Quarto de despejo
Texto
Análise
Quarto de despejo: diário de uma favelada é a primeira e mais conhecida obra da escritora Carolina Maria de Jesus. O impacto causado pelo diário na mídia e em setores do meio literário nacionais deve-se, sobretudo, à experiência social narrada como testemunho pela autora. Nascida em Sacramento, Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus transfere-se para São Paulo em 1937, onde trabalha como catadora de lixo. Em 1955, inicia a produção do diário, em que registra sua vida na favela do Canindé. Segundo estudiosos a produção da autora em diário, poesia, conto e outros gêneros é antiga, mas sua trajetória literária se consolida apenas em 1958, quando tem seu primeiro contato com o jornalista Audálio Dantas (1929).
Encarregado de realizar uma reportagem sobre a favela do Canindé, Dantas decide transferir o tema da matéria para a vida e obra da escritora, tão logo a conhece. O repórter veicula trechos selecionados dos cerca de vinte cadernos de diário mantidos por Carolina Maria de Jesus, primeiramente no jornal Folha da noite (1958) e na revista O cruzeiro (1959 e 1960), o que por fim viabiliza a publicação em livro do material por ele editado.
A obra atinge sucesso de vendas incomum no mercado editorial nacional, a primeira tiragem, de 3 mil exemplares é estendida a 30 mil exemplares e esgotando-se em três dias, apenas em São Paulo. Menos de um ano depois, começam a surgir edições para outras línguas, com a publicação em 17 países até 1963, chegando a 40 atualmente. As adaptações para o teatro, o cinema e a televisão são simultâneas ao sucesso do livro. A versão teatral, de 1961, em São Paulo, tem direção do ator e diretor Amir Haddad (1937).
O livro é pertinente ao contexto do final da década de 1950 e início de 1960. Neste período, o País assiste à tomada de consciência do contraste entre o processo de modernização econômica e a reprodução massiva de desigualdades sociais. Ecos desse quadro histórico são identificáveis na trajetória da escritora.
Quarto de despejo é composto por entradas de diário produzidas em duas fases, uma que vai de 15 a 28 de julho de 1955 e, outra que se inicia em 02 de maio de 1958 e vai até 1o de janeiro de 1960. A Audálio Dantas, novamente, deve-se a manutenção da grafia original de Maria Carolina de Jesus, preservando-se suas constantes fugas à norma gramatical, embora muitas alterações sejam feitas pelo jornalista visando melhores condições de legibilidade. Assim, em entradas que se sucedem dia a dia, com algumas exceções, a voz da narradora busca a máxima continuidade com a vivência cotidiana.
Ao mesmo tempo, o tom do relato oscila entre três registros. Em um deles, essencialmente objetivo, retrata-se a luta pela sobrevivência na favela e as saídas da autora à cidade. Nesse sentido, o último registro consiste simplesmente em “Levantei as 5 horas e fui carregar água”. Em outro, surgem reflexões sobre a condição de miséria da narradora, frequentemente estendidas à realidade social e política mais ampla. Finalmente, em um terceiro nível, unem-se, de um lado, o pensamento da autora a respeito do sentido de sua atividade de escrita, que vai da resistência à evasão e, de outro, um estilo mediado pelo desejo de superação estilística. É o que se nota em trechos como “Enquanto escrevo vou pensando que resido em um castelo cor de ouro que reluz a luz do sol [...] É preciso criar este ambiente de fantasia para esquecer que estou na favela”. Ou, ainda, em passagem que resume o lugar de fala construído pela autora enquanto, de acordo com a crítica Regina Dalcastagnè (1967), lugar de validação de uma experiência que coloca em pauta a partilha dos espaços públicos no Brasil: “Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”.
Quanto ao valor literário da obra, a fortuna crítica se divide. O entusiasmo do grande público com o livro de 1961, que não se repete nos demais trabalhos publicados pela autora, encontra respaldo em diversos escritores e especialistas, como o escritor italiano Alberto Moravia (1907-1990) e a escritora Clarice Lispector (1925-1977). O crítico Wilson Martins (1921-2010) e um grande número de leitores questionam a autenticidade do texto e ressaltam o papel decisivo das intervenções editoriais de Dantas. Já o poeta Ferreira Gullar (1930) e seu antecedente Manuel Bandeira (1886-1968), veem na obra “extraordinária força criativa”. Há também especialistas para quem o livro não tem relevância literária, limitando-se ao recorte documental. É o caso, por exemplo, da escritora e jornalista Marilene Felinto (1957), para quem os diários “não têm qualquer valor literário, porque não transcendem sua condição de biografia”.
Atualmente, Quarto de despejo é considerado um marco da literatura documental. Quanto a seu estatuto literário, o texto antecipa uma irrupção massiva da escrita testemunhal na década 70, sobretudo como reação à realidade social de violência e opressão instaurada pela Ditadura Militar. Trata-se de um conteúdo colado à experiência social, produzido por uma autora negra e marginalizada. A obra antecipa, igualmente, a contínua conquista de espaço pela literatura negra, feminina e proveniente das periferias, que ocorre nas décadas subsequentes. Sua posição prospectiva, assim, é pioneira.
Fontes de pesquisa 7
- ANDRADE, Letícia Pereira de. O Diário como Utopia: Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul , 2008.
- DALCASTAGNÈ, Regina. Para além da 'perspectiva do alpendre'. Diário Oficial do Estado, Recife, [s.d.]. Suplemento Pernambuco. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%A3o-impressa/71-ensaio/1452-para-al%C3%A9m-da-%E2%80%9Cperspectiva-do-alpendre%E2%80%9D.html. Acesso em: 27 ago. 2015.
- DANTAS, Audálio. A atualidade do mundo de Carolina. In: JESUS, Carolina MARIA de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 9. ed. São Paulo: Ática, 2007.
- DANTAS, Audálio. Da favela para o mundo das letras. O Cruzeiro, São Paulo, n. 48, 10 set. 1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=003581&pagfis=132008. Acesso em: 19 abr. 2022
- LITERAFRO. O portal de literatura afro-brasileira. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2018. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/. Acesso em: 18 abr. 2022
- MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, n. 37, maio 1998.
- MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Os caminhos literários de Carolina Maria de Jesus: experiência e construção estética. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Como citar
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QUARTO de despejo.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67358/quarto-de-despejo. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7