O Testamento do Cangaceiro
Texto
O Testamento do Cangaceiro (1961) é uma peça escrita pelo dramaturgo Chico de Assis (1933-2015) entre 1954 e 1955. Após montagens parciais, estreia no Teatro de Arena (1953-1972), em São Paulo, no dia 7 de julho de 1961, sob a direção de Augusto Boal (1931-2009). Baseada em raízes populares da cultura brasileira, a obra é encenada num contexto de valorização do nacionalismo e de conscientização social e política.
Como primeira parte da Trilogia do Cordel, seguida por As Aventuras de Ripió Lacraia (1958) e Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre (1964), o texto é construído como folheto de cordel, de estrutura narrativa clássica. É uma farsa popular revista sob princípios e recursos do teatro épico, como a presença de música e coro, e é abertamente inspirada em A Boa Alma de Setsuan (1941), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956). Divide-se em duas partes episódicas (“Os Perigos da Bondade” e “Os Perigos da Maldade”), entrecortadas por cenas, como “causos” contados por um narrador e povoados por seres fantásticos, tratados com familiaridade.
A primeira parte da peça, escrita em 1954, é encenada na TV Excelsior por Leonardo Villar (1923-2020) e Cleyde Yáconis (1923-2013), dirigidos por Ademar Guerra (1933-1993). No Rio Grande do Sul, outra montagem traz a atriz Lilian Lemmertz (1937-1986). Apesar dessas versões prévias, é a encenação do Teatro de Arena que consagra a obra de Chico de Assis.
Desde 1958, em um cenário criado pela construção da nova capital em Brasília, pela valorização da produção industrial nacional e pelo surgimento de expressões culturais como a Bossa Nova e o Cinema Novo, o Arena inicia uma fase dedicada à encenação de textos originais de autores brasileiros, escritos durante o Seminário de Dramaturgia, voltado para a discussão sobre o país e a politização do público. A obra mais emblemática desse período é Eles Não Usam Black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006). O Testamento do Cangaceiro, embora escrito antes, integra-se a esse movimento por ser a última peça encenada em decorrência das discussões do seminário.
A perspectiva crítica brechtiana e a valorização da cultura popular se manifestam em uma intriga que acompanha uma espécie de herói do povo, astuto, em sua trajetória de superação dos ardis da vida. Cearim, o protagonista, é um sertanejo órfão de pai e mãe, mortos pela seca, que cumpre um percurso assemelhado a um auto religioso com ares medievais. Com sua paisagem de vila, igreja e prostíbulo, o cenário evidencia contradições do processo de modernização brasileiro.
Típico do cordel, o maniqueísmo se refaz sob uma perspectiva dialética, que substitui a discussão moral pelo debate ético à medida que Cearim se defronta com tipos brasileiros consagrados na comédia popular, como o golpista, a prostituta, o vigário, o sacristão, o cangaceiro, a madrinha (Nossa Senhora) e o capeta, em situações que demandam escolhas éticas para além da polarização entre bondade e maldade. Em síntese, chega-se à constatação da solidão humana e do livre arbítrio, mas também ao despertar de uma consciência de classe, individual e coletiva, com a compreensão de que a terra deve ser de quem trabalha nela.
O crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000) questiona essa solução, tendo como base de comparação a estruturação marxista de A Boa Alma de Setsuan, em que há uma crítica à propriedade dos meios de produção. Segundo ele, O Testamento do Cangaceiro mantém a reflexão no plano individual, da injustiça e do engano, para subitamente inserir camponeses como agentes de crítica política na conclusão.
Por falta de recursos financeiros para um período prolongado de laboratório, a montagem entra em cartaz no Teatro de Arena após duas semanas de ensaio, nas quais o elenco se concentra em decorar e marcar as cenas de um espetáculo caracterizado como mais falado do que escrito, em que há mais representação do que texto.
O modo de produção ligeiro deixa Augusto Boal perplexo com o sucesso constatado na estreia da peça. A reação entusiasmada do público é, em grande parte, atribuída ao carisma e à verve cômica de Lima Duarte (1930), em sua primeira experiência no teatro, mas já reconhecido pelo trabalho na televisão. Segundo Boal, no primeiro dia, Lima interpreta Cearim bem preparado. Entende o personagem e sabe tudo sobre ele.
Com cenografia e figurino de Flávio Império (1935-1985), O Testamento do Cangaceiro marca também a estreia de Paulo José (1937) no teatro, ao lado de atores como Milton Gonçalves (1934), nos papéis de Cangaceiro e Irmão; Nelson Xavier (1941-2017), narrador; Vera Gertel (1937), madrinha; e Solano Ribeiro (1939), sacristão. Parte da recepção crítica observa o descompasso entre as atuações de novatos e veteranos. Em contraponto, Décio de Almeida Prado encerra suas observações afirmando que "o Teatro de Arena é nossa única companhia a aproveitar, com inteligência e modernidade, a velha tradição cômica do teatro popular brasileiro"1. A montagem sofre veto da Comissão Municipal de Cultura de Santos (SP) durante apresentação no II Festival Brasileiro de Teatro, presumidamente pelo teor de sátira religiosa.
Apesar das forças contrárias, O Testamento do Cangaceiro torna-se um exemplo da busca por uma dramaturgia nacional crítica às relações de poder na sociedade, o que define a pesquisa de diversos grupos de teatro brasileiros entre as décadas de 1950 e 1960.
Notas
1. Acervo Augusto Boal. Disponível em: http://acervoaugustoboal.com.br/o-testamento-do-cangaceiro-3#gallery-3. Acesso em: 22 abr. 2020.
Ficha Técnica
Chico de Assis
Direção
Augusto Boal
José Renato
Cenografia
Flávio Império
Figurino
Flávio Império
Música
Carlos Lyra
Elenco
Adelaide Braga Brasil / Moça
Ângelo Del Mato / Cabo
Arnaldo Weiss / Cego
Ferreira Leite / Vigário
Milton Gonçalves / Cangaceiro; Irmão
Nelson Xavier / Narrador
Riva Nimitz / Ercília
Roberto Segreti / Sargento
Solano Ribeiro / Sacristão
Vera Gertel / Madrinha
Participação especial
Lima Duarte / Cearim
Fontes de pesquisa 9
- ASSIS, Francisco de. Teatro de cordel de Chico de Assis. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
- AUTRAN, Paula. Teoria e prática do seminário de dramaturgia do Teatro de Arena. São Paulo: Dobra Editorial, 2015.
- BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. [S.l.]: Cosac Naify, 2014.
- CARVALHO, Marcelo Braga de. O teatro de arena e sua vocação de retratar o Brasil. n. 6. [S.l.]: Arte Revista, 2015.
- CARVALHO, Tania. Paulo José: memórias substantivas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.
- KATZ, Renina; HAMBURGER, Amélia Império. Flávio Império. São Paulo: Edusp, 1999.
- LEITE, Rodrigo M. Imagens do sertão na moderna dramaturgia brasileira: alguns apontamentos necessários para uma antologia inexistente. In: REBENTO. Revista de Artes do Espetáculo. n. 5. São Paulo, jul. 2015.
- PRADO, Décio de Almeida. O testamento do cangaceiro, In: ______. Teatro em progresso. São Paulo: Perspectiva, 2002.
- ROCHA, Elaine Pereira. Milton Gonçalves - Memórias históricas de um ator afro-brasileiro. São Paulo: e-Manuscrito, 2019. pp. 268-270.
Como citar
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O Testamento do Cangaceiro.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/evento400088/o-testamento-do-cangaceiro. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7