Ruth de Souza

Ruth de Souza
Texto
Ruth Pinto de Souza (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1921 - idem, 2019). Atriz. Pioneira no teatro, cinema e televisão, é a primeira artista negra a conquistar projeção na dramaturgia brasileira. Em sua longa trajetória, de repercussão internacional, contraria as construções estereotipadas de personagens negros. Com consciência política, cria gestuais e universos próprios para as mulheres que representa.
Nasce na zona norte do Rio de Janeiro, no bairro de Engenho de Dentro, e logo se muda com a família para um sítio em Porto Marinho, interior de Minas Gerais. Aos 9 anos de idade, volta para a capital carioca após a morte do pai. Encanta-se pelo teatro e o cinema quando assiste ao filme Tarzan, o Filho das Selvas (1932). Com ingressos que a mãe, lavadora de roupas, ganha das patroas, vai assistir a espetáculos no Theatro Municipal.1
Enfrenta reações de descrença e chacota à decisão precoce de ser atriz, numa época em que é incomum para artistas negras fixarem uma carreira profissional de atuação, por causa da estrutura social racista.
No começo da década de 1940, Ruth conhece o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo capitaneado pelo escritor e dramaturgo Abdias Nascimento (1914-2011), ao qual se integra em 1945. Estreia nos palcos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro aos 24 anos, como ponta na peça O Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953). Sua primeira grande atuação acontece em 1947, em O Filho Pródigo, do escritor Lúcio Cardoso (1912-1968).
Nesse início de carreira, tem seu trabalho reconhecido por parte da imprensa. Em 1948, a colunista Maria Nascimento aponta-a como exemplo da “nova mulher negra” no jornal Quilombo: “Além de intérprete dotada de rara sensibilidade e poder expressional, ela é uma personalidade forte e interessante, estudiosa de todos os problemas de arte, inteligência alerta e sequiosa de aprender sempre mais”.2 Com o TEN, Ruth assume papel provocador de um teatro de intervenção e experimentação cênica, voltado à denúncia da exclusão social e da opressão cultural do negro no Brasil.
Em 1949, inicia carreira no cinema em filmes produzidos pelo estúdio carioca Atlântida. Na década seguinte, muda-se por um ano para os EUA, graças a uma bolsa da Fundação Rockefeller.
Estuda e pesquisa artes cênicas na American National Theater and Academy, na Karamu House e na Universidade de Harvard.
É convidada para representar uma mulher escravizada no épico histórico Sinhá Moça, lançado pelo estúdio paulista Vera Cruz em 1953. A obra aborda a luta abolicionista nos últimos anos de escravidão no Brasil. Sabina, personagem de Ruth, organiza uma fuga da fazenda onde é mantida. Numa cena-chave, é agredida pelo capataz no lado de fora da casa grande, enquanto a sinhá toca piano no de dentro. Ao se desvencilhar do opressor, a personagem altera a expressão facial, ergue a cabeça, modula o caminhar e segue até a senzala. O caráter determinado da atriz se traduz na postura de resistência na história.3
Sinhá Moça compete ao Leão de Ouro no Festival de Veneza. Ruth disputa o prêmio de melhor atriz, mas perde para a alemã Lili Palmer (1914-1986). A interpretação de Sabina é saudada por se recusar a compor um retrato tolo da personagem. De acordo com a atriz, “aquela mulher não era assim. Ela tinha um olhar. Ela sabia pensar”.4 Torna-se a primeira artista negra a aparecer na capa da revista Manchete.
Muitas das personagens das peças e filmes nos quais trabalha ao longo das décadas de 1950 e 1960 remetem à resistência do corpo e à vivência negra na sociedade brasileira. Entre elas, a representação da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960. A obra é adaptada para o teatro no ano seguinte, com texto de Edy Lima, direção de Amir Haddad (1937) e cenário de Cyro Del Nero (1931-2010). Ao lado da própria Carolina e do jornalista Audálio Dantas (1929-2018), visita a Favela do Canindé, onde a escritora morou, para compor as experiências narradas no livro.
Em 1983, volta a interpretar Carolina Maria de Jesus na minissérie Caso Verdade: Quarto de Despejo, na Globo. Esta recriação, é elogiada pelo jornalista Artur da Távola (1936-2008) em O Globo por “traduzir a solidão, a tristeza e a certeza do abandono daquela mulher” e encontrar “uma forma de olhar desconfiada e temerosa, tão comum entre pessoas machucadas pela vida”.5
A carreira na televisão se inicia com teleteatros nas TVs Tupi e Record nos anos 1950. Em julho de 1969, contratada pela Rede Globo, torna-se a primeira protagonista negra de um folhetim televisivo brasileiro, A Cabana do Pai Tomás. A personagem Cloé, casada com o personagem-título [Sérgio Cardoso (1925-1973)], é outra mulher escravizada e resistente às opressões de um grupo de fazendeiros. Apesar do papel central, o nome de Ruth não encabeça os créditos na abertura, o que ela considera comprovação do preconceito sobre artistas negros.
Em março de 2019, aos 97 anos, é homenageada no Carnaval carioca pela escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz, com o samba-enredo “Ruth de Souza – Senhora Liberdade, abre as asas sobre nós”, que a celebra em versos como “talento é dom pra vencer/ preconceito não pôde calar”.
Ruth de Souza contribui com a reconfiguração do imaginário cultural brasileiro em relação à população negra. Por estrear nos palcos menos de seis décadas após a abolição da escravatura, supera preconceitos e torna-se figura importante na cultura popular, na representação e representatividade da mulher negra na dramaturgia do país.
Notas
1. JESUS, Maria Angela de. Ruth de Souza: estrela negra. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. (Aplauso).
2. Quilombo, dezembro de 1948, p. 6, cf. CUNHA, Vanessa Lima. Quilombo: a voz do Teatro Experimental do Negro (Rio de Janeiro, 1940/1950). Cadernos de Clio, Curitiba, n. 3, p. 283-300, 2012. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/clio/article/view/40401/24646. Acesso em: 14 maio 2019.
3. GONÇALVES, Maurício. In. COUTINHO, Angélica; GOMES, Breno Lira (Orgs.). Pérola Negra: Ruth de Souza. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), 2016.
4. JESUS, Maria Angela de. Ruth de Souza: estrela Negra. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. (Aplauso).
5. TÁVOLA, Artur da. Ruth de Souza, genial. O Globo, Rio de Janeiro, 13 mar 1983. Revista da Tevê.
Obras 1
Espetáculos 22
Fontes de pesquisa 18
- ANUÁRIO de teatro 1994. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1996.
- COUTINHO, Angélica; GOMES, Breno Lira (Orgs.). Pérola Negra: Ruth de Souza. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), 2016.
- CUNHA, Vanessa Lima. Quilombo: a voz do Teatro Experimental do Negro (Rio de Janeiro, 1940/1950). Cadernos de Clio, Curitiba, n. 3, p. 283-300, 2012. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/clio/article/view/40401/24646. Acesso em: 14 maio 2019
- DESBOIS, Laurent. A Odisseia do cinema brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
- DOMINGUES, Petrônio. Quilombo (1948-1950): uma polifonia de vozes afro-brasileiras. Ciências & Letras, n. 44, p. 261-289, 2008. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/clio/article/view/40401/24646. Acesso em 17 maio 2019
- EICHBAUER, Hélio. [Currículo]. Enviado pelo artista em: 24 abr. 2011.
- FONTA, Sérgio. [Currículo]. Enviado pelo artista em 2011.
- G.R.E.S. Acadêmicos de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos de Santa Cruz. Disponível em: http://academicosdesantacruz.com.br/sobre-o-site/. Acesso em: 5 maio 2019
- JESUS, Maria Angela de. Ruth de Souza: estrela negra. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. (Aplauso).
- JUNQUEIRA, Cristine. Biografia de Ruth de Souza. Brasil Memória das Artes, Rio de Janeiro, Funarte, 2006. Atores do Brasil. Disponível em: http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/atores-do-brasil/biografia-de-ruth-de-souza. Acesso em: 4 maio 2019
- KLEMZ, Laura. Quarto de despejo: a peça. Blog do IMS, São Paulo 11 mar. 2014. Disponível em: https://blogdoims.com.br/quarto-de-despejo-a-peca-por-elvia-bezerra-julia-menezes-e-laura-klemz/. Acesso em: 4 maio 2019
- MUSEU Afro Brasil. Ruth de Souza. Museu Afro Brasil, São Paulo. História e memória. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/historia-e-memoria/2014/07/17/ruth-de-souza. Acesso em: 4 maio 2019
- MÜLLER, Ricardo Gaspar (Org.). Teatro experimental do negro. Dionysos, Rio de Janeiro, n. 28, 1988. Edição especial.
- NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados, São Paulo, v.18, n. 50, jan/abril 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000100019&script=sci_arttext. Acesso em: 5 maio 2019
- OUTROS Dias da Mulher: Ruth de Souza foi a primeira atriz negra a atuar no Municipal do Rio. Geledés, São Paulo, 7 mar. 2017. Patrimônio Cultural. Disponível em: https://www.geledes.org.br/outros-dias-da-mulher-ruth-de-souza-foi-primeira-atriz-negra-atuar-no-municipal-rio/. Acesso em 4 maio 2019
- Programa do Espetáculo - O Milagre de Annie Sullivan - 1967.
- SOUZA, Ruth. (Dossiê Personalidade Artes Cênicas) Rio de Janeiro: CEDOC/Funarte.
- TÁVOLA, Artur da. Ruth de Souza sacerdotisa da dramaturgia, O Globo, Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1986.
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RUTH de Souza.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa349507/ruth-de-souza. Acesso em: 04 de maio de 2025.
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