Viagem ao Fim do Mundo
Texto
Análise
Viagem ao Fim do Mundo, segundo longa-metragem dirigido por Fernando Coni Campos (1933-1988), o filme leva três anos para ser finalizado, por conta de dificuldades de produção. Possui elementos que o distinguem como um dos precursores imediatos do Cinema Marginal, ou Udigrúdi, em particular a assimilação irreverente de diversas referências da cultura de massa e a anticonvencional fragmentação narrativa.
A duração do filme corresponde a uma viagem de avião de noventa minutos. Os personagens que estão nessa viagem compõem um painel do qual fazem parte uma atriz-modelo de publicidade, um time de futebol, um homem de meia idade que tem medo de avião, duas freiras e um rapaz que, antes de embarcar, compra uma edição em livro-de-bolso de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A leitura do rapaz, assim como as reflexões teológicas da freira em conflito com sua vocação, são transformadas em seqüências de imagens para o olhar do espectador, rodadas em outros cenários e contextos. Quando rapaz se detém no capítulo O Delírio, Coni Campos o transporta para uma praia deserta em que ele encontra Pandora e dela ouve uma série de reprovações ao homem e ao mundo contemporâneo. O texto de Machado de Assis (1839-1908) e as reflexões da freira, as quais têm como ponto de partida alguns escritos e a vida da escritora francesa Simone Weil (1909-1943), são falados em off durante as cenas que lhes correspondem.
Viagem ao Fim do Mundo inicia com uma cartela que traz a primeira de uma série de citações: "Para a unidade deste poema / ele vai durante a febre". Os dois versos do poeta Jorge de Lima (1895-1953) introduzem a recusa do filme a uma estrutura lógica. Em seguida à cartela, ao som de Alegria, Alegria (Caetano Veloso), sucedem-se planos montados em ordem aparentemente aleatória, mostrando um material variado que inclui cenas feitas nas ruas, em bancas de revista, no saguão do aeroporto e dentro do avião. Sobre esse painel heterogêneo de imagens, surgem novas citações, combinando uma vasta gama de fontes eruditas e populares: Machado de Assis, Simone Weil, T. S. Eliot, as revistas Manchete e Fatos e Fotos e os noticiários cinematográficos de Primo Carbonari.
Registros de várias fontes se somam e se contrastam na montagem, configurando uma realidade formada por uma multiplicidade de pontos de vista. Ficção, documentário, publicidade, cinejornal¹, esquetes cômicos: Coni Campos lança mão de inúmeros recursos de registro e colagem para representar um mundo em que tudo se sucede à velocidade da luz. Por noventa minutos, ele busca contar praticamente toda a história recente do mundo e captar ainda a ansiedade e a profusão do presente. Para tanto, a alta literatura lhe parece tão importante quanto as revistas sensacionalistas. A contemporaneidade, conforme retratada no filme, coloca os quadros de El Greco (são mostrados detalhes de "O Enterro do Conde de Orgaz" e "A Abertura do Quinto Selo", duas de suas pinturas mais conhecidas), os calendários com fotos de mulher nua (como o que é folheado durante os créditos iniciais) e as revistinhas em quadrinho como parte de um mesmo caldeirão visual. "Não acredito que as pessoas possam ter um comportamento lógico, cartesiano, diante da realidade atual. É exatamente isso que caracteriza não só o filme, mas também toda a verdadeira arte moderna", diz Coni Campos²
O diretor prolonga o caminho inventivo instaurado por uma segunda geração do cinema brasileiro moderno, motivada, segundo ele, por uma liberdade em relação ao comportamento pudico que caracterizaria os cinemanovistas na órbita de Glauber Rocha (1939-1981): "Parece ter surgido agora uma segunda geração libertada desses preconceitos e dessa timidez. Não seria ainda um cinema adulto, mas um cinema moleque, no sentido de ser informal dentro da realidade. Em O Bandido da Luz Vermelha, por exemplo, Rogério Sganzerla (1946-2004) não tenta utilizar uma série de esquemas pré-elaborados. Tem um comportamento inaugural diante das coisas"³.
Canções do primeiro disco solo de Caetano Veloso, como Tropicália, Alegria, alegria, Superbacana e Soy loco por ti, America, povoam a trilha sonora de Viagem ao Fim do Mundo e corroboram a relação entre o Tropicalismo e uma parte significativa do cinema brasileiro na virada dos anos 1960/1970, como se pode conferir em Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, Meteorando Kid - O Herói Intergalático (1969) de André Luiz Oliveira e Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988).
Viagem ao Fim do Mundo é premiado como melhor filme do terceiro mundo e da América Latina no Festival de Locarno, de 1968. Ao estrear no Brasil, recebe críticas favoráveis. José Carlos Avellar, no Jornal do Brasil, reconhece que se trata de um filme "desigual e confuso", mas aponta essas características como consequência natural de um cinema que se quer "arriscado, corajoso, aberto", podendo até mesmo ser encarado como um "esboço", um ensaio, um "estudo de um filme". Ele comenta também a diversidade de estilos: "Viagem procura sem preconceitos informações nas pobres chanchadas brasileiras ou no rico cinema de Godard, na imagem seca do filme documentário ou na trabalhada fotografia de uma atmosfera fantástica"4. Jairo Ferreira identifica em Viagem ao Fim do Mundo um grande painel do século XX composto num estilo que faz jus ao cenário delirante criado por guerras, drogas, alimentos enlatados, novos aparelhos eletrônicos, consumo de massa etc., mas considera a visão do filme "deslumbrada, anti-maldita". Sua linguagem careceria, segundo o crítico, de depuração e maturação. "Não há dúvida: é um dos filmes mais corajosos, e de mais substância cultural já visto no cinema nacional, mas estaciona na qualidade de painel, sem propulsionar qualquer desconexão evolutiva da linguagem. [...] inovar mesmo seria concatenar coisa com coisa, engrenar o desengrenado, organizar a linguagem da desordem para apresentar a desorganização tal qual é"5.
Notas
1. Através de imagens de antigos filmes de atualidades, ou cinejornais, Coni Campos resume os principais episódios históricos que levaram do Tratado de Versalhes à ascensão do Nazismo e ao Holocausto.
2. Ver A Viagem de Fernando Campos, entrevista a Míriam Alencar no Caderno B do Jornal do Brasil (s/d).
3. Idem.
4. José Carlos Avellar, "Viagem ao fim do mundo", Jornal do Brasil, Caderno B (s/d).
5. Jairo Ferreira, em São Paulo-Shimbun, 4 dez 1969.
Fontes de pesquisa 6
- ALENCAR, Míriam. A Viagem de Fernando Campos. Jornal do Brasil (s/d).
- AVELLAR, José Carlos. Viagem ao fim do mundo. Jornal do Brasil , Rio de Janeiro (s/d).
- CAMPOS, Fernando Coni. Cinema: sonho e lucidez. Prefácio de Pedro Butcher. Rio de Janeiro: Azougue, 2003. 174 p. il.
- FERREIRA, Jairo. Viagem ao fim do mundo. In Críticas de invenção: Os anos do São Paulo Shimbun. Organização de Alessandro Gamo. São Paulo: Imprensa Oficial; Fundação Padre Anchieta, 2006. pp. 115-117.
- HEFFNER, Hernani. Viagem ao fim do mundo. In: PUPPO, Eugênio e HADDAD, Vera (orgs.), Cinema Marginal e Suas Fronteiras: Filmes Produzidos nas Décadas de 60 e 70. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil/Heco Produções, 2004. Disponível em: [http://www.heco.com.br/marginal/filmes/longas/02_01_03.php]. Acesso em: dez. 2009.
- SEGUIN, Louis. Voyage au bout du monde. Positif, n. 102, fevereiro de 1969, p. 34.
Como citar
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VIAGEM ao Fim do Mundo.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67269/viagem-ao-fim-do-mundo. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7