Tropicália ou Panis et Circences
Texto
Tropicália ou Panis et Circencis, lançado em 1968, é um trabalho coletivo que integra os artistas Caetano Veloso (1942), Gilberto Gil (1942), Gal Costa (1945), Tom Zé (1936), Torquato Neto (1944-1972), José Carlos Capinan (1941), a banda Os Mutantes, Nara Leão (1942-1989) e Rogério Duprat (1932-2006).
É um disco manifesto pensado em todos os níveis de produção: de composições e arranjos à arte da capa, passando pela mixagem. É um trabalho inspirado no álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), oitavo disco da banda inglesa The Beatles. Para o pesquisador Celso Favaretto, o álbum materializa o pensamento tropicalista, definindo a estética de uma nova linguagem musical.
A antropofagia do autor Oswald de Andrade (1890-1954) e o Manifesto da Poesia Pau-Brasil1, o cafona, o pop e a mudança do comportamento de consumo da época são temas tratados nas canções do disco.
A canção “Coração Materno”, de Vicente Celestino (1894-1968), conta a história de um jovem camponês que, para satisfazer os desejos da amada, arranca do peito o coração da mãe. A interpretação contida de Caetano Veloso contrasta com o enredo melodramático e o exagerado arranjo de cordas de Rogério Duprat.
Na regravação de “Três Caravelas”, de A. Algueró Jr. e G. Moreu, narra-se a descoberta da América pelo explorador italiano Cristóvão Colombo (1451-1506), conectando a produção musical brasileira com a América Latina. Segundo o músico Luiz Tatit (1951), a regravação dessa música e de “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia”, de João Antônio Wanderley (1879-1927), permite a releitura de artistas e obras do passado em contexto novo.
No disco, letra e arranjo misturam contextos históricos e estilos musicais. A canção “Geleia Geral”, registrada por Gilberto Gil, traduz essas fusões. A letra de Torquato Neto resume os aspectos da poética tropicalista. A expressão “geleia geral” é tomada de empréstimo de Décio Pignatari (1927-2012)2 para traduzir o signo dos trópicos (“bananas ao vento”, “calor girassol’) e a vida cotidiana brasileira.
“Bat Macumba”, de Gil e Caetano, mistura o tema da macumba com Batman, herói urbano de quadrinhos americanos. A letra “Bat macumba iê iê, bat macumba obá” é reduzida de uma sílaba a cada repetição, promovendo outro sentido. O resultado é sonoro e visual: a letra completa forma a letra K:
Bat macumba iê iê, bat macumba obá
Bat macumba iê iê, bat macumba obá
Bat macumba iê iê, bat macumba obá
Bat macumba iê iê, bat macumba o
Bat macumba iê iê, bat macumba
Bat macumba iê iê, bat macum
Bat macumba iê iê, bat ma
Bat macumba iê iê, bat
Bat macumba iê iê, ba
Bat macumba iê iê
Bat macumba iê
Bat macumba
Bat macum
Bat ma
Bat
Ba
Bat
Bat ma
Bat macum
Bat macumba
Bat macumba iê
Bat macumba iê iê
Bat macumba iê iê, ba
Bat macumba iê iê, bat
Bat macumba iê iê, bat ma
Bat macumba iê iê, bat macum
Bat macumba iê iê, bat macumba
Bat macumba iê iê, bat macumba o
Bat macumba iê iê, bat macumba obá
Bat macumba iê iê, bat macumba obá
Bat macumba iê iê, bat macumba obá
“Miserere Nóbis”, de Gil e Capinan, mistura tradição e modernidade, sagrado e profano. “Panis et Circenses”, de Gil e Caetano, trabalha com metáforas para expressar o desejo reprimido da transformação. Na letra, uma cena transgressora e absurda:
Mandei fazer
de puro aço luminoso punhal
Para matar o meu amor e matei
às cinco horas na avenida central
é abafada pela ordem cotidiana (“Mas as pessoas da sala de jantar / são ocupadas em nascer / e morrer”). O arranjo de Duprat utiliza experimentações sonoras.
No disco, passado e futuro são concomitantes e a contradição entre eles acaba por explicá-los. O mesmo procedimento acontece com os espaços. O rural junta-se ao urbano, que atende ao futuro na construção de um espaço contaminado pelos dois ambientes. Outra manifestação da oscilação de espaço acontece entre espaços aberto e fechado, como aponta Favaretto. Assim como "Panis et Circencis" quer que as pessoas saiam da sala de jantar para o espaço aberto público, "Lindonéia", um bolero misturado com iê-iê-iê, fala sobre a mulher comum que quer sair da ordem cotidiana. O baião "Mamãe Coragem", de Caetano e Torquato Neto, relaciona-se a essas duas canções. O tema é a ruptura com o espaço doméstico em busca do urbano e dos desejos individuais. “Mamãe, mamãe, não chore / A vida é assim mesmo / Eu fui embora”.
O contexto histórico também está presente no disco. A marchinha "Parque Industrial", de Tom Zé, critica o nacionalismo e o progresso propagandeado pelos militares no poder da época. “Despertai com orações / O avanço industrial / Vem trazer nossa redenção”. "Enquanto Seu Lobo Não Vem", de Caetano, transforma a história infantil de Chapeuzinho Vermelho em convite para a subversão política e sexual.
A canção “Baby”, de Caetano, versa sobre o consumismo estadunidense dos anos de 1960 que atinge o Brasil na década seguinte. Para Favaretto, ela introduz uma “nova sensibilidade” em uma juventude marcada pela expansão das comunicações e do consumo. Na letra, a imposição do consumo revela-se pela repetição de frase "você precisa": “saber da piscina”, “falar inglês”, “tomar um sorvete”, “saber de mim”, “aprender o que eu sei”. O pop é visto pelos tropicalistas como sinal de rejuvenescimento da cultura brasileira.
Tropicália ou Panis et Circensis expande o diálogo da canção com outras artes, como a poesia concreta e as artes plásticas, por meio de parcerias com músicos de vanguarda erudita e permite a diversidade de estilos e referências em uma mesma obra.
Notas:
1. "Manifesto da Poesia Pau-Brasil' é um artigo de Oswald de Andrade, publicado no jornal Correio da Manhã, em 1924. O autor defende a construção da identidade nacional a partir de aspectos étnicos, linguísticos, folclóricos e históricos. O texto se insurge contra o lusitanismo, o parnasianismo e o fetiche da erudição, e a favor da emancipação brasileira por meio da incorporação de elementos de nossa cultura.
2. A expressão "geleia geral" é usada por Décio Pignatari na revista Invenção, em 1963, e repetida em 1965, na mesma publicação: “Na geleia geral brasileira, alguém tem de exercer as funções de medula e osso".
Fontes de pesquisa 5
- FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 1976.
- GAÚNA, Regiane. Rogério Duprat: artesão e filósofo das sonoridades múltiplas. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2000.
- TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
- Tropicália ou Panis et Circencis. Rio de Janeiro: Philips, 1969. LP.
- VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. Companhia das Letras, 1997.
Como citar
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TROPICÁLIA ou Panis et Circences.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra71194/tropicalia-ou-panis-et-circences. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7