Pintura de Gênero
![A Tarantela, ca. 1886 [Obra]](http://d3swacfcujrr1g.cloudfront.net/img/uploads/2000/01/001122001013.jpg)
A Tarantela, 1886
Henrique Bernardelli
Óleo sobre tela
98,20 cm x 98,70 cm
Texto
Ainda que seja possível pensar, em sentido amplo, nos diversos gêneros da pintura - retrato, natureza-morta, paisagem etc. - , o termo pintura de gênero faz referência às representações da vida cotidiana, do mundo do trabalho e dos espaços domésticos, que tomaram a pintura holandesa do século XVII. Em pleno florescimento do barroco na Europa católica, desenvolve-se nos Países Baixos, sobretudo na sua porção holandesa protestante, um estilo sóbrio, realista, comprometido com a descrição de cenas rotineiras, de temas da vida diária, de homens dedicados a seus ofícios, de mulheres no interior da casa e de festas comunitárias, no campo e na cidade. As imagens caracterizam-se, em geral, pela riqueza de detalhes, pela precisão e apuro técnico, numa tentativa de registro fiel do que o olho humano é capaz de captar. Nada mais distante da exuberância barroca, dos temas nobres e dos padrões de beleza que orientam a representação dos corpos na pintura italiana, por exemplo.
As condições de possibilidade de uma pintura com essas características devem ser procuradas em diversas frentes. Referem-se ao universo burguês, à vida urbana e à economia monetária que encontram nos Países Baixos desenvolvimento acelerado. Os padrões de gosto dos burgueses flamengos articulam-se à realidade do trabalho e do comércio, no qual não há lugar para desmesuras nem pompas. A vitória do protestantismo, por sua vez, obriga os pintores a se especializarem em ramos da arte que não levantem objeções de natureza religiosa. Os retratos, as paisagens e as cenas de gênero aparecem, assim, como alternativas aos artistas que haviam perdido um importante filão de trabalho, a pintura religiosa. No que diz respeito à tradição artística propriamente dita, é possível dizer que a pintura de gênero retoma motivos encontráveis nas ilustrações feitas nas margens dos manuscritos medievais - com cenas e temas cotidianos, desvinculados dos textos sagrados - e também dos "Livros das Horas", da Idade Média, em que os salmos são acompanhados por um calendário ilustrado, com a descrição das atividades correspondentes aos meses do ano. Por exemplo, no mês de junho do Livro das Horas do Duque de Berry (1415-1416) vemos homens ceifando e mulheres arrumando os montes de fenos, com o auxílio do ancinho e do forcado. É preciso lembrar ainda as feições particulares que tomam a pintura flamenga nos séculos XV e XVI, afinadas com a descrição de registros triviais do cotidiano, com as representações minuciosas de animais, plantas e lugares. O célebre Giovanni Arnolfini e sua Esposa (1434) de Jan van Eyck (ca.1390-1441) é revelador dessa orientação descritiva da pintura holandesa. Basta notarmos o cuidado do pintor com as texturas reais das faces do casal em primeiro plano e de suas vestimentas, bem como a composição detalhada do ambiente interior: os móveis, os candelabros, o cão e o espelho ao fundo em que se encontram refletidos o casal (de costas) e duas outras figuras.
Mas é Pieter Brueghel (ca.1525-1569), O Velho, que irá se deter nas cenas de gênero, no seu caso, nas cenas da vida camponesa: os aldeões no trabalho e em festejos variados. Um Casamento Aldeão (1565) exemplifica a opção de sua pintura pela riqueza de detalhes, pelo colorido e técnica precisa. A cena, repleta de personagens e situações, tem lugar num celeiro, como indica o feno à mostra. Muitas ações ocorrem simultaneamente: em primeiro plano, os pratos transportados por dois homens de avental branco; no canto esquerdo, um homem serve cerveja e um menino brinca; à mesa, as pessoas comem e conversam, enquanto um grupo de músicos toca, de pé; no fundo, outros tentam entrar pela porta. Um olhar mais detido consegue identificar ainda cada figura: a noiva e seus pais, um frade, o noivo, um magistrado, entre muitos outros. O filão aberto por Brueghel vai ser explorado no século XVII nas obras animadas e humorísticas de Jan Steen (1626-1679), popular pelas tavernas e ambientes festivos que registra com atenção aos coloridos, gestos e poses. Lembremos, entre outros, A Festa de São Nicola (s.d.), A Festa na Osteria (1674) e A Festa de Batizado (1664).
Grande pintura feita a partir de temas menores e desimportantes, esta parece ter sido a lição dos pintores holandeses especializados nas cenas de gênero. Dentre eles destaca-se Jan Vermeer (1632-1675), que se não pintou tantos quadros como Jan Steen, deixou obras antológicas, como A Leiteira (ca.1660), Mulher Lendo Diante da Janela (ca.1657), Jarro de Vinho (ca.1658-1660), A Lição de Música (ca.1662-1665), entre outras. Boa parte de seus quadros registra cenas da vida doméstica, por meio de imagens harmoniosas. Em foco, uma ou duas figuras, realizando tarefas domésticas ou em momentos de lazer. A luz entra em geral pelas janelas, à esquerda da composição, em que predominam amarelos, azuis e tons acinzentados. Não mais o tom efusivo e alegre das cenas de gênero, mas a sobriedade e concentração da figura retratada na execução de sua tarefa. Com Vermeer, afirma o historiador E. H. Gombrich, "a pintura de gênero perdeu o último vestígio de ilustração bem-humorada. Seus quadros são, na realidade, naturezas-mortas incluindo seres humanos".
No Brasil, a pintura de gênero é ensaiada pelos pintores formados no âmbito da academia no final do século XIX e início do século XX. No interior da ampla produção de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), por exemplo, o registro de cenas da vida cotidiana, dos ambientes domésticos e do mundo do trabalho está presente em diversos trabalhos, como Uma Senhora Brasileira em seu Lar (ca. 1823), Botica e Interior de uma Casa de Ciganas (1823). Almeida Júnior (1850-1899), por sua vez, realiza pinturas de gênero em diferentes momentos: Quarto do Artista em Paris (1886), Caipiras Negaceando (1888), Caipira Picando Fumo (1893), O Importuno (1898). A pintura de gênero encontra expressão ainda em obras de Modesto Brocos (1852-1936) - Engenho de Mandioca (1892) -, de Belmiro de Almeida (1858-1935) - A Tagarela (1893) e Arrufos (1887) - e de Henrique Bernardelli (1858-1936), por exemplo Interior Italiano (s.d.) e A Tarantela (ca. 1886).
Obras 27
A Tagarela
A Tarantela
Arrufos
Ateliê em Paris
Fontes de pesquisa 4
- ALPERS, Svetlana. A arte holandesa no século XVII. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 1983, 432 pp. il. p&b. color (Coleção Texto e Arte).
- CHILVERS, Ian (org.). Dicionário Oxford de arte. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- La nuova enciclopedia dell'arte Garzanti. Milano: Garzanti, 1986.
- VÉGH, János. A pintura holandesa. Tradução Luiz Oscar Dubeux, Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S/A, 1981.
Como citar
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PINTURA de Gênero.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/termo912/pintura-de-genero. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7