Ozualdo Candeias
Texto
Ozualdo Ribeiro Candeias (Cajobi, São Paulo, 1918 – São Paulo, São Paulo, 2007). Diretor, roteirista, ator, fotógrafo, produtor, montador. Acredita-se que Candeias tenha nascido em 1918, apesar ser registrado em Cajobi, São Paulo, apenas em 1922. Reside, durante a infância e a adolescência, em várias cidades dos estados de São Paulo e Mato Grosso, em fazendas e no centro urbano. Adulto, passa por diversas profissões, como sargento de aviação e caminhoneiro. Compra uma câmera 16 mm Keystone, com a qual faz filmes caseiros e registra festas de casamento e aniversário. Autodidata, aprende as técnicas do cinema por meio de manuais e realiza o curta documental Tambaú, a Cidade dos Milagres (1955). Entre 1955 e 1957, frequenta o Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo (Masp). No final dos anos 1950 e nos 1960, trabalha como cinegrafista e dirige cinerreportagens e filmes institucionais, como os feitos para o governo do estado de São Paulo, Polícia Feminina (1960) e Ensino Industrial (1962). Também trabalha como diretor de produção de Meu Destino em Tuas Mãos (1963) e como assistente de direção de À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964), ambos de José Mojica Marins (1936), entre outros. Com poucos recursos, realiza A Margem (1967), filme que dá nome e serve como ponto de partida para o chamado cinema marginal, mudando paradigmas do cinema que se faz no país. Na busca de distribuidor para a fita, frequenta a Boca do Lixo, conhecido reduto do cinema independente, localizado na zona central da cidade de São Paulo. Defensor irrestrito do local, registra seu cotidiano por meio de fotografias. Com algumas delas, monta dois curtas, Uma Rua Chamada Triumpho 969/70 (1970) e Uma Rua Chamada Triumpho 970/71 (1971), além de filmar Bocadolixocinema ou Festa da Boca (1976).
Em 1968, faz o episódio “O Acordo”, para o longa Trilogia do Terror. Realiza, ainda, Meu Nome é Tonho (1969), faroeste caboclo de êxito comercial, e A Herança (1971), transposição de Hamlet, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), para o Brasil rural dos anos 1960. O protagonista do filme, o ator David Cardoso (1943), interessado na carreira de produtor, convida Ozualdo para fazer um filme no Mato Grosso. Surge assim Caçada Sangrenta (1974). Repetem a parceria em 1983, com A Freira e a Tortura.
Com dificuldade para emplacar seus projetos, filma com poucos recursos dois médias-metragens, ZéZero (1974) e O Candinho (1976). Trabalha como diretor de fotografia em A Noite do Desejo (1973) e Ninfas Diabólicas (1978). Participa como ator em Ritual dos Sádicos (1969), Sinal vermelho – As Fêmeas (1972), 19 Mulheres e 1 Homem (1977). Dirige Aopção ou As Rosas da Estrada (1981), vencedor do Leopardo de Bronze, no Festival de Locarno. Faz ainda os curtas A Visita do Velho Senhor (1976), Senhor Pauer (1988), Bastidores das Filmagens de um Pornô (1992) e Lady Vaselina (1990), e os longas Manelão, o Caçador de Orelhas (1981), As Bellas da Billings (1986), quase uma despedida da Boca do Lixo, e O Vigilante (1992), vencedor do prêmio especial do júri no 25º Festival de Brasília e inédito no circuito comercial.
Análise
Em 1967, o cinema brasileiro tem como referência de qualidade e de autoria o cinema novo, movimento com pretensões de remodelar o imaginário estético e temático da produção nacional. Assim como o cinema novo, A Margem é rodado com pequeno orçamento e retrata a vida de pessoas da classe baixa. O filme cria um novo paradigma: retrata o marginalizado sem condescendência, em tom realista, em busca de poesia no lixo urbano. O longa de Candeias estabelece-se como marco zero do chamado cinema marginal – a palavra “margem” tomada como sinônimo de “radical”. Essa corrente cinematográfica busca na irreverência e no tom anárquico uma estética oposta a do cinema novo.
A cada novo projeto, Ozualdo conhece diversas classes sociais e realidades brasileiras. Essa experiência cria sua marca registrada: o enfoque sobre o cidadão que vive nas periferias do sistema. Em A Margem, o cineasta filma desejos, problemas e situações cotidianas de pessoas que vivem e transitam nas bordas do rio Tietê. Em Aopção, retrata a vida de mulheres que, rumo às grandes cidades, prostituem-se nas estradas. O olhar que o diretor lança sobre elas é de cumplicidade, jamais demagógico ou sociológico.
Com raras exceções, o diretor trabalha com atores desconhecidos ou não profissionais, e não utiliza maquiagem nem rebatedores de luz. Busca, dessa maneira, um registro cru dos personagens, tentando aproximar-se da imagem comum e cotidiana. Por causa dessa característica, é chamado por parte da crítica de primitivo ou naïf. O cineasta prefere o termo primário, pelo baixo orçamento de seus filmes.
O registro mundano também permeia a filmografia de Candeias, inclusive em filmes feitos sob encomenda, como A Freira e a Tortura, feito para produtora de David Cardoso. Nessa película, o diretor conta a história de uma professora presa e torturada, acusada de ferir os ideários do regime militar. Ozualdo descreve diversos tipos encarcerados, inclusive a prostituta acima do peso, com estrias e celulites, nua, fazendo sexo e seduzindo os homens – escolha impensável em filmes eróticos com pretensões comerciais.
O crítico de cinema Salvyano de Cavalcanti Paiva afirma:
Candeias é cineasta intuitivo, original, com raro e forte senso de imagem. A tipologia que cria é do mais absoluto realismo: seu hábito de filmar, a falta de recursos econômicos, levou-o a uma espécie de marginalismo no cinema nacional, pois não usa rebatedor, não usa maquiagem nos atores, prefere trabalhar com gente sem experiências profissionais, enfim, faz filme sem concessão ao bom tempo da época 1.
Outra preocupação do cineasta é a migração de pessoas do campo para os centros urbanos, processo que aumenta a exclusão social e configura-se como uma tragédia moderna. O tema é tratado em ZéZero, média-metragem que relata, sem uso de falas, a ida de um jovem à cidade grande em busca de fortuna e glória. O personagem trabalha e é explorado, mas tem uma surpresa ao voltar para a casa: descobre-se vitorioso de uma loteria. Para o crítico de cinema Inácio Araújo (1948), Candeias:
é o cineasta dos destinos incompletos, malformados, situados entre o milagre redentor e o silêncio espesso da imagem (pode ser a imagem da estátua de Anchieta, pode ser a de uma prostituta em frente a um bar), entre o favor divino capaz de resgatá-las e a impiedade terrena que os desfigura 2.
Em Candinho, o mesmo registro: expulso da terra, o deficiente mental Candinho parte para cidade em busca de Jesus Cristo, encontrando-o ao tomar café com fazendeiros. Candinho traz uma característica pouco vista no cinema de Ozualdo: o uso de alegorias e metáforas de caráter não realista, como em A Margem.
Defensor do cinema brasileiro, recusa reproduzir a fórmula de filmes estrangeiros de sucesso. Uma característica marcante é o abrasileiramento de gêneros cinematográficos. Meu Nome é Tonho é um faroeste caboclo irreverente, que retrata as questões da terra no interior brasileiro, rodado no auge do cinema marginal. Já em A Herança, encena um melodrama conhecido no Brasil rural, transformando o conflito de Hamlet em um embate pela terra. Hamlet vira Omleto, e Ofélia é negra. A Herança é, talvez, o melhor exemplo de como Candeias transforma a falta de recursos em originalidade: sem dinheiro para dublar os atores na pós-produção – numa época em que quase todos os filmes nacionais são dublados –, o diretor coloca sons de animais no lugar das vozes.
Ozualdo Candeias tem grande importância para o cinema brasileiro por iniciar o cinema marginal e por inaugurar o que seria a essência da Boca do Lixo: filmes pobres, feitos por pessoas sem formação acadêmica, que tiram do lixo seu potencial poético e comercial. Parte importante da obra do cineasta é, inclusive, seus documentários sobre o local, em particular, Festa na Boca, em que a câmera passeia pela festa com liberdade, situando diferentes classes cinematográficas sem distinção: críticos e intelectuais ao lado de maquinistas e eletricistas, diretores, atores, fotógrafos. Talvez seja o mundo ideal para o diretor, retratista dos excluídos. Não à toa, As Bellas da Billings é considerada uma despedida da Boca do lixo, em decadência nos anos 1980. Em uma cena do filme, o protagonista, um migrante do campo, para em frente ao bar Soberano, ponto de encontro do pessoal de cinema na Boca. O acompanhante diz, logo em seguida, acabando com a ilusão: “Essa Boca não é mais aquela”.
Notas
1. Em depoimento para Luiz Felipe Miranda. Cf. MIRANDA, Luiz Fernando. Dicionário de cineastas brasileiros. São Paulo: Art: Secretaria de Estado de São Paulo, 1990. p. 79.
2. ARAÚJO, Inácio. O limbo das almas e a anomalia dos corpos. In: Ozualdo R. Candeias. Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. p. 44.
Obras 3
Exposições 1
-
4/5/2012 - 24/6/2012
Links relacionados 1
Fontes de pesquisa 17
- ALMEIDA, Miguel de. Um cineasta com os olhos na rua. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 dez. 1981. Ilustrada, p. 54.
- ALMEIDA, Sérgio Pinto de. O cinema de rua de Ozualdo Candeias. Estado de S. Paulo, São Paulo, 6 dez. 1988. Caderno 2, p. 10.
- ARAÚJO, Inácio. Candeias põe a mão da cumbuca Boca do Lixo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 jul. 2001. Ilustrada, p. E 2.
- ARAÚJO, Inácio. O limbo das almas e a anomalia dos corpos. In: Ozualdo R. Candeias. Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. p. 43-4.
- CINEMATECA Brasileira - Filmografia: base de dados. Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p. Acesso em: 02 jun. 2012.
- CURY, Antonio Alves. As Rosas da estrada. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 40, p. 82-3, ago./out., 1982.
- FERREIRA, Jairo. Candeias. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
- FERREIRA, Jairo. Candeias. Folha de S.Paulo, São Paulo, 22 jul. 1977. Ilustrada, p. 33.
- FONSECA, Carlos. Candeias – Na estrada do cinema. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 10, p. 20-7, 20 jul. 1968.
- MIRANDA, Luiz Fernando. Dicionário de cineastas Brasileiros. São Paulo: Art: Secretaria de Estado de São Paulo, 1990. p. 77-9.
- OZUALDO Candeias e o Cinema. São Paulo. Disponível em: http://www.ozualdocandeias.com.br/. Acesso em: 2 jul. 2012.
- PUPPO, Eugênio (Org.). Ozualdo R. Candeias. Centro Cultural Banco do Brasil, 2002.
- PUPPO, Eugênio (org.). Cinema Marginal Brasileiro e suas Fronteiras. 2. ed. Rio de Janeiro, Heco Produções, 2002.
- SILVA NETO, Antonio Leão da. Dicionário de filmes brasileiros: curta e média metragem. São Bernardo do Campo: Edição do Autor, 2011.
- SILVA NETO, Antonio Leão da. Dicionário de filmes brasileiros: longa metragem. São Bernardo do Campo: Edição do Autor, 2009.
- TOSI, Juliano. Candeias e a Boca: notas sobre o cinema subterrâneo. Revista Paisà, São Paulo, n. 8, p. 30-31, abr./ maio 2007.
- TOSI, Juliano. Mostra exibe obra integral de Ozualdo Candeias. Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 jul. 2002. Caderno 2, p. D-12.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
OZUALDO Candeias.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa11692/ozualdo-candeias. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7