Vivo!
Texto
Vivo! é o terceiro disco do compositor e cantor pernambucano Alceu Valença (1946), lançado em 1976. O disco confirma o talento do artista em ascensão como letrista de grande potencial. As músicas do álbum misturam elementos de crônica fantástica e narrativa cotidiana, acompanhados de uma musicalidade que eletrifica a referência do ritmo baião com uma sonoridade pungente influenciada pelo rock.
É considerado um dos melhores discos ao vivo da Música Popular Brasileira (MPB). Gravado ao vivo durante turnê do show Vou Danado Pra Catende no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, o trabalho combina canções do repertório próprio com temas do cancioneiro nordestino. Crítica da revista Pop afirma que “o show de Alceu teve o clima ideal para fazer desse trabalho o melhor disco ao vivo gravado no Brasil”. O crítico Aloysio Reis prossegue: “Seus pontos de referência (os cantadores e repentistas do Nordeste) ganharam pela primeira vez uma versão urbana, colorida, própria para um palco de teatro”. E complementa: “Mas foi um colorido sem paetês. Até pra dizer ‘não quero mais brincar de sol e chuva com você’, Alceu soube manter a seca nordestina na alma: sem frescuras, sem estrelismo”.
A obra ajuda a montar um panorama que marca música brasileira dos anos 1970. Ainda sob influência do Tropicalismo do final da década de 1960, vários artistas importantes, cada um ao seu estilo, gravam discos combinando influências da música pop internacional e ritmos brasileiros. É justamente nesse o período que se consagra o rótulo MPB, quando diversos artistas desenvolvem uma musicalidade baseada na diversidade rítmica do Brasil em choque com as influências estrangeiras – seja do rock dos Beatles, no caso, por exemplo, de Clube da Esquina (1972), de Lô Borges (1952) e Milton Nascimento (1942); da soul music estadunidense em Pérola Negra (1973), de Luiz Melodia (1951-2017); ou da infinidade de gêneros musicais africanos, como em África Brasil (1976), de Jorge Ben Jor (1942).
No caso de Alceu Valença, esse cruzamento se dá sobretudo por intermédio de audições de discos de Jackson do Pandeiro (1919-1982), Luiz Gonzaga (1912-1989) e Elvis Presley (1935-1977), na infância e na adolescência. Há em Vivo! – assim como no seu disco anterior, Molhado de Suor (1974), e no seguinte, Espelho Cristalino (1977) – um espírito roqueiro que ajuda a traduzir sua influência principal, da música nordestina para uma linguagem conectada ao público jovem da época. Canções como “Descida da Ladeira” e “Você Pensa” evoluem para um clímax, em que as distorções da guitarra elétrica e o peso da bateria impulsionam a poesia ao estilo da literatura de cordel e as batidas emprestadas de ritmos como xote, baião e embolada.
A veia roqueira do trabalho muito se deve à presença dos músicos Paulo Rafael (1955) (guitarra e violão) e Zé da Flauta (1960) (flauta), integrantes do grupo de rock psicodélico Ave Sangria. Zé Ramalho (1949) também toca no disco.
A experiência como ator no teatro contribui para o personagem que ele evoca no palco, uma espécie de menestrel que faz uso do humor nas falas entre as músicas e inspira muitos dos movimentos cômicos que assume durante a performance. Na música “Punhal de Prata”, por exemplo, ele altera o timbre de voz para conferir caracterizações específicas do narrador que discorre ao mesmo tempo sobre o flerte com uma menina que passa e um certo medo do inimigo desconhecido, possível referência à ditadura militar do período.
O canto firme durante a parte romântica da letra se transforma em um timbre agudo frágil e depois sussurrado e vacilante quando se anuncia a agonia: “Eu só quero dormir de olho aberto / Minha casa é um cofre sem segredo / O meu quarto é sem portas, tenho medo”. Nessa faixa, Alceu canta acompanhado apenas de violão e repete por sete minutos a mesma sequência de poucos acordes. É a letra e a interpretação que desvendam as nuances da música. A canção pertence ao repertório do disco Molhado de Suor (1974), com arranjo preenchido por outros elementos, como uma linha de baixo, percussão, viola e arranjo de cordas.
Outra faixa desse álbum que ele relê em Vivo! é “Papagaio do Futuro”, também de forma bem diferente da versão registrada em estúdio. Alceu Valença desacelera o andamento original e estende a música por sete minutos, enquanto a versão original tem pouco mais de dois minutos. Ao vivo, transforma-se em um xote marcado por intervenções da guitarra elétrica.
Em 2015, Alceu Valença sai em turnê com o repertório do disco e, no ano seguinte, lança o disco Vivo! Revivo!, com o registro do show realizado no Theatro Santa Isabel, em Recife. O repertório inclui todas as faixas de Vivo!, além de algumas de Molhado de Suor e Espelho Cristalino.
Vivo! é um exemplo da inventividade de Alceu Valença ainda no início da carreira e, portanto, em período de afirmação no contexto da MPB. Sob efeitos da contracultura que inspira a produção artística no Brasil durante os anos 1970, esse trabalho se situa na linha evolutiva entre os clássicos da Tropicália lançados nos anos 1960 – como os de Caetano Veloso (1942), Gilberto Gil (1942) e Gal Costa (1945) – e as invenções promovidas pelos artistas do manguebeat, como Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, nos anos 1990.
A obra desvenda o potencial de Alceu Valença para combinar elementos da cultura nordestina (desde a poesia inspirada no repente e na literatura de cordel até o personagem menestrel inspirado nos palhaços dos pequenos circos que ele conhece em sua cidade natal, São Bento da Una) com uma energia contestadora na performance de palco associada ao rock do período.
Fontes de pesquisa 4
- ATHAYDE, Eduardo. “CAMELÔ, roqueiro e profeta”. Revista Pop, São Paulo, nov. 1975. Disponível: http://velhidade.blogspot.com/search?q=alceu. Acesso em: 14 out. 2019
- REIS, Aloysio. Vivo! - Alceu Valença. Revista Pop, São Paulo, jan. 1977. Disponível em: http://velhidade.blogspot.com/search?q=alceu. Acesso em: 14 out. 2019
- SIMCH, José Antônio. “ALCEU Valença: não falo inglês, faço tudo ao contrário...:”. Revista Pop, São Paulo, p. 8-9, mar. 1976. Disponível em: http://velhidade.blogspot.com/search?q=alceu. Acesso em: 14 out. 2019
- “ALCEU: ‘a MPB está distante da garotada’”. Revista Pop, São Paulo, p. 16, abr. 1978. Disponível em: http://velhidade.blogspot.com/search?q=alceu. Acesso em: 14 out. 2019
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VIVO!.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra70909/vivo. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7