Gota d´Água
Texto
Musical para teatro escrito pelo dramaturgo Paulo Pontes (1940-1976) e pelo compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque (1944). A peça atualiza a tragédia Medeia (431 a.C.), do poeta grego Eurípedes (480 a.C-406 a.C.), para o contexto de opressão social e patriarcal de uma comunidade periférica do Rio de Janeiro dos anos 1970.
A escrita parte da adaptação prévia do clássico realizada por Oduvaldo Viana Filho (1936-1974) para o roteiro de um “caso especial” exibido na TV Globo em 14 de fevereiro de 1973. No prefácio à publicação, a dupla de autores expressa a preocupação em criar uma obra que trate da complexa situação econômica, social e cultural do país, em especial, da pauperização do povo produzida pelo processo de modernização capitalista.
Publicado como livro em 1975 pela Editora Civilização Brasileira, na forma de poema popular com mais de quatro mil versos, Gota d’água: uma tragédia carioca conquista o Prêmio Molière de autoria. Chico Buarque e Paulo Pontes não comparecem à cerimônia em protesto contra a censura militar.
No mesmo ano, o espetáculo estreia com direção de Gianni Ratto (1916-2005), no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro. Estão em cena Bibi Ferreira (1922-2019), Roberto Bomfim (1945) e Oswaldo Loureiro (1932-2018) nos papéis principais, além de Luiz Linhares (1926-1995), Bete Mendes (1949), Norma Suely (1933-2005), entre outros atores.
Para criar a tragédia da vida brasileira, ao mesmo tempo que valorizam a palavra para se aproximar da complexidade do fenômeno social, os autores propõem o musical como forma cênica capaz de mobilizar a população. A direção musical é assinada por Dori Caymmi (1943) e Francis Hime (1939), com execução de sambas, como a memorável canção-título, e de outros ritmos populares em meio ao sincretismo entre divindades gregas e do candomblé. A coreografia é de Luciano Luciani; e cenários e figurinos, de Walter Bacci (1936-1990).
O conflito da peça acontece em um conjunto habitacional de classe baixa, de propriedade de Creonte. Joana (versão de Medeia), uma mulher do povo, deixa o marido para viver com Jasão, 14 anos mais novo. A vizinhança atua como coro, do qual faz parte Egeu, líder do movimento democrático contra os juros abusivos cobrados por Creonte.
A adaptação modifica também o destino da protagonista. Se, no clássico grego, Medeia assassina os filhos para se vingar pelo abandono do amante e da condenação ao exílio, Joana fracassa no plano de envenenar Creonte e sua filha Alma. Decide, então, matar-se com os filhos, gesto que transfere a estrutura trágica para o “âmbito da matriz cristã, da virgo e mater dolorosa” que “tem de morrer por ter praticado este ato”1. Para o crítico Sábato Magaldi (1927-2016), “o suicídio de Medeia, em Gota d’água, parece o desfecho lógico de quem foi ao fim de tudo, com inteireza. A adaptação não é só brasileira: é moderna e universal”2.
A recepção crítica também destacou as características épicas da peça. Fernando Peixoto (1937-2012) aponta para a “inversão do significado ideológico do teatro clássico: o homem, aqui, não é uma vítima de forças eternas e invencíveis. Não está passivamente submetido aos deuses e aos poderosos. Como em Brecht, o homem é o destino do homem. Gota d´água é uma eloquente afirmação de que o homem transforma. Constrói seu destino e sua liberdade”3.
O reconhecimento da crítca se estende à atuação de Bibi Ferreira. Para Yan Michalski (1932-1990), a atriz “é uma Joana insubstituível, infiltrando em cada fala uma dose de paixão patética, dizendo o texto com virtuosismo, valorizando sílaba por sílaba a sua sonoridade”4.
O musical segue recebendo novas versões adaptadas a novos contextos, ao modo do gesto realizado pelos autores. É o caso, por exemplo, de Gota d’água {Preta} (2019), montagem do Coletivo Negro que desvela a estrutura racial das engrenagens em funcionamento na peça.
A partir do teatro clássico grego, a peça Gota d’água de Chico Buarque e Paulo Pontes cria uma tragédia musical brasileira moderna, capaz de renovar as críticas socioculturais ao longo da história do país.
Notas
1. COELHO, Maria Cecília de Miranda Nogueira. Medéia: metamorfoses do gênero. Letras clássicas, n. 9, p. 157-178, 2005. p. 166. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/letrasclassicas/article/view/82683/85642. Acesso em: 25 set. 2022.
2. MAGALDI, Sábato. Amor ao teatro. São Paulo: Edições Sesc, 2016.
3. SOUSA, Dolores Puga Alves de. Pode ser a gota d’água: em cena a tragédia brasileira da década de 1970. 2009. 245 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2009. p. 155. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16365/1/parte1.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
4. GOTA d´água: 1975-1980. Disponível em: https://raman.pt/wp-content/uploads/2020/03/livro_artBibi03C_142-149-Gota-d%E2%80%99%C3%A1gua.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
Ficha Técnica
Chico Buarque (Prêmio Molière)
Paulo Pontes (Prêmio Molière)
Direção
Gianni Ratto
Cenografia
Walter Bacci
Figurino
Walter Bacci
Direção musical
Dori Caymmi
Trilha sonora
Chico Buarque (Prêmio MEC / Troféu Mambembe)
Coreografia
Luciano Luciani
Elenco
Alexandre de Almeida / Gota d´Água
Ana Maria / Gota d´Água
Angelito Mello / Galego
Ari de Oliveira / Gota d´Água
Arthur Luís / Gota d´Água
Bete Mendes / Gota d´Água
Bibi Ferreira / Joana (Prêmios Molière e APCT)
Carlos Leite / Gota d´Água
Geraldo Rosas / Gota d´Água
Isaac Bardavid / Amorim
Isolda Cresta / Gota d´Água
Luiz Linhares / Gota d´Água
Maria Alves / Maria
Norma Suely / Gota d´Água
Oswaldo Loureiro / Gota d´Água
Roberto Bonfim / Gota d´Água
Roberto Rônei / Gota d´Água
Selma Lopes / Zaíra
Sérgio Roperto
Sônia Oiticica / Gota d´Água
Fontes de pesquisa 7
- COELHO, Maria Cecília de Miranda Nogueira. Medéia: metamorfoses do gênero. Letras clássicas, n. 9, p. 157-178, 2005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/letrasclassicas/article/view/82683/85642. Acesso em: 25 set. 2022.
- ESPETÁCULOS Teatrais. [Pesquisa realizada por Edélcio Mostaço]. Itaú Cultural, São Paulo, [20--]. 1 planilha de fichas técnicas de espetáculos.
- HERMETO, Miriam. O prefácio de Gota d’água: as bases de um projeto cultural de interface entre intelectuais e artistas na ditadura militar brasileira. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo, dossiê n. 7, p. 81-102. maio 2012. http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie07/RevLitAut_art03.pdf.
- MAGALDI, Sábato. Amor ao teatro. São Paulo: Edições Sesc, 2016.
- MARINHO, Cecilia Silva Furquim. Gota d'água: entre o mito e o anonimato. 2013. 157 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
- PONTES, Paulo; BUARQUE, Chico. Apresentação. In: PONTES, Paulo; BUARQUE, Chico. Gota d’água. Rio de Janeiro, 1975. Disponível em: http://www.memorialnormasuely.com.br/imagens/gotadagua.pdf. Acesso em: 26 set. 2022.
- SOUSA, Dolores Puga Alves de. Pode ser a gota d’água: em cena a tragédia brasileira da década de 1970. 2009. 245 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2009. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16365/1/parte1.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
Como citar
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GOTA d´Água.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/evento397591/gota-d-agua. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7