Sagarana
Texto
A importância de Sagarana (1946), o primeiro livro de João Guimarães Rosa (1908-1967), é resumida na fórmula precisa da professora Walnice Nogueira Galvão (1937): “Se Grande Sertão: Veredas é a obra-prima [do autor], Sagarana assinala o ponto de partida” ¹. Contendo a conhecida A Hora e a Vez de Augusto Matraga, o volume situa o leitor no universo rosiano com a invenção linguística, o conteúdo regional trágico, a fusão entre dado objetivo e imaginação.
Embora as nove narrativas (“O Burrinho Pedrês”,”A Volta do Marido Pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”, “Minha Gente”, “Conversa de Bois”, “Corpo Fechado”, “São Marcos” e “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”) que o compõem tenham sempre o mesmo ambiente – o interior de Minas Gerais –, seu enquadramento no regionalismo dividiu a crítica. Álvaro Lins (1912), um dos primeiros a escrever sobre o “excepcional acontecimento” representado pelo livro, descreveu-o como “o retrato físico, psicológico e sociológico” da região, recriada como “arte de ficção”. Já o crítico literário Antonio Candido (1918), também por ocasião da estreia, procura diferenciar o trabalho de Rosa no contexto do romance regionalista de 1930 e 1940: “todos os fracassos de seus predecessores se transformam em suas mãos noutros fatores de vitória”. Os pontos de partida do contista são aspectos banalizados nas obras de outros escritores, como “o exotismo do léxico”, “a tendência descritiva”, “o capricho meio oratório do estilo” e, no limite, a própria temática, até então centrada essencialmente no Nordeste. Com Sagarana, porém, Rosa estende o interesse geográfico para o sertão de Minas Gerais e supera o elemento pitoresco, desfazendo “as relações de sujeito e objeto para ficar a obra de arte como integração total de experiência”².
O primeiro texto, “O Burrinho Pedrês”, acompanha um grupo de vaqueiros na condução do gado da fazenda à vila. A estrutura narrativa, que insere pequenos acontecimentos na ação central, é exemplar quanto à trama. Na opinião de Paulo Ronái (1907-1992), o andamento prepara o leitor para um evento trágico – neste caso, anunciado pelo conflito entre dois vaqueiros –, mas uma reviravolta leva a um desfecho diferente do esperado. “Diferente, mas não menos patético”, comenta o crítico. A capacidade do texto de comover o leitor está em sua rigorosa construção, como conclui Ronái: “Combinam-se, assim, os efeitos da surpresa e da unidade”³.
Em uma análise minuciosa dessa novela, a professora Ângela Vaz Leão (1922) mostra que a integração de narrativas à ação central é parte de um trabalho mais amplo, que coordena todos os aspectos da obra, desde o ritmo e a métrica das frases até as descrições. Na altura do texto em que se descrevem os movimentos da boiada, segmentos equivalentes à redondilha menor reproduzem o lento andar dos bois (“As/ an/cas/ ba/lan/çam,// e /as/ va/gas/ de/ dor/sos,// das /va/cas e/ tou/ros,// ba/ten/do/ com as/ cau/das…”); quando a velocidade aumenta, os fragmentos assemelham-se a trissílabos (“Boi/ bem /bra/vo, //ba/te/ bai/xo,// bo/ta/ ba/ba,// boi /ber/ran/do...”). A análise demonstra, no limite, a identificação entre forma e conteúdo. “O ritmo da narrativa é lento, sem pressa de chegar, como o próprio burrinho que atravessa a enchente” 4, afirma a autora, em referência à travessia do córrego, episódio em que a novela culmina.
O conto que encerra o volume, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, está, segundo Antonio Candido, “entre os dez ou doze mais perfeitos da língua”. Trata-se da história de Nhô Augusto, a quem os próprios capangas deixam quase morto, mas que, encontrado e cuidado por um casal de negros, recupera a saúde à medida em que inicia a busca por rendição: “P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!”, conforme seu lema.
Disputas características do sertão, envolvendo capangas, majores e vinganças, dão forma a um trágico conflito entre bem e mal. Não se limitando à sequência de eventos exteriores, os conflitos se projetam na dimensão psicológica da personagem, resultando no retrato subjetivo dos dilemas de Nhô Augusto. Desse modo, dados locais, como folclore, crenças, tradições e costumes, articulam-se à “trilogia mítica dos ritos de iniciação”, que, como observa Walnice Nogueira Galvão, “reaparece aqui em sua forma cristã, de pecado, penitência e redenção, ou inferno, purgatório e céu”5. Todos os dados externos colaboram para a construção da personagem e de sua trajetória.
O principal recurso para a reunião entre regional e universal é identificado pelo crítico Davi Arrigucci Jr. (1943), que vê insinuar-se nesse conto o “esquema técnico” de Grande Sertão: Veredas (1956), o do “narrador oral”, que organicamente articula “o quadro da cultura letrada” e a “voz épica que vem do sertão”. Assim se garante, escreve o crítico, “a autenticidade do registro, sem fazer dela a apropriação culta característica do narrador dos romances regionalistas tradicionais”6.
Se “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” tem a marca da unidade, em “Corpo Fechado” o modo de narrar se desdobra. Deste participam a primeira pessoa, “seu doutor”, e Manuel Fulô, que lhe conta causos. A ação se intercala com diálogos, que objetivam fazer falar o homem do sertão. No entanto, o relato fica a cargo do homem culto, que não se mistura ao sertanejo. “O tempo passava, o povaréu falava, todo a uma vez, depois silenciava”, afirma o doutor a certa altura, enunciando sua separação da população local.
Em “São Marcos”, a cisão também é evidente – apesar de inscrita em uma única voz. O narrador de saída anuncia: “Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros”, e a narrativa centra-se em um caso de feitiçaria. A despeito de sua transformação e de uma constante ambiguidade em seu estatuto ao longo da narrativa, esse homem culto permanece observando o sertão desde o exterior. Como resultado, a verdade sobre a feitiçaria fica, aos olhos do leitor, em suspensão.
A ambivalência desaparece em “Minha Gente”, que se destaca do conjunto pela narrativa em primeira pessoa e por ambientar-se entre os proprietários de terra, e não entre os trabalhadores. Como um retrato da vida sertaneja letrada, dispensa mediação para chegar ao leitor.
Em “A volta do Marido Pródigo” e “Sarapalha”, a professora Nelly Novaes Coelho (1922) vê algo central ao volume. “A palavra é o elemento desencadeador da ação principal”, afirma, referindo-se à “palavra dada” a um homem na hora de sua morte, no primeiro caso, e, no outro, à confissão de um amor passado.
Redigido em 1937, Sagarana é publicado sem três dos contos que constam da versão original ("Questões de Família", "Uma História de Amor" e "Bicho Mau"), sendo revisto ao menos até 1956. Embora a plena maturidade do autor seja identificada à publicação de Grande Sertão: Veredas, sua importância para a literatura brasileira é unânime. Com ele, Guimarães Rosa, na opinião Antonio Candido, seguiu “reto para a linha dos nossos grandes escritores”.
Notas
1 GALVÃO, Walnice Nogueira. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 51. (Folha explica).
2 CANDIDO, Antônio. Sagarana. In: COUTINHO, Eduardo (Org.). Guimarães Rosa. Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
3 RÓNAI, Paulo. A arte de contar em Sagarana. In: ROSA, Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
4 LEÃO, Angela Vaz. O ritmo em ‘O burrinho pedrês’. In: COUTINHO, Eduardo (Org.). Guimarães Rosa. Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
5 GALVÃO, Walnice Nogueira. Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
6 ARRIGUCCI JR., Davi. O mundo misturado - romance e experiência em Guimarães Rosa. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.40, p. 7-29, nov. de 1994.
Fontes de pesquisa 1
- ARRIGUCCI JR., Davi. O mundo misturado - romance e experiência em Guimarães Rosa. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.40, nov. de 1994. p. 7-29
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SAGARANA.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra66816/sagarana. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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