Bezerra da Silva
Texto
José Bezerra da Silva (Recife, Pernambuco, 1927 – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005). Cantor, ritmista, compositor. É um dos últimos representantes da linhagem de “sambistas malandros”, escolado na síncopa do coco nordestino. Alia a tradição do partido alto, originada no início do século XX nos redutos baianos do Rio de Janeiro, a um filão mercadológico inaugurado por ele e seu parceiro Dicró (1946-2012), o chamado sambandido.
Ainda criança, canta coco, toca zabumba e aprende a tocar trompete. Ingressa na escola da Marinha Mercante, de onde é expulso depois de dois anos. Entre 1942 e 1945, muda-se para o Rio de Janeiro. Residindo no Morro do Cantagalo, toca tamborim em pagodes e se entrosa com músicos de samba. Em 1950, o compositor Doca leva-o para tocar na Rádio Clube do Brasil, atividade que alterna com o trabalho na construção civil.
Algum tempo depois fica desempregado e, sem encontrar ocupação, vive por sete anos em situação de rua. Readquire endereço fixo em 1961, quando passa a viver na favela do Parque Proletário da Gávea, voltando a trabalhar no rádio e na construção civil. Também atua como ritmista em discos de sambistas, como Clementina de Jesus (1902-1987) e Roberto Ribeiro (1940-1996), e começa a compor. Na voz de Marlene (1922-2014), “Nunca mais”, composta em parceria com Norival Reis (1924-2001), ganha o concurso de carnaval da Rádio Nacional, em 1965. Passa a cantar em rádios e lança seu primeiro compacto em 1969.
É preso várias vezes “para averiguação” e, nos anos 1970, é despejado pela polícia, que o transfere para Cascadura. Relaciona-se com a religião de maneira próxima por duas vezes. A primeira, quando sai das ruas após frequentar um terreiro de umbanda por quatro anos; a segunda, nos últimos anos de vida, quando se torna evangélico.
Em 1973, grava seu primeiro LP, Bezerra da Silva: o rei do côco, seguido pelo volume 2, em 1976. Em 1977, integra, como percussionista, a orquestra da Rede Globo, o que lhe permite abandonar o trabalho de pintor. No mesmo ano, lança, em parceria com Genaro, seu primeiro disco de samba, Partido alto nota 10, que alavanca sua carreira de intérprete. Em 1979, grava Partido alto nota 10 (vol. 2), que traz seu primeiro sucesso, “Pega eu”, e, no ano seguinte, lança Partido alto nota 10 (vol. 3). Entre 1981 e 1993, grava um álbum por ano pela RCA, que lhe rendem 11 discos de ouro, três de platina e um de platina dupla1. Nessa época, firma-se como intérprete de compositores desconhecidos.
Compostos por gente simples do morro, os sambas que interpreta são crônicas da vida nas favelas cariocas, tratando da criminalidade, da violência e da vida precária de seus moradores, com linguagem irreverente e coloquial. As letras evidenciam estratégias de sobrevivência dos excluídos em uma sociedade injusta e racista, denunciada em letras como “Preconceito de cor”: “A lei só é implacável pra nós favelados / E protege o golpista / Ele tinha que ser o primeiro da lista / Se liga nessa doutor”.
São frequentes as referências às drogas, como em “A semente” (Walmir da Purificação, Tião Miranda, Roxinho e Felipão); à delação, tema de “Defunto caguete” (Adelzonilton [1943-2016], Franco Teixeira, Ubirajara Lúcio); ou aos políticos, satirizados em “Candidato caô caô”, (Walter Meninão, Pedro Butina). Por conta dessas temáticas, enfrenta problemas com as autoridades, que consideram letras como a de “Malandragem dá um tempo” (“Vou apertar / Mas não vou acender agora”) um incentivo ao consumo de maconha.
Suas experiências se identificam com os sambas que interpreta. Estes atualizam a figura do malandro, visto não de forma romantizada, como no samba dos anos 1930 e 1940, mas adequado à realidade das grandes cidades brasileiras, que se tornam mais violentas a partir dos anos 1970. O malandro cantado por Bezerra da Silva é aquele que sobrevive à guerra social dos morros sem se tornar bandido.
Lançando seus discos em sistemas de som comunitários das favelas, portas de lojas, shows populares e programas de rádio AM, obtém sucesso à revelia da indústria fonográfica. Com esta, mantém uma relação de desconfiança, acusando as gravadoras de maquiar os números da venda de discos.
Em 1995, com Moreira da Silva (1902-2000) e Dicró, lança Os três malandros in concert. Nessa época, Bezerra da Silva se aproxima de São Paulo, gravando sambas sobre a realidade das periferias paulistas, como “Zona Leste somos nós” (Marco Antônio) e “Os DPs de São Paulo” (Caprí [1939] e Silvio Modesto [1944]). Seu último lançamento, de gravação independente, traz repertório gospel, Caminho de luz (2004).
Consumidos nos subúrbios e favelas cariocas, seus sambas são apropriados e ressignificados pela classe média em meados dos anos 1990, quando dois de seus maiores sucessos são regravados pelos grupos de rock O Rappa (“Candidato caô caô”) e Barão Vermelho (“Malandragem dá um tempo”). O rapper Marcelo D2 (1967) grava, em 2010, um álbum tributo ao sambista (Marcelo D2 canta Bezerra da Silva), ressaltando a crítica social presente em seu repertório.
Embora se aproxime da chamada “velha guarda” do samba, Bezerra da Silva não compartilha da estética “raiz”, que defende a pureza e a autenticidade do gênero pela retomada de sucessos do passado. Tampouco se aproxima do pagode dos anos 1980, promovido por músicos como Almir Guineto (1946-2017), Jorge Aragão (1949) e Zeca Pagodinho (1959), que retomam a tradição do partido alto. O sambandido, apesar das muitas semelhanças musicais (o canto falado, a ênfase nos instrumentos de percussão, o uso de melodias-clichês), distingue-se pela temática marginal e a relação de liderança estabelecida pelo intérprete com os compositores.
Fontes de pesquisa 4
- DISCURSOS Sediciosos. Bezerra da Silva. Entrevista. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 4, n. 7-8, p. 11-17, 1999.
- ONDE a coruja dorme. Dir.: Márcia Deraik e Simplício Neto. Rio de Janeiro: Antenna e TV Zero, 2012. 1 DVD (72 min.).
- SOUSA, Rainer Gonçalves. Bezerra da Silva e o cenário musical de sua época: entre as tradições do samba e a indústria cultural (1970-2005). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Fereral de Goiânia (UFG), Goiânia, 2009.
- VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro. Trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
Como citar
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BEZERRA da Silva.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa638113/bezerra-da-silva. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7