Léa Garcia

Léa Garcia, 2022
Texto
Léa Lucas Garcia de Aguiar (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1933 - Gramado, Rio Grande do Sul, 2023). Atriz. Com extensa carreira em teatro, cinema e televisão, desenvolve consciência político-racial que perpassa sua atuação artística com uma postura questionadora sobre o lugar do negro na sociedade e na arte.
Filha de um bombeiro hidráulico e de uma modista famosa na zona sul carioca, Léa perde a mãe aos 11 anos e passa a morar com a avó materna, que trabalha como governanta de uma família da elite do Rio de Janeiro. Aos 16 anos, após uma briga com o pai, sai de casa para viver com o diretor Abdias Nascimento (1914-2011), fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN). A relação aproxima-a do teatro e da militância antirracista.
No TEN, tem aulas de danças folclóricas com Mercedes Baptista (1921-2014) e de interpretação. Em 1952, estreia como atriz na peça Rapsódia Negra, no palco da Boate Acapulco, dançando e declamando versos de Navio Negreiro, do poeta Castro Alves (1847-1871).
Segue atuando em peças do TEN, como Orfeu da Conceição (1956), adaptação do mito grego aos morros cariocas, que sela a parceria de Vinicius de Moraes (1913-1980) com Tom Jobim (1927-1994) e conta com cenário de Oscar Niemeyer (1907-2012). No papel de Mira, cumpre temporada brevíssima de seis noites com casa lotada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Também atua ao lado de Nelson Rodrigues (1912-1980), em rara participação do dramaturgo como ator, em Perdoa-me por Me Traíres (1957).
Em 1959, é a única do elenco teatral a conseguir papel na versão cinematográfica da peça, Orfeu Negro (ou Orfeu do Carnaval), dirigida pelo francês Marcel Camus (1912-1982). Interpreta Serafina, prima de Eurídice, personagem cômica criada para o filme. A obra é premiada com o Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano. Léa também concorre à Palma de melhor atriz, com boas chances, mas quem a recebe é Simone Signoret (1921-1985), por Almas em Leilão (1959).
São marcantes em sua trajetória os papéis de mulheres destemidas. Em Ganga Zumba (1963), primeiro filme de Cacá Diegues (1940), sua personagem Cipriana é uma espécie de porta-voz da liberdade, que segue seu próprio caminho ao ser abandonada por Zumba a caminho de Palmares.
Na televisão, onde também atua intensamente, interpreta uma das vilãs mais lembradas da história da teledramaturgia brasileira, a Rosa de Escrava Isaura (1976), novela de Gilberto Braga (1945) produzida pela TV Globo e reexibida com sucesso em Cuba. A personagem torna-se seu “cartão de visitas”1 e causa reações hostis à atriz nas ruas. “Rosa era a única que tinha consciência de sua condição escrava e por isso fazia de tudo para fugir do tronco”2.
Apesar de críticas do movimento negro à reiterada escalação de atores negros para papéis de pessoas escravizadas, Léa prefere personagens que denunciem a escravidão negra na história brasileira a interpretar mulheres da elite que não tenham conteúdo questionador.
Na novela Marina (1980), representa Leila, uma professora de História de uma escola particular, onde a filha sofre discriminação. Léa pede ao diretor Herval Rossano (1935-2007) para alterar o texto sobre Zumbi dos Palmares dito em aula por sua personagem. A reescrita é feita no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, do qual é membro da diretoria, e permite que apresente ao público televisivo uma visão afro-centrada do Quilombo dos Palmares.
O racismo sofrido no meio artístico influencia Léa para que concentre em seus olhos, singularmente melancólicos, a expressão dos sentimentos calados de suas personagens que não recebem tempo de fala suficiente. “Sou uma atriz que aprendeu a trabalhar bem o olhar, elegê-lo como instrumento peculiar de serviço. Isso me ajudou a ser reconhecida em nível de expressividade cênica”3.
Depois de atuar com Bibi Ferreira (1922-2019) em Piaf – A Vida de uma Estrela da Canção (1983), participa de A Missa dos Quilombos (1988), com direção de João das Neves (1934-2018) e música de Milton Nascimento (1942). A peça questiona o papel repressor da igreja católica para um público de maioria negra. “A praça, tomada pela população do Rio de Janeiro, me deu a certeza de estar falando para as pessoas certas, para quem interessava”4.
Em 2004, compartilha com Ruth de Souza (1921-2019) o prêmio de melhor atriz do Festival de Gramado pelo filme Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo (1954), com elenco majoritariamente negro. Elas interpretam duas irmãs “com dignidade exemplar, nunca querendo se sobrepor à emoção implícita dos papéis”5.
Entre dezenas de outras novelas, seriados, filmes e peças, escreve roteiros para cinema, assume a função de Conselheira de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e de diretora artística do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos e Direções (Sated). É homenageada na primeira edição da Segunda Black em 2018 e, em 2023, tem sua trajetória reconhecida com o prêmio Shell especial.
Diante da enorme expressividade como atriz, da representatividade para a população negra e do ativismo antirracista, o reconhecimento do trabalho de Léa Garcia é insuficiente se comparado ao de atrizes brancas com trajetória semelhante e expõe a falta de visibilidade enfrentada por artistas negras no país. À revelia da visão eurocêntrica e colonizada de grande parte dos autores e diretores, Léa mantêm-se questionadora e atuante.
Notas
1. MARCELINO, Adilson. Entrevista com Léa Garcia. Mulheres do Cinema Brasileiro, nov. 2004. Disponível em: https://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/entrevistas_depoimentos/visualiza/72/Lea-Garcia. Acesso em: 23 nov 2019.
2. FERNANDES, Guilherme Moreira. Ciclo abolicionista nas telenovelas da Globo: rupturas e continuidades de estereótipos. In: CONGRESSO Brasileiro de Ciências da Comunicação, 39, 2016, São Paulo. Anais… São Paulo: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2016. p. 6. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1986-1.pdf. Acesso em: 23 nov. 2019.
3. ANTUNES, Paulo Roberto. Léa Garcia: o olhar como forma de trabalho, as ações como instrumento de luta. Revista Canjerê, Belo Horizonte, 13 ago. 2018. Disponível em: https://revistacanjere.com.br/lea-garcia-olhar-luta-entrevista/. Acesso em: 23 nov. 2019.
4. ALMADA, Sandra. Damas negras: sucesso, lutas, discriminação. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 1995. p. 94.
[5] AGÊNCIA ESTADO. “Filhas do Vento” empolga plateia em Gramado. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 20 ago. 2004. Cultura. Disponível em: < https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,filhas-do-vento-empolga-plateia-em-gramado,20040820p3901 >. Acesso em: 23 nov. 2019.
Obras 1
Espetáculos 24
Mídias (1)
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Fontes de pesquisa 11
- ALMADA, Sandra. Damas negras: sucesso, lutas, discriminação. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 1995.
- ANTUNES, Paulo Roberto. Léa Garcia: o olhar como forma de trabalho, as ações como instrumento de luta. Revista Canjerê, Belo Horizonte, 13 ago. 2018. Disponível em: https://revistacanjere.com.br/lea-garcia-olhar-luta-entrevista/. Acesso em: 23 nov. 2019
- ANUÁRIO de teatro 1994. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1996.
- EICHBAUER, Hélio. [Currículo]. Enviado pelo artista em: 24 abr. 2011.
- FERNANDES, Guilherme Moreira. Ciclo abolicionista nas telenovelas da Globo: rupturas e continuidades de estereótipos. In: CONGRESSO Brasileiro de Ciências da Comunicação, 39, 2016, São Paulo. Anais… São Paulo: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2016. p. 6. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1986-1.pdf. Acesso em: 23 nov. 2019
- GELEDÉS INSTITUTO DA MULHER NEGRA; REDE DE HISTORIADORES NEGROS; ACERVO CULTNE. Léa Garcia - atriz e ativista social negra. Google Arts & Culture. Disponível em: https://artsandculture.google.com/story/-wVhTZvAUazsIA?hl=pt-BR. Acesso em: 07 set. 2022.
- GELEDÉS Instituto da Mulher Negra. Léa Garcia, a brasileira que encantou Paris completa 86 anos, Geledés, 11 ago 2019. Disponível em: https://www.geledes.org.br/lea-garcia-a-brasileira-que-encantou-paris-completa-86-anos/. Acesso em: 23 nov. 2019
- MOURA, Daiana. Mulher Negra E(n) cena: performances, encontros e utopias. 2019. 388 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/11281/MOURA%2C%20Daiana.%20Mulher%20Negra%20E%28n%29Cena-compactado.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 11 out. 2022.
- Morre a atriz Léa Garcia, aos 90 anos. Jornal O Globo. 15 ago. 2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/google/amp/cultura/televisao/noticia/2023/08/15/morre-a-atriz-lea-garcia-aos-90-anos.ghtml>. 15 ago. 2023
- NICOLAU, Milton César. Entrevista com Léa Garcia. Portal Afro, 6 ago. 2000. Disponível em: https://www.portalafro.com.br/dados_seguranca/lea.htm. Acesso em: 23 nov. 2019
- PIAF, a vida de uma estrela da canção. Rio de Janeiro: [s.n.], 1983. 1 programa do espetáculo realizado em 25 mai. 1983 no Teatro Ginástico.
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LÉA Garcia.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa400953/lea-garcia. Acesso em: 04 de maio de 2025.
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