História do Brasil
Texto
Lançada em janeiro de 1934, a marcha “História do Brasil” é composta por Lamartine Babo (1904-1963) e gravada por Almirante (1908-1980) em 15 de dezembro de 1933, com o coro da gravadora Victor e acompanhamento do conjunto Diabos do Céu. Ocupa o lado B do disco de 78 rpm de Almirante, cujo lado A traz outra marcha de Babo, “Menina Oxigené”, em parceria com Hervé Cordovil (1914-1979).
Logo após seu lançamento, o jornal A Hora traz, em primeira página, a denúncia de plágio do samba “Negra Também é Gente”, gravado por Francisco Alves (1898-1952) no ano anterior. O compositor De Chocolat (1887-1956), parceiro de Ary Barroso (1903-1964) na autoria do samba, reclama a semelhança entre o estribilho da marcha de Babo e os versos do samba, embora com melodia diferente:
Quem foi que ninou o Brasil
Foi ioiô
Quem mais padeceu docemente?
Foi iaiá
Portanto no nosso Brasil,
Oh! ioiô,
Negro é gente.
A diferença cronológica é pequena: “Negra Também é Gente” é gravada em 20 de novembro de 1933 e lançada em janeiro de 1934, e “História do Brasil” é registrada em 15 de dezembro de 1933 e lançada também em janeiro de 1934.
Babo não se retrata diante da acusação e a polêmica se dissolve. O andamento binário e sincopado, próprio para o carnaval, contagia os foliões na capital da República. A marcha ganha destaque na folia carioca de 1934. Tamanho sucesso serve de mote para a peça Foi Seu Cabral, do revistógrafo Freire Júnior (1881-1956), estreada em 31 de março de 1934, no Teatro João Caetano.
Com letra aparentemente ingênua e non sense, “História do Brasil” parte do refrão entoado pelo coro:
Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral!
Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril
Dois meses depois do carnaval.
O uso do verbo “inventar” em lugar de “descobrir”, mais recorrente nas versões oficiais da história do Brasil, subverte esta narrativa. A “invenção” ocorre “dois meses depois do carnaval”, denunciando o artificialismo desta concepção, já que a festa é instituída antes.
Babo estabelece o dia 21 de abril como marco fundador do país, em uma leitura descomprometida da história oficial, pela qual as caravelas, lideradas pelo navegador português Pedro Álvares Cabral (1467-1520), teriam aportado em terras brasileiras em 22 de abril de 1500. Alem disso, adota o tom coloquial ao se referir a personalidade lusitana como “seu Cabral”.
A primeira estrofe evoca, num registro caricatural e anacrônico, os elementos que constituem esta invenção:
Depois
Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som...
Ao som do Guarani.
Ceci e Peri, são personagens do romance O Guarani (1857), de José de Alencar (1829-1877), ícone da fase indianista do romantismo brasileiro. Na marcha, os personagens se amam ao som da ópera homônima (1870) de Carlos Gomes (1836-1896), baseada no romance de Alencar.
No verso seguinte, o compositor faz um movimento elíptico, brincando com a sonoridade das palavras:
Do Guarani ao guaraná
Surgiu a feijoada
E mais tarde o parati.
Desta forma, relaciona universos distintos: o da alta cultura, do romance e da ópera O Guarani, ao da incipiente cultura de massas, representada pelo guaraná, refrigerante produzido a partir do xarope do fruto amazônico. A bebida é processada e comercializada no Brasil desde os anos 1920, usando como marketing o fato de ser um produto “nacional”.
Em seguida, coloca em evidência outros dois itens da mesa “tipicamente” brasileira: a feijoada e a cachaça parati1, culminando na transformação dos personagens na segunda estrofe:
Depois
Ceci virou iaiá
Peri virou ioiô.
Na releitura de Babo, o herói da literatura do final do século XIX e sua amada tornam-se ioiô e iaiá, corruptela dos termos “senhor” (sinhô) e “senhora” (sinhá), utilizados na época da escravidão e, depois, reapropriados em seus usos cotidianos, adquirindo conotação afetiva.
A estrofe finaliza com a constatação de que:
De lá...
Pra cá tudo mudou!
Passou-se o tempo da vovó
Quem manda é a Severa
E o cavalo Mossoró.
Prática corriqueira no período, as canções de carnaval glosam os principais acontecimentos do ano. Assim, o compositor traz dois destaques de 1933: a fadista Maria Severa Onofriana (1820-1846), e o cavalo de corrida Mossoró. A fadista é a heroína do primeiro filme falado produzido em Portugal, exibido no Rio de Janeiro naquele ano. Já o cavalo tem vitória inesperada sobre os puros-sangues argentinos no primeiro Grande Prêmio Brasil, celebrado pela multidão.
Tratando de aspectos relevantes e frívolos com o mesmo tom burlesco do início ao fim, a composição de Babo enfoca um problema que atravessa sua geração: a construção da brasilidade. Não por acaso, obras como Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987), e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), são publicadas no período. De maneira mais programática, entre o final dos anos 1920 e meados dos anos 1940, Mário de Andrade (1983-1945) busca identificar o que caracteriza a música brasileira e oferecer elementos para os compositores. Fora dos circuitos intelectuais, o radialista e pesquisador Almirante, intérprete da marcha de Babo, empreende a mesma busca. A pesquisa de Almirante contribui para legitimar o samba e a marcha como gêneros representativos da música brasileira.
Usando o registro humorístico, que recorre aos estereótipos e à incongruência, o compositor revela que a inserção do negro não consta na história oficial nem na alegoria romântica do nascimento da nação, o que, nos anos 1930, já não pode mais ser escondido. “História do Brasil” domestica a relação interracial d’O Guarani, gerando nova ancestralidade para a invenção da nação. Relacionando universos aparentemente desconexos, constata a presença do capital afrobrasileiro, fator importante para o crescimento da indústria do disco e do rádio no país.
Embora alguns elementos se percam na memória coletiva ao longo dos anos, a marcha continua a ser gravada e reconhecida por outras gerações. Isso se deve ao seu arranjo marcante, sobretudo, pelos metais na introdução. Na gravação de 1955, o arranjo dos metais é creditado ao maestro Lyrio Panicalli (1906-1984), em parceria com Babo que, apesar de não ter conhecimento formal de música, o faz de maneira intuitiva, incorporando a instrumentação da música norte-americana, com a qual é familiarizado. Entre as principais regravações figuram a do próprio compositor, no disco Carnaval de Lamartine Babo (1955), e as de Arrelia (1905-2005) e Altamiro Carrilho (1924-2012), em Ride Palhaço - As Músicas de Lamartine Babo (1957), Sidney Miller (1945-1980), em Brasil, Do Guarani ao Guaraná (1968), Emilinha Borba (1923-2005), Oh! As Marchinhas (1981), e Quinteto Violado, em O Guarani (1986).
Notas
1 O uso da metonímia “parati” aparece em outras composições desta década, como no samba-choro Camisa Listrada (1937), Assis Valente (1911-1958).
Fontes de pesquisa 6
- FUNDAÇÃO Joaquim Nabuco. Base de dados dos discos de 78 rpm gravados no Brasil (1902-1964). Disponível em: http://bases.fundaj.gov.br/disco.html. Acesso em: 20 nov. 2015.
- LAMARTINE Babo. Coleção Folha Raízes da MPB, v. 2. São Paulo. Disponível em: http://raizesmpb.folha.com.br/vol-2.shtml. Acesso em: 8 jan. 2016.
- MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil?. Volume I: a música popular conta a história de República: de 1902 a 1964. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
- McCANN, Bryam. Hello, Hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. London: Duke University Press, 2004.
- NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,1998.
- VALENÇA, Suetônio Soares. Trá-lá-lá. Rio de Janeiro: Edição FUNARTE, 1981.
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HISTÓRIA do Brasil.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67622/historia-do-brasil. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7