O Descobrimento do Brasil
Texto
Descobrimento do Brasil é dirigido por Humberto Mauro (1987-1983). Produção do Instituto de Cacau da Bahia (ICB), conta com a participação de intelectuais importantes do período, como Edgar Roquette-Pinto, então diretor-presidente do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), e Affonso de Taunay, diretor do Museu Paulista. Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compõe especialmente quatro suítes, utilizadas para a confecção da trilha sonora. O filme é parte de um projeto mais amplo de discussão acerca das possibilidades do uso do cinema em sala de aula e é peça de legitimação simbólica do regime de Getúlio Vargas (1930-1945). Apesar de não ser apenas um veículo de propaganda oficial, a obra de Mauro edifica uma leitura harmônica do passado afinada com as representações feitas no período sobre a ação "pacificadora" do governo com relação à luta de classes. No que diz respeito ao tema, insere-se na tradição historiográfica e artística já estabelecida, por meio das obras de Capistrano de Abreu (19853-1927), por exemplo, e das telas de Oscar Pereira da Silva (19867-1939), entre outros. Na época, o filme é apresentado pelos seus responsáveis como herdeiro e perpetuador desse percurso.
Descobrimento do Brasil constitui uma incursão inédita do cinema brasileiro no campo dos filmes históricos, dada a soma de recursos, o envolvimento de artistas e intelectuais e o caráter oficial adquirido pelo projeto. São empregadas diferentes estratégias de autenticação do discurso encenado pela obra: a presença de intelectuais fornece a garantia do saber histórico considerado correto do ponto de vista científico e adequado ao uso educativo; a reprodução nos letreiros de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha (1451-1500) reforça a ideia de que o filme nada mais é do que a visualização de um documento histórico e, portanto, do passado; a preocupação com a fidelidade na fala dos personagens e na confecção do cenário e dos figurinos; e o recurso à iconografia já consolidada em torno do tema como ponto de partida para a composição visual de diversas imagens do filme, tal como exemplifica a encenação da primeira missa no Brasil, retirada do quadro homônimo de Victor Meirelles (1832-1903), feito em 1861.
A visão harmônica do primeiro contato está mais bem expressa em Descobrimento na passagem que trata da recepção dada aos índios no interior da nau Capitânea. Essa sequência se inicia com dois índios entrando de livre e espontânea vontade na embarcação de um enviado português a terra. A seguir, Pedro Álvares Cabral, avisado por Caminha da chegada dos nativos, diz exultante: "Que se prepare tudo para recebê-los como hóspedes de honra".
Depois do contato estabelecido com a tripulação, os dois índios demonstram sono. Ambos se deitam e, imediatamente, Cabral, por meio de gestos, pede silêncio, solicitando que todos abandonem o local. São vistos, um a um - Caminha e frei Henrique de Coimbra incluídos -, saindo vagarosamente do campo de visão, atendendo ao pedido do capitão-mor, que permanece no quadro acompanhado de alguns guardas. A fim de que o ambiente se torne mais propício para o bom descanso dos "convidados", o comandante da expedição requer o apagamento das tochas que clareiam o local, ação que é acompanhada. No fim dessa operação, volta-se a um espaço diferente. Tal fato se deve a dois motivos: primeiro, porque a luminosidade incide de outra maneira sobre os objetos e os personagens, dando maior ênfase aos índios dormindo tranquilamente no chão e à bandeira de Portugal; segundo, por causa de uma significativa falha de continuidade da obra: frei Henrique, que há poucos segundos tinha se retirado da cena, reaparece no local, permanecendo ao lado de Cabral e da flâmula da coroa portuguesa.
A presença do franciscano nos últimos planos está de certa forma indicada no começo da sequência, quando é visto mostrando o crucifixo aos índios, dando início ao processo de conversão. Tendo em vista o papel que se atribui à religião no episódio da "descoberta", sua ausência representaria uma lacuna difícil de ser explicada. Em seu "retorno", frei Henrique ajuda Cabral no serviço de atendimento "diferenciado", propalado pelo comandante da expedição logo no começo. Após terem se acomodado no chão, o capitão-mor coloca alguns travesseiros sob suas cabeças, enquanto o religioso vai cobri-los com dois mantos. Tudo termina com o religioso abençoando os nativos, tendo ao fundo a bandeira de Portugal.
A falha de continuidade reforça o almejado sentido de harmonização ao unir brancos e índios sob a égide da conquista material e espiritual. Ao mesmo tempo, reflete os problemas estruturais do próprio cinema brasileiro, explicitando a dificuldade de confecção de um épico nos moldes do pretendido pelos organizadores do Descobrimento. A distância entre o que é idealizado e as precárias condições existentes já é notada por Roquette-Pinto, em um relatório do Ince, de fevereiro de 1937. Nele, o antropólogo reclama do alto custo de importação do filme virgem, comparando a situação de um diretor à de um cientista que tenha apenas uma página de papel em branco para resolver um árduo problema. Sem filme virgem para que o diretor possa experimentar, ele constata que o cinema brasileiro nunca sairia do "mais ou menos". Carências como essas impedem a adesão da obra ao imaginário da pintura acadêmica dos oitocentos e dos novecentos.
Por fim, cabe destacar que a única crítica contundente à representação sugerida por essa sequência é feita em 1938 pelo escritor Graciliano Ramos (1892-1953). Para ele, se os portugueses agiram daquela forma, "foram os maiores canalhas do universo, pois enganaram, adularam torpemente os desgraçados que pouco depois iam exterminar". Nesse sentido, Ramos indica um outro tipo de insuficiência na tradução fílmica da Carta de Caminha, ressaltando a leitura enganosa do documento no que tange ao efetivo papel desempenhado pelos portugueses no processo de colonização. Assim, o escritor percebe a aderência do diretor a uma visão profundamente conservadora sobre a história, o que traz nítidos contornos políticos dada a forma pela qual o espaço de constituição da nação é pensado pelo regime de Vargas.
Ao idealizar as relações entre os tupis e os portugueses em 1500, Mauro incide novamente em uma tradição cultural desde muito consolidada no Brasil com o indianismo na literatura e nas artes plásticas do século XIX. Valoriza-se simbolicamente no passado um grupo indígena que no momento de confecção da obra não representa perigo pelo simples fato de não mais existir ou já estar assimilado. Para o índio que se encontra no caminho da expansão econômica, a prática sempre é a do extermínio e confinamento. O mesmo século que vê a tela O Último Tamoio, de Rodolfo Amoedo (1957-1941), ser exposta no Salão de Paris de 1883 é o que assiste ao processo de "pacificação" dos botocudos. Enfim, Descobrimento do Brasil, a seu termo, reedita a mesma estratégia na relação entre representação e objeto representado: tupis ou guaranis, por excelência; extintos ou confinados, de preferência.
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Como citar
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O Descobrimento do Brasil.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67273/o-descobrimento-do-brasil. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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