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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Aopção ou As Rosas da Estrada

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 17.05.2024
1981
Filme dirigido por Ozualdo Candeias, iniciado com recursos do próprio diretor, é realizado por uma equipe que trabalha sem remuneração, e com o cineasta acumulando diversas funções, entre elas a de fotógrafo, montador e ator. De acordo com o produtor Virgilio Roveda, parte da película utilizada está vencida e é recolhida por ele e Candeias de um...

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Filme dirigido por Ozualdo Candeias, iniciado com recursos do próprio diretor, é realizado por uma equipe que trabalha sem remuneração, e com o cineasta acumulando diversas funções, entre elas a de fotógrafo, montador e ator. De acordo com o produtor Virgilio Roveda, parte da película utilizada está vencida e é recolhida por ele e Candeias de uma produtora da Boca do Lixo. O conturbado processo de filmagem dura mais de dois anos, período no qual o cineasta ganha espaço na imprensa ao questionar as diretrizes estatais de fomento à produção cinematográfica. Após uma interrupção em junho de 1978, os trabalhos são finalizados com financiamento da extinta Empresa Brasileira de Filmes - (Embrafilme) e da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

Com Aopção, Candeias volta ao espaço urbano, depois de realizar uma série de longas-metragens com temática rural. A cidade, porém, é o ponto final de uma longa e degradante trajetória. No início do filme, é apresentado o trabalho feminino em canaviais, a exploração de trabalhadoras rurais por fazendeiros e as precárias condições de vida. Diante dessa situação miserável, algumas das moças vislumbram uma única opção: se aventurar pelas estradas rumo à cidade grande. Duas delas, sem nome ou identidade, oferecem-se a caminhoneiros em troca da viagem e alimentação, iniciando um caminho de prostituição que passa por postos de gasolina, borracharias e bordéis. Nas estradas, elas se misturam a dezenas de outras mulheres na mesma condição. Algumas ficam pelas estradas, outras chegam a São Paulo, cidade representada pela Boca do Lixo, com os seus prostíbulos, e onde vivem muitos deficientes físicos. Nesse ambiente, para as recém-chegadas, resta a prostituição. Com muita sorte, há a possibilidade de trabalhar em outras profissões, mas o pessimismo prevalece. Uma das moças morre, estuprada às margens do Rio Tietê.

Em Aopção, Candeias reitera a escolha de personagens que transitam à margem da sociedade e percorrem espaços abandonados e degradados. Do ponto de vista do estilo, as imagens em branco e preto, feitas com negativos vencidos, reforçam a precária situação retratada; além disso, os abruptos movimentos de câmera e o descompasso entre imagem e som desorientam o espectador. Aopção retoma também a representação do grotesco, presente num circo de beira de estrada, com seus palhaços e mulheres protagonistas de shows de luta livre, ou ainda nos deficientes físicos que permeiam as cenas na cidade.

Há no filme especial preocupação em documentar os tipos humanos, as fisionomias e os costumes dos boias-frias e demais habitantes das estradas. As mulheres acentuam presença rústica, com predomínio dos traços caboclos. Rubens Machado Jr. identifica nessas mulheres um naturalismo ao mesmo tempo banal e selvagem. "Imagina-se que configurem a anti-star, o contrário absoluto do modelo de beleza veiculado pela Rede Globo de Televisão, ou dos tipos femininos consagrados contemporaneamente pela indústria cultural."¹

De acordo com Ismail Xavier (1947)Aopção participa de um conjunto de filmes que representam a modernização industrial e econômica do Brasil a partir de suas fronteiras, como Iracema (1974), de Jorge Bodanzky e Perdida (1975),de Carlos Prates Correia , e se baseiam em grandes movimentos migratórios, envolvendo caminhões e prostitutas. Esses movimentos, por sua vez, espelham um processo irreversível de transformação da natureza e da cultura em mercadoria. No caso de Aopção, as mercadorias são as próprias mulheres, transportadas pelo país em cabines de caminhões. Seus corpos banhados com champanhe, lubrificados com graxas ou batidos com martelos de borracha pelos caminhoneiros de forma grotesca.

A dura trajetória das boias-frias, prostituídas entre o campo e a cidade, reflete um período de desenvolvimento industrial urbano e de aumento das desigualdades sociais. De acordo com o crítico João Luiz Vieira, a crueldade de um Brasil retratado pela prostituição (rural e urbana) está presente "na materialidade da representação, na qualidade da fotografia, na pobreza da quase total ausência de diálogos, na fragmentação da narrativa, construída por estilhaços de personagens que, anônimos, se entrecruzam em trajetórias marcadas por idas e vindas através de estradas brasileiras".³ Em alguns momentos a violência toma a forma de ruptura na narrativa, abrindo espaço para pesadelos que sintetizam os medos diante de um mundo degradante.

Na metade do filme, uma das trabalhadoras prostituídas vive uma experiência radical. Depois de passar por um bordel de beira de estrada, onde são realizados bacanais com a presença de um padre, ela volta a pedir carona. O esgotamento físico e mental abre espaço para delírios. Uma visão onírica a apresenta correndo ao longo de um acostamento de terra, próximo a um matagal, fugindo de duas prostitutas que a agarram e arrancam sua roupa. Ao fundo, de forma ofuscante, o clarão do céu mescla-se ao horizonte da estrada. O enquadramento dos corpos rolando pelo matagal, tomados levemente do alto, lembra uma cena de Zezero, dirigido por Candeias em 1974, em que uma prostituta é violentada por um operário num terreno baldio.

Depois de finalizado, o filme não entra em cartaz no circuito comercial, restringindo-se a mostras e festivais. Em fevereiro de 1980, é exibido na mostra Perspectivas do Cinema Brasileiro, realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Para o crítico Jairo Ferreira (1945-2003), Aopção é uma "repetição piorada" de tudo o que Candeias realiza antes, e aponta como  único momento de originalidade a cena em que um "motorista de caminhão, desses que costumam bater com o martelo para verificar se os pneus estão cheios, faz o mesmo com o traseiro de uma mulher de beira de estrada"4.

Aopção é exibido também no 34º Festival de Locarno (1981), Suíça, onde recebe o Prêmio Leopardo de Bronze. Alguns dos críticos presentes no evento elogiam-no, chamando atenção para a degradação humana e ao teor de denúncia social de suas imagens.5 Em São Paulo, no mês de outubro de 1981, o filme é projetado em sessão especial, no Cineclube Bexiga. No decorrer de 1983, participa de mostras como a Feira Cultural Brasileira, no Centro Cultural São Paulo, e da Retrospectiva Ozualdo Candeias, organizada pelo Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS/SP).

Um dos poucos críticos brasileiros a escrever sobre o filme na época de lançamento é Antônio Alves Cury. Ele chama atenção para a falta de escolha vivenciada pelos personagens, cujas ações são determinadas pelo meio em que vivem. Um "retrato vivo de seres do povo das classes mais pobres, que vivem numa sociedade fechada, marcada pela pobreza e pela miséria e que são captados por uma câmara insolente, vistos sem qualquer paternalismo [...]"6.

1 MACHADO JR., Rubens. Uma São Paulo de revestrés: sobre a cosmologia varziana de Candeias. Significação, n. 28. São Paulo: Ceppi, Annablume, CTR/ECA-USP, 2007. p.126.
2. XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: XAVIER, I.; BERNARDET, J.-C.; PEREIRA, M. O desafio do cinema: a política do estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 43.
3. VIEIRA, João Luiz. Horizonte perdido. Caderno de Crítica. Rio de Janeiro, n. 1, maio de 1986. p. 37-38.
4. FERREIRA, Jairo. O cinema nacional, longe da criatividade. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 de fevereiro de 1980. Ilustrada, p. 19.
5. AUTERA, Leonardo. Il Festival de Locarno salvato da um exodusformato famiglia mente um cineasta brasiliano trova Il coraggio della denuncia. Corriere della Sera, Milão, 6 de agosto de 1981.  Una prostituta sulle strade berasiliane: immagine della dergadazione humana. Corriere Del Ticino, Muzzano, 5 ago. 1981.
6. CURY, Antônio Alves. As rosas da estrada. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 40, ago.-out. 1982. p. 82.

Fontes de pesquisa 20

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  • ABREU, Nuno César. Boca do Lixo: cinema e classes populares. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2006.
  • AUTEPA, Leonardo. Il Festival de Locarno salvato da um exodusformato famiglia mente um cineasta brasiliano trova Il coraggio della denuncia. Corriere della Sera, Milão, 6 ago. 1981.
  • Almeida Neto, Américo R.; Tolentino, Célia. Mestre Candeias: o homem e seus filmes. Baleia na Rede - Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura. FFC/UNESP/Marília. Vol. 1, no.4, 2007, p.152-162. Disponível em: <http://www.marilia.unesp.br/index.php#3171,3171>. Acesso: 05 de julho de 2011.
  • BERNARDET, Jean-Claude. Reflexões. In: PUPPO, E.; ALBUQUERQUE, H. C. (Org.). O. R. Candeias. São Paulo: CCBB, 2002. p.33.
  • CURY, Antonio Alves. As Rosas da estrada. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 40, p. 82-3, ago./out., 1982.
  • Cineasta suspende filmagens. O Estado de S. Paulo, 4 abr. 1978.
  • EMBRAFILME. [Convite para exibição de Aopção no Cineclube Bexiga.] São Paulo, Out. 1981. Documentação da Cinemateca Brasileira - Pasta D. 605.
  • FASSONI, Orlando. Cineastas Brasileiros em Retrospectivas. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 22 nov. 1983. p.32.
  • FERREIRA, Jairo. Candeias, opção do cinema independente. Folha de S. Paulo. 13 jun. 1978. p.27.
  • FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986.
  • Feira Cultural Brasileira. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 2 mar. 1983. p.35.
  • Ferreira, Jairo. Candeias, o autêntico. Folha de S. Paulo. 24 jun. 1979.
  • Ferreira, Jairo. O Cinema Nacional, longe da criatividade. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 20 fev. 1980. p. 19.
  • MACHADO JR., Rubens. Uma São Paulo de revestrés: Sobre a cosmologia varziana de Candeias, Significação, nº28. São Paulo: CEPPI, Anablume, CTR/ECA-USP, 2007.
  • RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968-1973). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
  • REIS, Moura. Ozualdo Candeias Pedras e sonhos no Cineboca. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010.
  • Una prostituta sulle strade brasiliane: immagine della dergadazione humana. Corriere Del Ticino, Muzzano, 5 ago. 1981.
  • VIEIRA, João Luiz. Horizonte Perdido. Caderno de crítica, Rio de Janeiro, n. 1, maio de 1986. p.37-38.
  • XAVIER, I. O Cinema Marginal revisitado ou o avesso dos anos 80. In: CINEMA Marginal e suas fronteiras: filmes produzidos nas décadas de 60 e 70. Curadoria Eugênio Puppo, Vera Haddad. São Paulo, SP: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001.
  • XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: XAVIER, Ismail.; BERNARDET, Jean-Claude.; PEREIRA, Miguel. O Desafio do Cinema: a política do Estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p.08-46.

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