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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

Perto do Coração Selvagem

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 30.07.2020
1942
Capa Santa Rosa<br> Reprodução Fotográfica Horst Merkel

Perto do Coração Selvagem, 1942
Clarice Lispector

Perto do Coração Selvagem (1943) é a obra de estreia da romancista, contista e cronista Clarice Lispector (1920-1977). O romance é publicado pelo jornal A Noite, onde a escritora trabalha. Surge em um momento de transformação histórica, gerada em decorrência da Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, pela realidade sociopolítica inaugurada após a R...

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Perto do Coração Selvagem (1943) é a obra de estreia da romancista, contista e cronista Clarice Lispector (1920-1977). O romance é publicado pelo jornal A Noite, onde a escritora trabalha. Surge em um momento de transformação histórica, gerada em decorrência da Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, pela realidade sociopolítica inaugurada após a Revolução de 1930.

De acordo com o crítico e historiador literário Alfredo Bosi (1936), trata-se de um período de revolução cultural, com renovação do legado estético e ideológico dos movimentos modernistas da década de 1920. A surpresa causada por Perto do Coração Selvagem é compreensível: trata-se de uma obra inovadora, produzida por uma estudante de direito e jornalista de 23 anos, desconhecida no meio literário. Um de seus biógrafos, o escritor estadunidense Benjamin Moser (1976), ressalta a dificuldade dos primeiros críticos para associar o romance a obras de outros escritores brasileiros e as hesitações da própria Clarice em avaliar sua experiência literária. Nas palavras da autora, trata-se de um romance escrito em um "tatear no escuro", a partir de um caderno de ideias anotadas livremente. Essa declaração leva alguns críticos a reconhecer imperfeições de construção no livro. Imperfeições inexpressivas diante dos principais elementos do estilo de Clarice: das irrupções transfiguradoras do cotidiano, típicas de sua prosa curta, às especulações metafísicas que culminam em A Paixão Segundo G. H. (1964); da prosa poética radicalizada em Água-Viva (1973) à linguagem autorreflexiva do clássico A Hora da Estrela (1977).

Perto do Coração Selvagem é uma amostra de como Clarice entrelaça reflexões sobre a existência humana e a escrita. Narrada em terceira pessoa, a história da protagonista, Joana, é dividida em duas partes: na primeira, alternam-se lembranças de infância com a vida adulta; na segunda, concentra-se nos episódios posteriores ao casamento com Otávio. Nas cenas iniciais da juventude, é possível perceber a mulher que explora a vida interior em busca de um sentido para a existência. Órfã, ela é encaminhada aos cuidados dos tios, a quem provoca espanto pela personalidade insubmissa e misteriosa, reflexo do desinteresse por assuntos cotidianos. 

A recusa em aceitar a aparência óbvia das coisas, expressa na repetição da frase "eu posso tudo", é causa dos conflitos com outros personagens e do fracasso de seu casamento. A narração dos acontecimentos é marcada pela solidão. Segundo o crítico Roberto Schwarz (1938), esse sentimento se reforça na relação de Joana consigo mesma, que não encontra motivos para a própria existência. É também a razão de as reflexões dominarem a narrativa e permitirem que o fluxo da imaginação sobreponha-se ao relato cronológico dos fatos, como nota Schwarz. A angústia de Joana reflete as limitações da linguagem para expressar o mistério da vida, traduzido em seus questionamentos e no hábito de inventar palavras. Pouco a pouco, a voz da personagem confunde-se com a do narrador e com a matéria relatada, e o texto afasta-se da linguagem cotidiana para se aproximar da expressão poética. É o que se nota em trechos como: "Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e úmida debatendo-se dentro de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o que devo dizer?".

Como romance experimental, escrito por uma mulher em ambiente literário dominado por homens, Perto do Coração Selvagem divide a crítica entre incompreensão e elogios. Um dos leitores arrebatados pelo livro, o poeta Lêdo Ivo (1924-2012), destaca a aparência de "estrangeiridade" na prosa de Lispector, confirmada pelo crítico Antonio Candido (1918-2017). Este qualifica sua experiência com o livro como um "verdadeiro choque". Por conta dessa estranheza, biógrafos e pesquisadores apontam mal-entendidos em algumas das primeiras reações ao livro, que o associam à ideia de "literatura feminina" e "literatura introspectiva". Mesmo em leituras como a do crítico Sérgio Milliet (1898-1966), que vê "a mais séria tentativa de romance introspectivo" realizada no Brasil até então, predomina a intuição de um "deslocamento no centro de gravidade" do romance brasileiro do século XX, como reconhece o poeta Jorge de Lima (1893-1953)

A obra continua a ser investigada em sua singularidade, suscitando perspectivas analíticas diversas: a semiologia, a psicanálise e a filosofia. Mais frequente é o estudo do livro como primeira fonte ficcional de Clarice. Nesse contexto, imperfeições estruturais – como a identificação excessiva entre os pontos de vista da protagonista e dos personagens secundários, percebida por Schwarz – servem para elucidar os desdobramentos posteriores no estilo da autora. 

Perto do Coração Selvagem pode ser considerado um dos divisores de águas da história da ficção brasileira. A comparação mais próxima é com Sagarana, de João Guimarães Rosa (1908-1967), publicado três anos mais tarde. As duas obras constituem marcos da consolidação da literatura moderna no Brasil, que Bosi denomina “a era do romance brasileiro”. Trata-se da revisão da proposta modernista de construir uma cultura nacional crítica, até então único projeto responsável pelo surgimento de grandes escritores após o esgotamento do ciclo realista do século XIX. Assim como SagaranaPerto do Coração Selvagem transforma o tom documental do romance regionalista da década de 1930. Cria uma ficção universalizante, de estilo "introspectivo", para além da reflexão psicológica representada pelos ficcionistas da tendência realista. 

O escritor Lúcio Cardoso (1912-1968) é um dos primeiros a aproximar a linguagem do livro à “poesia”, como “fonte nova e pura” da criação verbal. Críticos como Antonio Candido atribuem a ruptura causada por Perto do Coração Selvagem a essa postura inventiva diante da palavra, essa síntese entre inteligência construtiva e sensibilidade afetiva. Esse romance inaugural ocupa uma posição decisiva na obra de Clarice Lispector pelo tratamento da linguagem ficcional como instrumento de expansão do “eu”, e constitui uma influência importante para a literatura brasileira. 

Fontes de pesquisa 8

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  • BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 32. ed. rev. e aum. São Paulo: Cultrix, 1994.
  • CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.
  • MOSER, Benjamin. Clarice. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
  • NUNES, Benedito. A linguagem e o silêncio. In: NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Editora 34, 2009.
  • SANCHES, Elisabete Ferraz. Os paradoxos do desamparo: uma leitura de Perto do coração selvagem. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
  • SCHWARZ, Roberto. Perto do coração selvagem. In: SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado. São Paulo: Paz e Terra, 1981.
  • SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: figuras da escrita. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.
  • SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis; São Paulo: Vozes; PUC/SP, 1993.

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