta à câmera na mão inquieta e tateante de Terra em Transe, por exemplo. Em O Anjo Nasceu, a violência transborda, invade a própria estrutura do filme. Essa agressividade é decorrência natural de um filme que quer – e precisa – romper: com a estrutura do cinema brasileiro, com a ilusão do espetáculo, com as elaborações socialmente abrangentes do Cinema Novo, com o perfil cultural do público.
Depois de saírem da casa da madame, Santa Maria e Urtiga se refugiam temporariamente num cinema. Enquanto Urtiga ri às gargalhadas com o filme exibido (provavelmente uma comédia ligeira da era silenciosa), Santamaria sofre, totalmente absorvido pela dor da perna machucada, e pede para irem embora. A ferida, que acompanha Santamaria por todo filme, vai ficando cada vez pior e mais dolorida, o que aumenta a sua obsessão pela figura de um anjo – que ele diz estar por perto e que deseja encontrar. Urtiga, mais pragmático, se impacienta com o devaneio místico do parceiro. Dando continuidade à fuga, pegam uma estrada sem ameaças à vista, mas é a dor insuportável do bandido que dá a tônica da seqüência. Santamaria grita enquanto Urtiga o observa.
A narrativa de poucos eventos se interrompe quando a câmera abandona o carro que se afasta e se perde na perspectiva da estrada, levando também para longe o grito de dor de Santamaria. O que sobra é um presente tão imediato quanto incômodo. Enquanto observamos a estrada, a marchinha “Peguei um ita no norte” toca na íntegra. Vem um período de silêncio e a imagem permanece. A insistência dessa imagem assinala um fim de década angustiante, que contradiz o entusiástico discurso artístico brasileiro do início dos anos 1960.
A permanência na tela da estrada vazia, em quadro composto com um rigor e uma simetria inabaláveis, vai se tornando mais e mais agressiva. E há um repentino movimento em zoom-in, que converge para a aspereza do asfalto sem propósito aparente, desconcertando novamente o observador com a nova agressão estética.
No final, o letreiro “E dezenove virou vinte” aparece escrito na tela em meio ao interminável plano. Esta imagem da estrada vazia, que insiste por cerca de dez minutos, se tornaria um emblema do filme. Uma música marcada por incômoda dissonância vem corroborar o mal-estar e estendê-lo na ponta preta que encerra o filme.
O Anjo Nasceu e Matou a Família representam uma mudança de paradigma. No trabalho com a violência social e estética, Bressane busca uma outra relação com o espectador, um outro modo de viver o cinema. Enquanto o Cinema Novo, a partir de 1969, procura as cores, a sofisticação da produção e a comunicação com o grande público (como é o caso de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, finalizado no mesmo ano de O Anjo Nasceu), Bressane adota o 16 mm e o preto-e-branco, a filmagem em poucos dias, o baixo custo de produção, a completa liberdade para a exploração autoral, sem oferecer atrativos imediatos para o espectador.
Por ter como protagonistas um branco e um negro, O Anjo Nasceu é freqüentemente comparado a Câncer (1968-72), de Glauber Rocha (1939-1981), também com Carvana no elenco, embora sem Milton Gonçalves (Antonio Pitanga faz o personagem negro). Isto somado a outros argumentos leva Glauber a dizer que seu filme, de 1968, teria sido o precursor de O Anjo Nasceu e de todo o cinema marginal brasileiro. Glauber ataca, em textos, o que ele chama de “intentona udigrudista”, ao passo que defende Câncer como “o primeiro e único filme underground” feito no Brasil.
Os dois filmes realizados por Bressane em 1969 possuem históricos de exibição diferentes. Nos onze dias em que consegue se manter em cartaz antes da ação da censura, Matou a Família faz surpreendente sucesso de público. Já O Anjo Nasceu é exibido no Festival de Brasília e consecutivamente censurado, situação em que permanece até fevereiro de 1973, quando estréia no Rio de Janeiro. Já em São Paulo, o filme tem lançamento em 1974.
Quando exibido no Festival de Brasília, O Anjo Nasceu ganha a adesão incondicional do também diretor Rogério Sganzerla (1946-2004). Da relação de admiração e consequentemente de amizade entre Bressane e Sganzerla surge a Belair, produtora que no início de 1970, num intervalo de poucos meses, realizará não menos que seis longas-metragens (três de Bressane e três de Sganzerla) e um diário de filmagens (A Miss e o Dinossauro).
Devido ao longo período em que permanece censurado, boa parte da produção crítica em torno do filme é feita somente a partir da segunda metade dos anos 1970. A revista Cine Olho, em 1979, publica um dossiê com textos críticos sobre o filme. Entre eles o de Jairo Ferreira coloca O Anjo Nasceu como um parente estético de Limite, de Mario Peixoto (1908-1992), pelo grau de experimentação e invenção, pela desconfiança em relação aos signos do progresso e pela mescla de fúria e lirismo. Os críticos Jean-Claude Bernardet (1936) e Ismail Xavier (1947) também dedicam à obra estudos em seus livros O Vôo dos Anjos (1991) e Alegorias do Subdesenvolvimento (1994), respectivamente.
Fontes de pesquisa 12
- ADRIANO, Carlos e VOROBOW, Bernardo (orgs.). Julio Bressane - Cinepoética. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1995.
- ADRIANO, Carlos. O Anjo Nasceu. In: LABAKI, Amir (org). O Cinema Brasileiro: de O Pagador de Promessas a Central do Brasil. São Paulo: Publifolha, 1998.
- BERNARDET, Jean-Claude. O vôo dos anjos. São Paulo: Brasiliense, 1991.
- BRESSANE, Julio. O Anjo Nasceu - roteiro original. Contracampo nº 43. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/43/frames.htm. Acesso em: março de 2011.
- FERREIRA, Jairo. A Transgressão do Limite. Cine Olho, nº 5/6, jun/jul/ag de 1979, pp. 55-57.
- HEYNEMANNN, Liliane. Uma desleitura de O anjo nasceu. Cinemais, n. 22, p. 163-85, mar.-abr. 2000.
- MACHADO, Rubens. Observação sobre O Anjo Nasceu. Cine Olho, nº 5/6, jun/jul/ag de 1979, pp. 52-53.
- PUPPO, Eugênio e HADDAD, Vera. Cinema Marginal e Suas Fronteiras: Filmes Produzidos nas Décadas de 60 e 70. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil/Heco Produções, 2004.
- RAMOS, Fernão. Cinema Marginal, 1968/1973: A representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987.
- SESC São Paulo. Cinema Inocente: Retrospectiva Julio Bressane, 2003. 110 p. il.
- Torino Film Festival, 20, 2002. Julio Bressane. A cura di Simona Fina e Roberto Trigliatto. Torino: Associazioni Cinema Giovani, 2002. 344 p. il.
- XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993, pp. 195-240.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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O Anjo Nasceu.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67284/o-anjo-nasceu. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7