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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Das Tripas Coração

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 20.04.2023
1982
A produção do segundo filme de longa metragem de ficção de Ana Carolina Teixeira Soares (1945) coincide com a declinante trajetória do mercado exibidor brasileiro. A partir de 1979, o crescente aumento do custo de vida, a redução do número de salas e o esgotamento de um gênero popular como a pornochanchada, cujas premissas eróticas um limitador ...

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A produção do segundo filme de longa metragem de ficção de Ana Carolina Teixeira Soares (1945) coincide com a declinante trajetória do mercado exibidor brasileiro. A partir de 1979, o crescente aumento do custo de vida, a redução do número de salas e o esgotamento de um gênero popular como a pornochanchada, cujas premissas eróticas um limitador cinema de características estritamente pornográficas vem substituir, inibem a manutenção do sistema de exibição dentro dos bem-sucedidos parâmetros de anos anteriores.

Em busca de novos públicos, alguns cineastas mais empenhados se direcionam para os filmes políticos, procurando registros da atualidade operária ou do passado sob a ditadura militar, enquanto outros dão destaque à presença do jovem na sociedade brasileira. Com Das Tripas Coração, Ana Carolina acena para o compromisso comercial representado pelo cofinanciamento de Aníbal Massaini Neto, um dos grandes produtores de filmes eróticos do período, mas ao mesmo tempo busca a manutenção de um ideário estético marcado pela ousadia e pelo experimentalismo, numa concepção autoral bastante significativa que não se furta à discussão do processo político e social brasileiro.

Como em Mar de Rosas, o filme anterior de Ana Carolina, Das Tripas Coração examina apaixonadamente as relações de poder. No primeiro, dentro da estrutura familiar; no segundo, no aparato educacional, por intermédio de um interventor (Antonio Fagundes, 1949), que chega a um tradicional internato de meninas que se encontra à beira da falência por causa de problemas financeiros e administrativos. Sua missão: fechá-lo. Adormece à espera do horário acertado para o encontro com a diretoria e, durante cinco minutos, sonha com o último dia de funcionamento da instituição escolar. A maior parte do filme trata aparentemente do conteúdo do sonho daquele homem naquilo que o sonho pode revelar com subversão e liberdade: o desejo.

No entanto, não se trata de um desejo controlado pela vontade desse narrador que sonha. Ao trazer à cena os principais personagens, a narrativa se abre para diversas facetas, como a ansiedade pelo gozo, a satisfação da vitória, o alcance da rebeldia, o castigo, a culpa, a histeria, os disfarces do masculino e do feminino, a vontade de alcançar o exercício total do poder e a repressão como imposição da ordem e da disciplina.

Talvez como forma de promover um ponto de sustentação para as diversas temáticas, seja destaque a presença reiterada de um objeto que convida a uma interpretação apoiada na psicanálise. Um piano, ao ser erguido pela fachada do edifício, desaba no chão e ora aí permanece, ora atravanca um corredor, sugerindo a presença amplificada do elemento fálico que já se indicara nas imagens iniciais quando, pela entrada segura do interventor e da câmera no colégio, simboliza-se um ato de penetração.

O colégio é o microcosmo de um poder feminino que deve se submeter ao poder masculino por meio da intervenção direta - esta é uma primeira visão sobre o filme. Entretanto, Ana Carolina acaba perguntando, sem dar respostas, a quem pertence a responsabilidade pela falência do colégio, do amor e, numa escala maior, também da política, que está presente nessa situação inicial: ao poder masculino e seu discurso ordenador ou ao poder feminino e seu discurso desequilibrador.

Embora o foco do relato pareça concentrar-se primordialmente na figura desse homem poderoso, o filme/sonho é dominado pelas mulheres (diretoras, alunas, professoras e serventes) e por alguns homens em posição secundária (o padre, o médico e o jardineiro); em suma, pelo conjunto que habita o colégio. Esse processo de deslocamento, típico do mecanismo dos sonhos, permite a abertura da narrativa por entre vários eixos de ruptura com o "real" estabelecido na abertura do filme.

Ora se estabelece uma orquestração amorosa entre três personagens à beira de um acesso de loucura: o professor Guido e as diretoras Miriam (Xuxa Lopes) e Renata (Dina Sfat), o professor de esquerda (Othon Bastos, 1933) e as duas faxineiras, o servente Flanela e duas companheiras de trabalho durante o ensaio musical que simula a gataria no cio. Ora toma consistência o embate entre duas personagens que se comportam como se uma fosse o desdobramento da outra: Miriam e Renata, Nair (Nair Bello, 1931-2007) e Muniza (Miriam Muniz, 1931-2004), uma a demonstrar uma ação de liberdade, outra a encarnar o efeito da repressão. E, por fim, a confirmar as relações que antepõem dominação e liberdade, uma ordenação sumária entre os elementos de várias gerações (meninas, moças e senhoras) ou de classes sociais (as diretoras, as professoras e os serviçais).

Portanto, não existe um começo-meio-e-fim no conjunto do filme, mas uma sucessão de desvios da ordem "habitual", sucessão que se processa por meio de um fio lógico diferente.  Em um plano, algumas poucas situações episódicas nas quais transparece a temática mais simples da sexualidade e do poder: a crise histérica da professora de química (Christiane Torloni, 1957), o exame médico das estudantes, a subversão da aluna (Maria Padilha, 1960) que urina durante a missa na capela, o fracasso amoroso do professor de esquerda a ensinar "como se faz o coito" com a servente (Cristina Pereira), a derradeira luta verbal e física entre as duas diretoras.

E, noutro plano, a entrelaçar os episódios, uma série de pequenos eventos jocosos (trocadilhos, visualização de frases feitas, hinos fora do lugar cívico-patriótico), além de revelações íntimas das alunas no quarto ou na sala de aula, discussões, falas poéticas, reflexões filosóficas. São digressões que preenchem os espaços entre cada episódio e revelam na sua maior parte a ciranda de aflições, rivalidades, invejas, ressentimentos e perversões em múltiplas formas que têm como centro a figura do professor Guido, que é nada menos que o próprio interventor - o dono do sonho.

Para Ismail Xavier (1947)1, essa "moldura do sonho" permite a interpretação de alguns críticos que nela veem a possibilidade de o filme ser uma representação das fantasias do homem diante do desejo pela mulher. No entanto, tal moldura pode ter outros significados. Pode ser apenas uma "traquinagem" da autora em mais uma de suas "pequenas perversões na ordem da representação", já que a última imagem do filme, depois que o interventor desperta de seu sono, mostra novamente o piano espatifado no pátio do colégio, desequilibrando assim o raciocínio do espectador que ilusoriamente acreditara que "tudo não passara de um sonho".

A moldura também pode ser um estratagema, no sentido da autora querer, por meio de um processo de autopoliciamento, evitar problemas com a censura da época. Houve problemas, mas paradoxalmente é a "moldura do sonho" que sustenta o processo de liberação do filme. Depois de quatro meses de luta, a censura retira a proibição exigindo apenas a inserção de um letreiro inicial (cortado da cópia mais recente em DVD), no qual se procura ratificar que o filme "apresenta uma interpretação delirante, que não corresponde à realidade. Não se trata, pois, de uma tese que se imponha a título de proposta. Neste sentido (...), não agride crenças e visões do mundo, cujos símbolos exibe"2.

Numa terceira hipótese, a moldura explicita o molde gerador da representação - o filme não é o sonho do interventor, mas como se fosse um sonho serve para apresentar as fantasias da mulher que tomam posse do inconsciente do homem, como a dizer à maneira da teoria psicanalítica de Lacan que cada indivíduo deseja o desejo do outro. Dessa maneira, ao eliminar (embaralhando) a predominância de um papel sexual sobre o outro, fugindo das fórmulas mais clássicas do esquema patriarcal/matriarcal, homem/mulher, feminismo/machismo, o filme consegue encontrar a forma para enredar, numa mesma trama, o inconsciente humano, o indivíduo racional, as instituições culturais, a divisão de classes e as estruturas políticas. Curiosamente, no entanto, embora as metáforas, os símbolos e as digressões sejam de difícil apreensão, o filme não faz da opacidade o seu instrumento de construção. Pelo contrário, a dramaticidade (que marcaria algozes e vítimas) também é demolida tanto pela ironia fina quanto pelo humor às vezes de gosto duvidoso, tentando assim atingir desde o público mais exigente até plateias de feição mais popular.

A recepção crítica ao filme de Ana Carolina é calorosa. Análises da época3 ora procuram apontar para as influências estilísticas (Nelson Rodrigues (1912-1980), Buñuel (1900-1980), Fellini, pornochanchada brasileira), como se assim o fluxo incessante de imagens, símbolos e transgressões encontrassem o seu lugar, ora procuram descrever os recursos formais que propiciam as rupturas e as transgressões (a apropriação de chistes, frases e lugares-comuns, a começar pelo título, a superposição de vozes off a contestar o discurso autoritário, o desdobramento dos personagens, a estética da carnavalização determinada pela apropriação cômica de símbolos religiosos, patrióticos ou culturais).

Das Tripas Coração recebe prêmio de melhor roteiro no Festival Internacional de Cinema de Cartagena, Colômbia; de melhor direção, melhor montagem e prêmio especial de fotografia no Festival de Gramado, Rio Grande do Sul; e de melhor direção da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), confirmando assim o seu impacto.

Notas

1. XAVIER, Ismail. O labirinto da inveja. In: Novos Estudos Cebrap, n.5, abr. 1983, p. 71
2. GANDRA, José Ruy; PAIVA, Fernando. Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 out. 1982. Suplemento Mulher, p.3.
3. FASSONI, Orlando L. Folha de S.Paulo, 28 out. 1982; HOINEFF, Nelson. O Dia, 24 out. 1982; MAYRINK, Geraldo, IstoÉ, 27 out. 1982; MATTOS, Carlos Alberto de.Tribuna da Imprensa, 30 out. 1982.

Fontes de pesquisa 12

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  • CODELLI, Lorenzo. Das tripas coração. Positif, Paris, n.257/258, jui-.-août 1982, p.82.
  • CONVERSA com Ana Carolina. Cinemais, Rio de Janeiro, n.20, nov.-dez. 1999, p. 7-39.
  • FASSONI, Orlando L. Ana Carolina e Spielberg em duas grandes estréias. Folha de S. Paulo, 28 out. 1982, Ilustrada, p.35.
  • GANDRA, José Ruy & PAIVA, Fernando. Ana Carolina: não era apaixonada pelo cinema, mas virou cineasta. Folha de S. Paulo, Suplemento Mulher, 24 out. 1982, p. 3-5.
  • HOINEFF, Nelson. Moralidade e anarquia. O Dia, Rio de Janeiro, 24 out. 1982.
  • MATTOS, Carlos Alberto de. A mulher em cinco minutos. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30 out. 1982.
  • MAYRINK, Geraldo. Escola de serpentes. Isto É, São Paulo, 27 out. 1982, p. 64-65.
  • MILLAN, Betty. Ana, como Gláuber. Folha de S. Paulo, 09 nov. 1982, p. 32.
  • PODALSKY, Laura. Fantasias e prazeres. Cinemais, Rio de Janeiro, n.16, mar.-abr. 1999, p.75-94.
  • RODRIGUES, João Carlos. O fantasma da liberdade. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n.41/42, maio 1983, p.70-71.
  • SUSSEKIND, Flora. Paciência e ironia. Cinema, Rio de Janeiro, n.1, 1o. semestre 1994, p.15-22.
  • XAVIER, Ismail. O labirinto da inveja. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.5, abr. 1983, p. 69-72.

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