Amélia
Texto
Amélia é quarto longa-metragem roteirizado e dirigido por Ana Carolina (1945). O projeto, iniciado em 1989, é interrompido com a extinção da Embrafilme (Empresa Basileira de Filmes), como parte do Programa Nacional de Desestatização do governo de Fernando Collor de Mello. Nos anos que se seguem - momento em que toda a produção de cinema no Brasil decresce drasticamente - , o projeto fica parado, e é recolocado em prática no final da década com recursos captados via Lei do Audiovisual.
Ana Carolina escreve várias versões do roteiro. Nas primeiras versões, três pobres sertanejas do interior de Minas Gerais percorrem uma estrada, no início do século XX, e entram numa caverna onde se desenrola uma interminável discussão que faz alusão à novela Os Demônios (1872), de Dostoiévski. A diretora tenta retratar a situação o qual passa o Brasil, na época em que o roteiro se passa. Junta se a isso, referências da turnê da atriz de teatro francesa, Sarah Bernhardt (1844-1923), pelo país em 1905, na ocasião que culmina no episódio em que ela sofre um acidente e quebra a perna durante um espetáculo no Rio de Janeiro. A cineasta superpõe as duas histórias, e constrói sua ficção desse fato real.
A primeira cena do filme é em Paris, num teatro onde Sarah Bernhardt (Béatrice Agenin) se apresenta para uma plateia pequena e morna. A atriz vive uma crise financeira e artística; está envelhecendo e sente-se abandonada - pelo público, pela crítica, pelos homens. Compartilha suas angústias com Amélia [Marília Pêra (1943)], sua fiel camareira há 20 anos. Nascida no Brasil, Amélia convence a atriz a fazer uma turnê pela América Latina. Seria uma ótima oportunidade para Sarah, que precisa reerguer sua carreira, e também para Amélia, que aproveitaria para concluir a venda de terras em Cambuquira, interior de Minas Gerais, onde vivem suas duas irmãs, Francisca [Miriam Muniz (1931-2004)] e Oswalda [Camila Amado (1939)]. Estas, na segunda cena do filme, leem a carta recebida da irmã, por quem cultivam um forte ressentimento. Elas vivem pobremente num casebre em Cambuquira, com uma jovem agregada, Maria Luiza [Alice Borges]. Na carta, Amélia informa que está viajando para o Rio de Janeiro, acompanhada de Sarah Bernhardt, e irá vender as terras. Informa também que conseguiu para elas o trabalho de "costureiras" de Madame. E dá um conselho: "Finjam que conhecem tudo muito bem". Francisca, Oswalda e Maria Luiza rumam para o Rio de Janeiro, onde aguardam por Amélia e Sarah num hotel de luxo. São informadas, porém, de que Amélia morreu de febre amarela e já foi até enterrada. Quem traz a má notícia é Vicentine [Betty Gofman], camareira francesa de Sarah Bernhardt que se comporta de maneira militar e se dirige às brasileiras matutas em francês ou espanhol, mas nunca em português. O dinheiro da venda das terras supostamente estaria com Madame, que tem espetáculos marcados e precisa de novos vestidos.
Sarah impacienta-se com o calor dos trópicos e com os costumes "exóticos" das irmãs de Amélia. "É irritante esta vocação para a felicidade", queixa-se a Salustiano (Pedro Paulo Rangel), o empresário argentino. Ela só tem um desejo: ir embora, voltar para casa, abandonar o paraíso tropical que, acredita, pode arruinar sua saúde. Durante cinco dias, Sarah Bernhardt tenta um entendimento impossível com as três mulheres do interior de Minas. A atriz se vê como o que há de mais refinado na arte do mundo ocidental, e as três rústicas mineiras, acostumadas ao duro trabalho na terra, não ligam para os hábitos finos de Madame, que fica horrorizada com o comportamento delas. Não há, aparentemente, comunicação possível entre esses dois mundos.
No dia da estreia do espetáculo, Francisca, Oswalda e Maria Luiza estão revoltadas: não receberam o salário e continuam a pensar que o dinheiro das terras está com Sarah Bernhardt que, sem entender tal situação, apresenta Tosca, de Puccini, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. As três costureiras assistem ao espetáculo, dos bastidores, e acompanham a colocação de grandes almofadas para amortecer a queda da atriz no ato final da ópera. Decidem se vingar e retiram as almofadas. Sarah Bernhardt cai de uma altura de três metros e fratura a perna, que seria amputada dez anos mais tarde.
O epílogo de Amélia se dá em Paris, 1915: Sarah Bernhardt, com uma perna de pau, está no palco declamando I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, em francês. Entre os figurantes da grandiosa encenação, acham-se as três mineiras caracterizadas como índias.
Amélia se situa num contexto do cinema brasileiro da década de 1990 marcado por um retorno da questão nacional e política articulada às estratégias alegóricas herdadas do Cinema Novo. Num momento em que o debate sobre a globalização é tema recorrente na imprensa e nos meios intelectuais, e em que o país encontra-se em um processo de modernização, o filme expõe as contradições do arranjo mundial repondo suas determinações históricas. Retorna a discussão sobre a construção da identidade brasileira se dar sempre numa relação paradoxal com modelos exteriores que são fontes, ao mesmo tempo, de inspiração e estranhamento. O encontro do "mundo rural decadente de Minas Gerais (esse símbolo da riqueza nacional espoliada, representado pelas duas irmãs e a empregada)"1 com o universo de Sarah Bernhardt resulta na desavença, mas também na revelação de uma interdependência. Enquanto as duas irmãs insistem em reivindicar a suposta herança de Amélia que ainda não receberam, uma série de pequenas negociações e pactos temporários se tece entre elas e a atriz. Há, entre a francesa e as brasileiras, uma metáfora da relação entre colonizadores e colonizados2.
O confronto entre os dois mundos atinge seu ápice, de maneira eminentemente teatralizada, no duelo dramático entre Sarah e Francisca. A cena começa quando Francisca, Oswalda e Maria Luiza vão atrás de Sarah cobrando-lhe o dinheiro. Sarah explode de raiva, diz que não sabe do que elas estão falando e começa a acusá-las de estarem invejando sua arte, sua cultura, sua educação e seu dinheiro. "Foi lá que eu fui educada: na França", diz Sarah. "Lá aprendi a sabedoria, a inteligência, o dom da ação, o sentido das palavras, o valor do pensamento! Foi lá! Aqui, nada!". Ela declama, valoriza as palavras, emposta a voz, transforma em ato dramático seu discurso sobre a superioridade da Europa cultivada em relação à "grosseria" das três brasileiras. Francisca se aproxima, seguida de Oswalda e Maria Luiza. A francesa e as brasileiras se encaram, declaram ódio com o olhar. Ocorre um princípio de briga, com Sarah e Oswalda trocando alguns empurrões. "Vocês são apenas inação, preguiça e destruição!", esbraveja Sarah. É então que Francisca toma a frente, ergue o punho direito em pose heroica e começa sua reação, declamando I-Juca Pirama, do escritor Gonçalves Dias (1823-1864) canto guerreiro e ufanista que exalta a bravura do índio selvagem. Em seguida, Francisca emenda um verso de Castro Alves: "Colombo, fecha a porta de teus mares!". Sarah Bernhardt sai em silêncio e, por alguns segundos, realçam-se os sons dos pássaros - "aves que aqui gorjeiam". O confronto entre o discurso de superioridade de Sarah e a poesia romântica evocada por Francisca criam um tom de estranhamento na cena. Béatrice Agenin e Miriam Muniz empreendem um verdadeiro tour de force dramático, confirmando as atuações marcantes que ambas já vinham exibindo no filme.
Amélia estreia em agosto de 2000, marcando um intervalo de mais de dez anos na carreira de Ana Carolina (seu filme anterior é Sonho de Valsa, de 1987). No jornal O Estado de S.Paulo, o filme motiva várias matérias de capa no Caderno 2, além de receber análises favoráveis de Luiz Zanin Oricchio e Luiz Carlos Merten. Este último compara Amélia a Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos; passa-se dos "tempos revolucionários", no filme de Nelson, à crítica ao mundo globalizado, no filme de Ana Carolina: "[Em Como Era Gostoso o Meu Francês] comer o agente colonial era a reação política e ideológica do colonizado. Hoje é Sarah Bernhardt quem, de volta ao seu país, apropria-se antropofagicamente da arte do colonizado"3. Inácio Araújo, na Folha de S.Paulo, enfatiza o sentido trágico que vê no filme: o desentendimento que envolve as personagens, a "incapacidade de aproximar maneiras de sentir e estados sociais distantes, quando não opostos", "uma comédia de erros diante dos quais poucas vezes nos resignamos a rir"4.
Notas
1. Stella Senra, Amélia, dependência de dois mundos que se estranham", Sinopse, v. 4, nº 8, p. 38.
2. Ver Ismail Xavier, Ressentimento e realismo ameno", entrevista a Mario Sergio Conti, in MENDES, Adilson (org.), Encontros: Ismail Xavier, Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 92 (a entrevista foi publicada originalmente em Folha de S. Paulo, 3 dez. 2000).
3. Merten, Diretora mostra como era gostosa a nossa francesa, O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. D9, 19 jul. 2000.
4. Araújo, Filme mostra perplexidade do encontro entre diferentes culturas, Folha de S. Paulo, Ilustrada, 25 agos. 2000.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 7
- BILHARINHO, Guido, O Cinema Brasileiro nos Anos 90: novos filmes. Uberaba: Instituto Triangulino de Cultura, 2004. 250 p. il.
- CAROLINA, Ana, O cinema feito sob a condição feminina, Cinemais, nº 20, p. 7-39, nov./dez. 1999.
- FRANÇA, Andrea, Entre o talento e a fome, entre a terra e a errância, Cinemais, nº 32, p. 87-98, nov./dez. 2001.
- MENDES, Adilson (org.), Encontros: Ismail Xavier, Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
- ORICCHIO, Luiz Zanin, Cinema de Novo - Um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
- SALOMÃO, Marici. Ana Carolina e a comédia das diferenças. O Estado de S.Paulo, 19 jul. 2000. Caderno 2, p. D8.
- SENRA, Stella, Amélia, dependência de dois mundos que se estranham, Sinopse, v. 4, nº 8, abril de 2002, p. 38-41.
Como citar
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AMÉLIA.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67318/amelia. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7