Ana Carolina

Ana Carolina, 2022
Texto
Ana Carolina Teixeira Soares (São Paulo, São Paulo, 1943). Diretora de cinema, roteirista. Influente nome de resistência no cinema brasileira, a artista constrói uma obra autoral que se debruça a pensar as relações familiares, sociais e históricas do Brasil. Suas opções estéticas e a abordagem crítica à condição da mulher contribuem para a superação de rótulos impostos às cineastas mulheres.
Filha de imigrantes espanhóis e tendo recebido formação educacional rígida, Ana Carolina gradua-se em Medicina, em 1966, pela Universidade de São Paulo (USP) onde começa a dedicar-se ao movimento político estudantil. Entre 1966 e 1968, toca percussão em um grupo de música renascentista, o Musikantiga. Inicia a faculdade de Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) em 1967 mas não chega a terminar porque se interessa pelo curso de cinema da Escola Superior de Cinema São Luiz em São Paulo, que conclui em 1969.
Em seus primeiros curtas-metragens - Lavra Dor (1968), co-dirigido por Paulo Rufino, e Indústria (1969) - reflete sobre questões básicas da realidade brasileira da época, como a reforma agrária e as batalhas do pequeno produtor rural, no primeiro, e o projeto modernizador e desenvolvimentista no segundo. Esteticamente, experimenta quebrar padrões na narrativa para que se discuta a própria noção do que é o "real" no interior de um documentário.
Funda a produtora Área Produções Cinematográficas em 1969 e dirige os curtas em que segue investigando o Brasil por meio do audiovisual, como Guerra do Paraguai (1969), Monteiro Lobato (1970) e Pantanal (1971). No mesmo período, ganha experiência de mercado ao dirigir filmes de publicidade e editar materiais para TV. Em 1973, assina a edição do média-metragem Salada Paulista, que inclui o episódio O Sonho não acabou, de sua autoria.
Já radicada no Rio de Janeiro, dirige o documentário Getúlio Vargas (1974) marcando os vinte anos da morte do controverso ex-presidente do Brasil. Para sua produção, utiliza como ponto de partida uma pesquisa que havia iniciado em 1971 na Cinemateca Brasileira com os cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), principalmente aqueles realizados entre 1937 e 1945 pelos veículos oficiais do Estado Novo.
A primeira experiência dirigindo ficção acontece com Mar de Rosas (1978), com Norma Bengell (1935-2013), Otávio Augusto (1945) e Myrian Muniz (1931-2004). A diretora e roteirista coloca em cena o poder dentro da estrutura familiar e privada para questionar quem ocupa o papel de autoridade. Na trama, Betinha, a filha que foge com a mãe que acredita ter matado o marido, coloca em descrédito as certezas estabelecidas e dentro de sua perversidade infantil questiona as angústias e as frustrações dos demais personagens em imagens e sons que mesclam absurdo e realidade.
Das Tripas Coração (1982) também examina as relações de poder, agora por meio de um interventor que chega a um tradicional colégio feminino para fechá-lo devido a problemas financeiros e administrativos. A maior parte do filme trata do conteúdo de um sonho desse homem, numa narrativa que se abre para diversos temas (o orgasmo inatingível, a rebeldia juvenil, a culpa, a inveja, a histeria, os disfarces do masculino e do feminino, o mandonismo, e a repressão como imposição da disciplina). Com a obra, Ana Carolina questiona sobre a responsabilidade dos fracassos sociais do período e, mais uma vez, contrapõe o discurso masculino ordenador ao discurso feminino que desequilibra a ordem vigente. O filme é retido pela censura quatro meses após o lançamento.
Em Sonho de Valsa (1987), a atriz Xuxa Lopes (1953) interpreta uma mulher em processo de rompimento com valores familiares antigos enquanto trata de criar sua própria identidade. Em meio a desejos conflituosos e oscilando entre a passividade e a manifestação de uma vontade própria, tem de encontrar seu caminho dentro de um universo dominado pelo pai, pelo irmão e pelos amantes. O imaginário dessa mulher é visualizado por imagens que representam literalmente o sentido figurado de vários provérbios (pisar em espinhos, carregar a cruz, cair no fundo do poço, etc).
As três obras encerram o que se considera a trilogia da diretora em que se debruça sobre diversos estágios da condição feminina: a criação da identidade da mulher-criança em Mar de Rosas; a afirmação exacerbada e confusa do grupo de mulheres adolescentes diante do universo adulto em Das Tripas Coração; a autodescoberta da identidade da mulher adulta a partir da crise com os valores antigos e determinados por homens em Sonho de Valsa. Nos três longas-metragens, Ana Carolina expressa suas escolhas estéticas como diretora e roteirista por meio de diversos recursos que marcam sua personalidade criadora: a apropriação do lugar-comum, da fraseologia popular, dos clichês e das expressões proverbiais; a articulação entre falas maliciosas e citações poéticas e filosóficas; a exposição ao ridículo de ícones religiosos ou patrióticos. Esses artifícios contribuem para a construção de um inventário cômico e agressivo de símbolos a serviço da desmontagem das estruturas sociais brasileiras.
Depois de um hiato de 13 anos - que coincide com a grave crise de políticas públicas que se impôs ao cinema brasileiro - lança Amélia (2000) em que muda o direcionamento do seu olhar - antes mais voltado para o âmbito privado e familiar, agora se estende para contornos sociais e históricos mais definidos. Trabalhando uma narrativa mais clássica, Amélia procura abordar a relação entre colonizador e colonizado e refletir sobre a questão da identidade, não em termos individuais, mas enquanto cultura de uma nação. Inventa-se um encontro no começo do século XX da "civilizada" diva francesa Sarah Bernhardt com três mulheres "selvagens" do interior de Minas Gerais, durante o qual afloram o choque de culturas, a rejeição mútua e, por fim, a dependência recíproca diante da carência material e da decadência.
Com Gregório de Mattos (2003), volta ao documentário (mas com variados enxertos ficcionalizados por atores) abordando vida e obra o poeta do século XVII conhecido como Boca do Inferno (1636-1696) e símbolo da vida que contesta, mas é engolido pela repressão política e religiosa de um país em formação. Retorna ao cinema apenas na década seguinte em A Primeira Missa (2014) em que faz sua primeira experiência com a tecnologia digital. A partir do quadro Primeira Missa no Brasil (1860) de Victor Meirelles (1832-1903), a diretora brinca com a metalinguagem expondo a criação de um filme sobre o fato retratado na pintura para evidenciar as dificuldades de fazer cinema no Brasil.
Plateia e analista das muitas transformações no Brasil, Ana Carolina tem a capacidade de gerar filmes que demonstram esteticamente os avanços e retrocessos vividos pelo país. A artista é uma investigadora do país, tomando emprestado eventos e personagens históricos para falar sobre as relações entre indivíduos e sociedade, além de construir personagens femininas em condição de protagonismo.
Obras 2
Mídias (1)
Cada voz
A série “Cada voz” é um projeto da "Enciclopédia Itaú Cultural" com registros de depoimentos de artistas de diferentes áreas de expressão, como literatura, música, teatro e artes visuais. Conduzidos pelo fotógrafo Marcus Leoni, os vídeos capturam o pensamento dos artistas sobre seu processo de criação e sua visão sobre a própria trajetória. Os registros aproximam o público do artista, que permite a entrada no camarim, no ateliê ou na sala de escrita.
ITAÚ CULTURAL
Presidente: Alfredo Setubal
Diretor: Eduardo Saron
Gerente do Núcleo de Enciclopédia: Tânia Rodrigues
Produção de conteúdo: Pedro Guimarães
Núcleo de Audiovisual e Literatura
Gerente: André Furtado
Coordenação: Kety Nassar
Produção audiovisual: Amanda Lopes
Edição de conteúdo acessível: Richner Allan
Direção, edição e fotografia: Marcus Leoni
Montagem: Renata Willig
Interpretação em Libras: FFomin Acessibilidade e Libras (terceirizada)
O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br.
Fontes de pesquisa 13
- BERNARDET, Jean-Claude. Piranha no mar de rosas. São Paulo : Nobel, 1982. p. 133-135.
- CAROLINA, Ana. A poesia improvável. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n.43, jan.-abr. 1984, p.14.
- CAROLINA, Ana. O cinema feito sob a condição feminina. Cinemais, Rio de Janeiro, n.20, nov.-dez. 1999, p. 7-39.
- CARVALHO, Elizabeth. A bela dama indigna. Revista Goodyear, São Paulo, jul.-set. 1988, p.18-19.
- FRANCO, Marilia et al. Getulio Vargas. São Paulo : FDE-Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1992.
- GANDRA, José Ruy, PAIVA, Fernando. Ana Carolina. Folha de S. Paulo, 24 out. 1982, cad. Mulher, p. 3-5.
- JORGE, Marina Soler. Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90. São Paulo : EAC/FAPESP, 2009. p.201-236.
- LOBATO, Ana Lúcia. Ana Carolina. Cinemin, Rio de Janeiro, n. 77, jan. 1992, p. 40-41.
- MAYRINK, Geraldo. Escola de serpentes. Isto É, São Paulo, 27 out. 1982, p. 64-65.
- MENDES, Adilson (org). Ismail Xavier. Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2009. p. 91-94.
- PEREIRA, Carlos M., HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Patrulhas ideológicas marca reg : arte e engajamento em debate. São Paulo : Brasiliense, 1980. p. 169-179.
- ROCHA, Flora Sussekind. Paciência e ironia. Cinema, Rio de Janeiro, n.1, 1o. sem. 1994, p. 15-22.
- SERENO, Suzana M. Primeira entrevista com Ana Carolina. Rio de Janeiro, 01 mar. 1985. [Documento inédito D199/6 do acervo da Cinemateca Brasileira].
Como citar
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ANA Carolina.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa547907/ana-carolina. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7