Alucinação
Texto
Análise
Alucinação (1976) é o segundo LP do compositor e cantor Belchior (1946-2017). Lançado pela Philips, tem produção de Mazzola (1950) e arranjos de José Roberto Bertrami (1946-2012). Depois do trabalho de estreia, A Palo Seco (1974), o compositor alcança, com este álbum, a primeira exposição extensiva na mídia, atingindo a cifra de 30 mil cópias vendidas em um mês. Nele, estão alguns dos maiores sucessos de sua carreira, como “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, que lidera por seis semanas as paradas no rádio de São Paulo e no Rio de Janeiro. Ainda no LP, há canções de sucesso como “Velha Roupa Colorida”, e “Como Nossos Pais”. As músicas ganham projeção ao entrarem no disco e no espetáculo Falso Brilhante (1976), da cantora Elis Regina (1945-1982).
O caráter autoral do trabalho está impresso na capa, cujo verso traz o rosto de Belchior de perfil, numa pintura pastel feita por ele mesmo. À época do lançamento, o disco é definido pelo compositor como uma “viagem ao redor do quarto, da alma, do corpo, das perspectivas de cada um”, pensada durante dois anos “como o diário de uma geração”[1]. A canção que dá nome ao disco, primeira faixa do lado B, aponta a intenção de utilizar a música como instrumento de transformação social.
Influenciado pelo folk do norte-americano Bob Dylan (1941), o disco traz harmonias simples, acompanhadas por violão, em andamento compassado. Na mixagem, a voz do cantor é trazida ao primeiro plano e equalizada, para tornar as palavras mais claras. O tom nasalado é a marca de Belchior, que incorpora a maneira rascante de cantar das lavadeiras nordestinas, o canto quase falado do folk, e a agressividade do rock.
O disco traz nova versão de “A Palo Seco”, com arranjos de piano, órgão sintetizador, uma linha de baixo marcante e oacordeom da versão original. Com relação ao canto, Belchior troca o verso “Que esse desespero é moda em 73” por “em 76”, remetendo-se ao ano de cada gravação. O título, referência ao poema de João Cabral de Mello Neto (1920-1999), comporta duplo sentido: palo seco significa tanto a boca (o palato) seca, como o tom áspero.
O compositor constrói os versos recorrendo à metalinguagem e a citações poéticas. Na primeira faixa, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, uma balada com levada de blues, enuncia a opção estética e a traduz na performance: “Sons, palavras, são navalhas / E eu não posso cantar como convém / Sem querer ferir ninguém”. Nela, estão presentes as referências de escuta do compositor: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio/ Em que um antigo compositor baiano me dizia/ Tudo é divino, tudo é maravilhoso”. Citando a canção “Divino Maravilhoso” (1942), de Caetano Veloso (1942) e Gilberto Gil (1942), declara que os tropicalistas estão ultrapassados. Esta frase chega com certo atraso, pois Caetano já tinha declarado a morte da Tropicália anteriormente. Não se trata, pois, de uma crítica pessoal ao compositor baiano, cuja influência é reconhecida por Belchior.
As melodias do álbum valorizam a poesia, extensa e contestadora, que chega a ser retida pela censura, como a balada country “Não Leve Flores”. A balada “Velha Roupa Colorida”, traz metáforas literárias e musicais de pássaros pretos. A saber, O Corvo (1845), livro do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849); “Blackbird” (1968), canção dos ingleses John Lennon (1940-1980) e Paul McCartney (1942), e “Assum Preto” (1950), de Luiz Gonzaga (1912-1989) e Humberto Teixeira (1915-1979). Denuncia o cerceamento da liberdade da juventude às vésperas do Ato Institucional n. 5 (AI-5). Aborda a tensão entre passado e presente por meio do adjetivo “velha”, em contraposição às roupas coloridas da geração hippie. No mesmo sentido, a balada “Como Nossos Pais” critica a acomodação dos jovens diante desta realidade. Entre as referências poéticas desta canção há “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola (1942), e o poema “Confidência de Itabirano”, de escritor Carlos Drummond Andrade (1902-1987). A faixa “Como o Diabo Gosta” dialoga com a canção de protesto, na qual a liberdade, a iconoclastia, a agressividade e a subversão das regras são exaltadas:
O que transforma o velho no novo
Bendito o fruto do povo será
E a única forma que pode ser norma
É nenhuma regra ter.
Conflitos e o estranhamento entre o espaço urbano e o sertão fazem parte das letras e da trajetória do artista, que migra do Ceará para o eixo Rio-São Paulo no início dos anos 1970. Isso aparece em “Apenas um Rapaz” e na balada “Fotografia 3 x 4”. Nesta, o compositor cita o baião “Légua Tirana” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Faz, ainda, um jogo de palavras no verso “corre o Rio que me engana”, referência ao poema “O rio da minha aldeia”, de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935). No verso do compositor, Rio é grafado em maiúscula, assinalando a ambiguidade entre rio e Rio (de Janeiro). Na canção “Sujeito de Sorte”, a referência é o cordelista Zé Limeira (1866-1954).
O álbum desperta a atenção pela riqueza e pelo aspecto cortante de suas letras. A intertextualidade demonstra a erudição do compositor e a habilidade de ressignificar suas referências literárias e musicais. Belchior cita versos próprios e de outros compositores. No encarte com as letras, uma nota de dólar com o rosto do compositor estampada remete ao compacto Sorry Baby, lançado por ele na Chantecler em 1973. Em “Antes do Fim”, última faixa do LP, o violão dedilhado vigorosamente serve de veículo para a mensagem que deseja passar com o disco, citando uma frase da música “Alucinação”: “Que fiquem sempre jovens/ E tenham as mãos limpas/ E aprendam o delírio com coisas reais”, numa crítica frontal à estética hippie e tropicalista.
Fontes de pesquisa 7
- AIRES, Mary Pimentel. Terral dos sonhos: o cearense na música popular brasileira. Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará/Multigraf Editora, 1994.
- CARLOS, Josely Teixeira. Muito além de “apenas um rapaz latino-americano vindo do interior”: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior. 2007, 277 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2007. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8767/1/2007_dis_jtcarlos.pdf.
- CASTRO, Wagner. No Tom da Canção Cearense: Do rádio e TV, dos lares e bares na era dos festivais (1963-1979). Fortaleza: Edições UFC, 2008.
- INSTITUTO Memória Musical Brasileira. Discografia. Alucinação. In: INSTITUTO Memória Musical Brasileira, Niterói. Disponível em: < http://www.memoriamusical.com.br/pesquisa/detalheDisco.asp?iidMidia=1574 >. Acesso em: 11 nov. 2013.
- MORELLI, Rita C. L. Indústria fonográfica: um estudo antropológico. Campinas: Unicamp, 1991.
- ROGÉRIO, Pedro. Pessoal do Ceará: formação de um campo e de um habitus musical na década de 1970. 2006. 140 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2006. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3147/1/2006_Dis_PRogerio.pdf.
- SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 2: 1958-1985). São Paulo: Editora 34, 1998. (Coleção Ouvido Musical).
Como citar
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ALUCINAÇÃO.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra68509/alucinacao. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7