A Festa
Texto
Análise
A Festa (1976) é o segundo livro publicado pelo romancista, contista e cronista Ivan Angelo (1936). O primeiro depois da estreia com o volume de contos Duas Faces (1961), em parceria com o crítico e escritor Silviano Santiago (1936). Nos contos estão presentes a crítica social e a busca por novos modelos narrativos, características de sua escrita. Em A Festa esse projeto atinge os melhores resultados.
A audácia formal e o teor crítico do romance rendem ao escritor o primeiro Prêmio Jabuti. O fator político, entretanto, é responsável pela interrupção da carreira de Angelo por um longo período. Iniciado em 1963, o romance é suspenso no ano seguinte em decorrência da censura imposta pelo governo militar, e retomado em 1974. Depois de ser recusado por duas editoras, chega ao público em 1976, reconhecido como uma das propostas literárias mais inventivas produzidas no calor dos acontecimentos.
Desde o subtítulo – Romance: Contos – fica clara a transgressão das convenções literárias que marca o livro. Ao se apresentar como romance e volume de contos, vai ao encontro da estrutura múltipla e fragmentária que críticos como Beth Brait (1948) definem como “caleidoscópio” e “colagem”. De fato, a obra é um conjunto de episódios ou contos aparentemente autônomos.
Contudo, há alguns fios condutores que aproximam os personagens e contextos. Ao todo, são nove episódios com vivências tipicamente brasileiras, aos quais se justapõem diferentes momentos cronológicos, tendo os anos 1970 como núcleo. No primeiro conto, "Documentário", apresenta-se o personagem retirante nordestino Marcionílio. Salienta-se em meio à construção fragmentária e documental da realidade social brasileira. Os seis episódios subsequentes desenvolvem nichos centrados em outros personagens e contextos, dos anos 1930 aos 1970. Os dois últimos, compõem um bloco separado. O oitavo, "Antes da Festa", entrelaça fragmentos sintéticos que antecedem, em minutos e horas, a ação dos anteriores. O último, "Depois da Festa", retoma, sob a forma de um glossário, as trajetórias dos personagens dos episódios anteriores, complementando-os e criando nexos entre eles. No final, evidencia-se o papel aglutinador do personagem-escritor. O ponto de vista desse narrador constitui apenas um entre os demais e suas angústias criativas são compartilhadas com o leitor. É o que se vê em trechos como: “Anotações do autor: Escrever o que nesta terra de merda? […] Que assunto? Merda! E quem disse que isso é responsabilidade minha?”.
A poeta, crítica e tradutora Ana Cristina Cesar (1952-1983), destaca a narrativa fragmentária semelhante à montagem cinematográfica e diferente do tradicional narrador onisciente. Com efeito, para a crítica, esse “romance sem herói, sem centro e sem pai” é marcado por uma “cinematografização da literatura”. Isso ocorre pela organização dos diversos focos, formatos textuais e formas de narrar por parte de uma instância oculta. Essa instância “mostra” os acontecimentos e imprime sua visão sobre eles, tal como a ação das câmeras em um filme.
Ainda na década de 1970, A Festa é bem recebido em resenhas e menções em estudos panorâmicos no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos. É o caso, por exemplo, dos textos dos escritores argelino e francês, respectivamente, Albert Bensoussan (1935) e Gérard de Cortanze (1948), apresentados por ocasião do lançamento da tradução francesa do romance, em 1979. Seguem-se a eles comentários inspirados pelas versões norte-americana (1982) e alemã (1992). Em 1992, um júri de especialistas reunidos pela revista Isto É aponta A Festa como o mais importante livro de ficção brasileira produzido entre 1972 e 1982. No ano seguinte, é destaque em estudos sobre a ficção brasileira do momento em O Espaço da Dor. O Regime de 64 no Romance Brasileiro, de Regina Dalcastagnè (1967). Entre 1993 e 2000, são publicados ao menos cinco trabalhos universitários, dissertações e teses, sobre essa obra de Angelo.
O crítico literário Davi Arrigucci Jr. (1943), vê no escritor-personagem a elaboração formal dos desafios da realidade social colocados na ficção. Ressalta que o significado de uma “falha de construção”, compartilhada com romances similares, opõe o ponto de vista do escritor como centro da obra à dispersão da perspectiva do narrador comum.
Beth Brait afirma que do "ponto de vista de uma inovação literária articulada harmoniosamente com uma temática crítico-social Ivan Angelo coloca-se, juntamente com (o contista e romancista) Rubem Fonseca (1925), como um dos marcos significativos da literatura brasileira dos anos 70". Ao lado de Feliz Ano Novo, coletânea de contos lançada um ano antes por Fonseca, o romance aproxima-se ainda mais de obras como Quatro Olhos (1976), de Renato Pompeu (1941-2014), e Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão (1936). Como esses, o romance de Angelo responde à aceleração da vida urbana e à dilaceração da vida política e social que transformam o Brasil no período pós-1960. Expande os limites das formas ficcionais convencionais, explorando técnicas jornalísticas e cinematográficas para revelar a tênue linha que separa o verossímil do verídico.
Fontes de pesquisa 5
- ARRIGUCCI JR., Davi. Jornal, realismo, alegoria: o romance brasileiro recente. In: ______. Achados e Perdidos: ensaios de crítica. São Paulo: Polis, 1979.
- BRAIT, Beth. A narrativa como criação e resistência: a cumplicidade da escritura. In: Itinerários, Araraquara, n. 10, 1996.
- CESAR, Ana Cristina. Um livro cinematográfico e um filme literário. In: Crítica e tradução. São Paulo: Instituto Moreira Salles: Ática, 1999.
- DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor. O regime de 64 e o romance brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.
- PEREIRA, Edgar. Alegoria e política no romance A festa, de Ivan Angelo. 1987. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1987.
Como citar
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A Festa.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69162/a-festa. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7