Concretismo na literatura
Texto
No início dos anos de 1950, quando os poetas concretistas começam a se agrupar em torno da revista Noigrandes, os países da Europa começavam a se recuperar dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Iniciava-se um período de reestruturação geográfica, política e econômica que dividiu o mundo em blocos capitalistas, sob a liderança dos Estados Unidos, e comunistas, guiados pela ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Essa divisão, da qual o muro de Berlim foi o maior símbolo, conduziu os rumos das políticas e economias mundiais até o final dos anos de 1980. O medo de novos ataques nucleares alimentou a chamada "guerra fria", que opôs países capitalistas e comunistas ao longo das décadas seguintes.
No Brasil, vivia-se uma época de democratização política e de desenvolvimento econômico, que se tornou intenso durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), cuja propaganda oficial prometia uma avanço histórico de "cinqüenta anos em cinco". Os Planos de Metas de Juscelino para a modernização do país resultaram em impressionante crescimento industrial, que aumentou os empregos e a renda dos brasileiros. O desenvolvimento, as grandes realizações, como a construção de Brasília, e a estabilidade política contribuíram para criar a atmosfera de otimismo dos chamados "anos dourados".
A poesia concreta, segundo Philadelpho Menezes, estava "intimamente associada ao movimento de boom desenvolvimentista que levanta o país nos anos 50, simbolizado exemplarmente pelo plano de criação de Brasília, uma nova cidade idealizada como centro do poder, matematicamente situada no centro geográfico do país. Basta recordar que o principal texto da poesia concreta, publicado em 1958, tem o título Plano Piloto para Poesia Concreta, assinado por Augusto de Campos (1931), Haroldo de Campos (1929-2003) e Décio Pignatari (1927-2012). É uma citação direta e assumida do Plano Piloto para a Construção de Brasília, elaborado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, que sonhava construir do nada, em meio ao inóspito cerrado do Planalto Central brasileiro, uma cidade dentro dos moldes mais racionalistas idealizados pelo urbanismo modernista europeu (...)."
O desenvolvimentismo de JK impulsionou a atividade editorial no país. Uma série de medidas, entre elas a isenção de impostos sobre o livro e a criação de subsídios para a indústria de papel nacional, levou a um expressivo crescimento do setor editorial, que em 1962 chegou a produzir 66 milhões de livros. Os principais editores do período, José Olympio (1902-1990) e José de Barros Martins, continuaram a editar autores nacionais, alguns dos quais, como Jorge Amado, tiveram obras vendidas em larga escala.
Nas cidades, que cresciam em ritmo acelerado, os telefones se tornavam mais comuns e os televisores começavam a se fazer presentes. Os automóveis, símbolos do governo JK, tomavam as ruas e competiam com os ônibus. A vida cada vez mais frenética dos grandes centros exigia novas maneiras de expressão artística, e a poesia concreta procurou captar aspectos da urbanização, da comunicação em massa, dos avanços tecnológicos que transformavam a realidade. Os grandes e luminosos anúncios publicitários, por exemplo, foram fonte de inspiração para os concretistas.
Os produtos norte-americanos, importados ou produzidos pelas multinacionais que chegavam ao país, modificavam o cotidiano: Coca-Cola, eletrodomésticos e chicletes passaram a fazer parte da vida das pessoas, assim como o rockn?roll e outros elementos culturais que caracterizavam o "american way of life", cada vez mais admirado pelos brasileiros. Para muitos setores da sociedade, no entanto, essa "invasão americana" não era nada positiva, e as críticas ao modelo econômico de Juscelino, que procurara atrair capitais estrangeiros, foram se intensificando.
Em 1960 Jânio Quadros foi eleito presidente da República, o primeiro a tomar posse em Brasília, recém-inaugurada. Mas seu governo durou menos de sete meses; em agosto de 1961 ele pediu a renúncia, lançando o país em uma grave crise política, que terminaria por levar ao golpe militar de 1964. Durante esses primeiros anos da década de 1960, a insatisfação popular com o modelo econômico aumentou, e intensificaram-se os movimentos reinvidicatórios. As Ligas Camponesas, no Nordeste, as organizações operárias e sindicais, no Sudeste, e até mesmo alas da Igreja Católica se mobilizaram por mudanças sociais.
Os estudantes, principalmente os universitários, se tornaram cada vez mais participantes do jogo político. O ensino superior crescera, com a criação das Universidades Federais, e nas faculdades o ambiente era de questionamento do regime e da ideologia dirigente, de criação de novos projetos econômicos e políticos, de crença num ideal revolucionário que transformasse a realidade nacional. Essa efervescência intelectual e contestadora, aliada à enorme valorização da cultura brasileira, resultou, no campo artístico, na criação do Teatro de Arena e do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes - UNE, entre outros movimentos.
Foi em um Festival de Música de Vanguarda do Teatro Arena que, em 1955, o grupo formado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari usou pela primeira vez a expressão "poesia concreta". No ano seguinte, seria definido, com uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o movimento Concretista, que se opunha às propostas poéticas da Geração de 45.
A crítica Luciana Stegagno Picchio, porém, aponta traços em comum entre os dois grupos, e mais prosadores como Guimarães Rosa (1908-1967), compositores de canções de protesto e outros integrantes dos sistemas literário e artístico da época: "a nova geração saída da guerra sente o compromisso para com a sociedade e a sua atitude é mais crítica do que inventiva. O intelectual abre-se para a interdisciplinaridade enquanto conjuga em si, como amiúde ocorre, o poeta e o crítico literário, o ficcionista e o sociólogo; vira-se para o diálogo e o exige. E não só isso; recupera do passado remoto e recente ou ainda seleciona da contemporaneidade aquilo que lhe é realmente contemporâneo. (...) Da justaposição de experiências literárias distintas e contraditórias, emerge o significado que tem, para as novas gerações, o termo "moderno", ou melhor, "contemporâneo". Que não está nos conteúdos, mas no modo pelos quais esses conteúdos se enfrentam. Nesse plano, não há mais fratura ideológica entre o poeta concretista que trabalha, aparentemente por puro hedonismo, o seu material lingüístico, o artista pós informal, o poeta folk, o cineasta psicólogo de indivíduos e da sociedade, o crítico estruturalista e o escritor comprometido. Porque todos exercem uma atividade crítica, de denúncia, desmistificatória, sobre o material que examinam: seja essa palavra dado histórico, fato social, acontecimento político".
Estilo - característica gerais
O Concretismo é o primeiro "produto de exportação" da poesia brasileira, para usar a expressão de Oswald de Andrade (1890-1954), pois foi concebido como movimento internacional e surgiu, se não antes, pelo menos ao mesmo tempo em que se manifestava em outros países. O lançamento oficial ocorreu em 1956, com a Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Mas desde 1952, quando lançaram a revista Noigrandes, os poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos já refletiam sobre e praticavam a poesia concreta.
No manisfesto Plano Piloto para Poesia Concreta, publicado em 1958, os poetas elencam, entre seus precursores e influenciadores, Oswald de Andrade, figura-chave da primeira fase Modernista, e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta que se filiava à Geração de 45, mas que havia criado uma "arquitetura funcional do verso" que se aproximava dos princípios do Concretismo. Assim, os poetas concretistas retomam recursos utilizados na fase heróica do Modernismo, como a concisão dos versos de Oswald, e se opõem às formas tradicionais do verso, que consideram desgastadas - formas que estavam sendo revalorizadas pelos adeptos da Geração de 45. Os concretistas também se opõem à poesia lírica, subjetiva e discursiva, de modo geral.
Para os criadores do Concretismo, o verso passava por uma "crise" que se comparava à crise do artesanato diante da Revolução Industrial, tamanho o desgaste de suas fórmulas. A partir dessa assertiva, eles apresentaram o poema-objeto, construído por meio de recursos como a disposição não-linear dos vocábulos na página (ou em outros suportes), o uso do espaço em branco como produtor de sentidos e a utilização de elementos visuais e sonoros. Por meio desses procedimentos procuravam "abolir a tirania do verso", em suas formas tradicionais, e valorizar o espaço gráfico como agente estruturador do poema.
Segundo a crítica Luciana Stegagno Picchio, os concretistas, ao utilizarem o espaço gráfico para projetar livremente as suas construções verbais, produzem "poemas que se possam ler em qualquer direção, seguindo diferentes percursos, e que a cada releitura adquirem, por meio de distinta aproximação lexical, uma nova carga semântica". Dessa forma, o poema concreto se abre a múltiplas leituras, e como que reclama uma atitude mais ativa por parte do leitor.
Outro traço importante do poema-objeto é sua natureza de "ideograma", definida no Plano Piloto para Poesia Concreta como "apelo à comunicação não-verbal. o poema concreto comunica a sua própria estrutura: estrutura-conteúdo. o poema concreto é objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas." O poema tem, para os concretistas, uma forte autonomia, baseada em regras internas precisas que constroem sua estrutura, e que o tornam um objeto autônomo, um produto como outros do universo industrial, independente das sensações subjetivas que inspiraram sua criação ou que são inspiradas pela sua leitura.
Deve-se ressaltar ainda que a poesia concreta procura fugir da antiga tradição dos poemas visuais em que a forma da disposição do texto se assemelha com a forma do objeto que o texto descreve. Para os concretistas, esse tipo de aproximação é empobrecedora, por ser muito evidente e reduzir as possibilidades da poesia visual.
No plano temático, a metalinguagem é o assunto principal do Concretismo. Segundo Philadelpho Menezes, "como nenhum outro movimento, o Concretismo elegeu como tema principal de seus poemas a própria poesia, o próprio poema. Por mais que um poema concreto fale de um ovo, de um movimento, da coca-cola, da rua, ou de qualquer outro tema, o que está em jogo é essencialmente o poema como tema de si próprio. Isto é, todos os temas na verdade são metáforas do tema central da própria poesia."
Autores
Os principais autores do Concretismo são seus idealizadores e divulgadores, Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Ao longo dos anos, eles realizaram trabalho decisivo nas áreas de teoria literária e lingüística, e desenvolveram linhas particulares de criação poética.
Segundo Iumna Maria Simon e Vinicius de Avila Dantas, "Décio Pignatari lança, em 1964, um manifesto (assinado conjuntamente por Luiz Ângelo Pinto) formulando a idéia do poema-código (ou semiótico). Por trás desta idéia existia o desejo de reformular a proposta de poesia participante, transformando o poema-sem-palavras numa forma visual de comunicação universal. A linha de experimentação do Concretismo seguia caminho, buscando relações que estivessem além do código verbal. E não é por acaso que os poemas-código de Décio e pop-cretos de Augusto de Campos sirvam de testemunho de época, escritos após o golpe militar de 1964. Ao mesmo tempo que o Concretismo vivia a fase final de uma militância ortodoxa, passava a incorporar sensivelmente novas questões e a explodir em várias direções."
Philadelpho Menezes afirmou que pode ser atribuído a Augusto de Campos o desenvolvimento do tipo mais difundido de poesia visual no Brasil, desde a década de 80: o poema-embalagem, que retoma a ordem sintática e a correção gramatical tradicionais do texto, sem deixar de lado, porém, o acabamento visual sofisticado. De acordo com o crítico, a obra Poesias (1988) mostra a "coerência de Augusto de Campos, em definir a poesia, trinta anos depois do Concretismo, ainda como um produto autônomo que se reduz a seu próprio universo de existência - mesmo que o ex-poeta concreto tenha adquirido um certo humor no seu fazer crítico-criativo."
Para Benedito Nunes (1929-2011), "tentar separar a trajetória poética de Haroldo de Campos dos rumos do Concretismo seria tão absurdo como pretender estudar os rumos de André Breton independentemente da trajetória do Surrealismo. Entretanto, o poeta de Xadrez de Estrelas filtrou, de modo peculiar, o 'realismo absoluto' (o poema existindo 'espacialmente' como objeto, em sua materialidade de signo, e equivalendo ao processo de sua estruturação) e o 'anti-historicismo' (tendência a valorizar o novo como medida 'histórica' da invenção poética irruptiva), incorporados à teoria e à prática do Concretismo, firmadas a partir do reconhecimento da existência duma crise do verso na modernidade e da viragem literária que representou Un Coup De Dés de Mallarmé para superá-la."
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 5
- CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Humanitas: FFLCH - USP, 1998.
- CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade: 1500-1960. São Paulo: Edusp, 1999. 2. v.
- FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995.
- MENEZES, Philadelfo. Roteiro de leitura: poesia concreta e visual. São Paulo: Ática, 1988.
- PAIXÃO, Fernando (Coord.). Momentos do livro no Brasil. São Paulo: Ática, 1997.
Como citar
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CONCRETISMO na literatura.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/termo9594/concretismo-na-literatura. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7