Nem Tudo é Verdade
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Nem Tudo É Verdade (1985), dirigido por Rogério Sganzerla (1946-2004), é uma produção independente. Junto com Tudo É Brasil (1997), A Linguagem de Orson Welles (1991) e Signo do Caos (2003), forma um grupo de filmes que pensa o Brasil a partir do diálogo com a obra do cineasta norte-americano Orson Welles (1915-1985). Nos trabalhos de Sganzerla, as referências a Welles estão presentes em O Bandido da Luz Vermelha (1968), bem como nos escritos sobre o cinema moderno1, publicados durante os anos 1960. Nos filmes realizados entre 1985-2003, tais referencias são exploradas com maior rigor e densidade. Sua principal inspiração é a passagem do diretor pelo Brasil, em 1942, para a realização de It´s All True [É Tudo Verdade]. Em tais obras, Welles é usado como metáfora de uma questão mais ampla: a construção da cultura nacional a partir do confronto com as influências estrangeiras.
Por meio de uma narrativa fragmentada, Nem Tudo É Verdade reconstitui a viagem de Orson Welles ao Brasil para filmar It´s All True. Trata-se de uma produção internacional, financiada pela produtora americana RKO, em apoio à política da boa vizinhança2 do presidente Franklin Roosevelt (1882-1945). Previa-se a realização de dois episódios brasileiros. O primeiro, um documentário sobre o Carnaval. O segundo, a encenação da viagem de um grupo de jangadeiros cearenses. Esses pescadores navegaram durante 61 dias pelo litoral brasileiro, entre o Ceará e o Rio de Janeiro, para reivindicar melhores condições de trabalho ao então presidente Getúlio Vargas (1882-1954). Welles inicia as filmagens nos morros cariocas. As primeiras imagens são enviadas aos Estados Unidos, mas não agradam à RKO, nem ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)3 do governo brasileiro. Os produtores americanos sentem-se incomodados pela população negra e a pobreza retratadas por Welles. Durante as filmagens de uma cena em alto mar, Jacaré, o líder dos jangadeiros, sofre um acidente e morre. O contrato de Welles é rescindido pela RKO e o cineasta volta aos Estados Unidos, deixando o projeto inacabado.
Em diálogo com outros filmes de Sganzerla, como O Bandido da Luz Vermelha e as produções da Belair, Nem Tudo É Verdade caracteriza-se pela descontinuidade. Sua narrativa é um grande quebra-cabeças, em que os tempos, os espaços e os personagens se reorganizam constantemente. Em muitos momentos há descompassos entre imagens e banda sonora. As formas de atuação variam, assim como as relações entre imagens e realidade filmada. Oscilando entre o documentário e a ficção, o longa recicla materiais de origens diversas tais como: reproduções de artigos de jornal americanos e brasileiros sobre Welles; fotografias do cineasta em solo brasileiro; fotografias do Rio de Janeiro e do litoral brasileiro coloridas e em branco e preto; imagens documentais de jangadeiros no mar; imagens do Cine Jornal Brasileiro do DIP, retratando eventos políticos da época e a presença do cineasta; o depoimento de Grande Otelo (1915-1993) sobre o contato com Orson Welles e a participação em It´s All True; citações de Cidadão Kane (1941); e imagens dos morros e blocos carnavalescos cariocas, em diferentes períodos históricos. Na trilha sonora, há uma voz off que ora comenta as ações do protagonista, ora simula sua própria voz, sempre de forma debochada.
A reconstituição da viagem de Welles, feita a partir de um universo fragmentado e descontínuo, dialoga também com o tom cômico da chanchada. A presença de Grande Otelo, o clima musical, o humor carregado de ironia, bem como a paródia são traços que remetem aos musicais da Cinédia e da Atlântida. Em Nem Tudo É Verdade, Welles passa por uma transformação típica do Carnaval: deixa de ser americano na tentativa de tornar-se brasileiro. Deslumbra-se pelo país: o samba, o candomblé, as mulatas e a cachaça. É interpretado por Arrigo Barnabé (1951) como um pateta desengonçado, que se comunica através de um misto de espanhol, inglês e português. Vive em orgias, embriagando-se com a caipirinha e o melhor uísque falsificado do mundo. Sua transformação, entretanto, não se completa. O cineasta continua sendo um outsider. Como indicado por Samuel Paiva4, a figura de Welles assume diferentes formas e contornos no filme. Assim como em O Bandido da Luz Vermelha, o protagonista não possui uma identidade definida.
A variedade de materiais visuais, associada à fragmentação narrativa, reafirma a falta de contornos de Welles. O tipo de registro varia entre a reconstituição histórica e a encenação. Ainda no início do filme, depois da chegada ao Rio de Janeiro, o cineasta é homenageado por políticos e pelos meios de comunicação. Em entrevista concedida no Copacabana Palace, Welles comenta o seu fascínio pela cultura brasileira, a realização de Cidadão Kane e sua proposta revolucionária de cinema. O protagonista interpretado por Arrigo Barnabé é desengonçado. O tom geral é de deboche. A dublagem das vozes de Welles e dos repórteres é carregada de ironia. O cineasta conta piadas sem graça, diz que os homens são inúteis e anuncia as quatro paixões de sua vida: cigarros, mulheres, bebidas e cinema. Um fundo musical radiofônico apresenta trechos de sambas. No início da sequência, o espectador é remetido ao contexto histórico dos anos 1940. Algumas imagens em branco e preto apresentam o próprio Welles no Brasil: fotos do cineasta com a câmera na mão em meio à multidão; alguns planos do cineasta durante as filmagens de It´s All True no Rio de Janeiro. Representada de maneiras diferentes, a presença de Welles se multiplica.
Ao retomar de forma irônica um fato ocorrido em 1942, Nem Tudo É Verdade realiza uma paródia. Esse exercício, porém, não se limita à figura de Orson Welles. As imagens do cineasta americano com a câmera na mão, associadas às suas opiniões sobre o cinema, remetem-se ao próprio ato de filmar. Nem Tudo É Verdade é um filme sobre a realização de um filme. Trata-se de uma obra que, a partir da referência ao fracasso de Welles, questiona a dificuldade de se fazer cinema no Brasil. A dependência em relação a modelos econômicos e cinematográficos estrangeiros, ao lado da censura, impedem que o cinema brasileiro adquira uma cara própria. A resposta de Sganzerla é essa: um cinema e um personagem em busca de identidade.
Sete anos separam o início das filmagens de Nem Tudo É Verdade de sua finalização. Depois deste longo e conturbado percurso, o filme é exibido em festivais no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos e na Austrália. Recebe prêmios no 2º Festival de Caxambú (melhor filme e melhor cenografia), no 15º Festival de Gramado (melhor montagem e melhor música adaptada) e no 2º Fest-Rio (Prêmio Abraci de melhor direção).
Guiando-se pela criatividade da linguagem de Sganzerla e pela importância da figura de Welles, a crítica cinematográfica recebe o filme com elogios. Durante o encerramento das filmagens, Inácio Araújo (1948) chama atenção ao diálogo entre Sganzerla e Welles. De acordo com o crítico, o estilo e a produção do filme inspiram-se em It´s All True. Para além do trabalho nas ruas, de forma improvisada,
(o filme) pretende ser um resgate desse trabalho e também um ponto de vista brasileiro – paródico, modesto na produção – sobre o filme de Welles. Para isso, Sganzerla seguiu o mesmo método do americano, filmando ora em cores, ora em branco e preto, às vezes com som direto, outras fazendo homenagens ao cinema mudo”.5
Araújo também enfatiza o tom de protesto de Nem Tudo É Verdade. O fracasso do filme de Welles, boicotado e inacabado, simboliza a precariedade do próprio cinema brasileiro.
Durante a estreia no Rio de Janeiro, Hermes Filho Leal (1959) indica a mistura entre ficção e documentário no longa. Segundo ele, “se o filme é generoso, ele está sempre em constante mutação. É um processo dialético de construção, e isso faz com que admita qualquer tipo de atalhos, a utilização de qualquer tipo de material [...] ele pode se transformar, passando do preto e branco ao colorido, propondo as mil formas de um filme sujeito à procura da verdade [...]”.6
Mesclando crítica com humor, Sganzerla questiona as influências estrangeiras na produção artística e na política brasileira em detrimento da construção de uma identidade nacional e como a contradição entre essas relações permeiam as posições políticas do momento da produção da obra.
Notas:
1. SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Apresentação Paulo Sacramento. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.
2. Durante a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos aproximaram-se do Brasil por ser um lugar estratégico (mantiveram uma base no Rio Grande do Norte) para combater os países do Eixo.
3. Durante o Estado Novo, o DIP era usado por Vargas para propagandear seu governo ao mesmo tempo em que era uma ferramenta de censura às artes e à imprensa.
4. PAIVA, Samuel. “A representação da realidade em filmes de Rogério Sganzerla : construindo a história a partir de Orson Welles e de cinejornais.” In: CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos, SALIBA, Elias Thomé. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007. p. 135-148.
5. ARAÚJO, Inácio. Pronto filme sobre Welles. Folha de S.Paulo. 6 abr. 1985.
6. LEAL, Hermes Filho. Citado por CUNHA, Wilson. Entre a ficção e a realidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 jan. 1987. p. 41.
Fontes de pesquisa 9
- ARAÚJO, Inácio. Pronto filme sobre Welles. Folha de S.Paulo. 6 abr. 1985.
- CUNHA, Wilson. Entre a ficção e a realidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 jan. 1987, p. 41.
- PAIVA, Samuel. Nem tudo é Brasil na crítica de Sganzerla. Sinopse, v. 4, n. 8, abr. 2002, p. 60-2.
- SENNA, Orlando. Tourada panamericana. Filme Cultura, n. 45, mar. 1985, p. 60-69.
- SGANZERLA, Rogério. José Sanz: a verdade que antecedeu e sucedeu Nem Tudo é Verdade ou uma ficção que se transforma em realidade. Cine Imaginário, ano 3, n. 28, mar. 1988, p.10-11.
- SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Apresentação Paulo Sacramento. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.
- XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
- _____. A figura de Orson Welles em filmes brasileiros. In CATANI, Afranio M.; FABRIS, Maria R.; GARCIA, Wilton (org.). Estudos Socine de Cinema: ano IV. São Paulo: Nojosa Edições, 2005, p. 259-266.
- _____. A representação da realidade em filmes de Rogério Sganzerla: construindo a história a partir de Orson Welles e de cinejornais. In: CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos, SALIBA, Elias Thomé. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007, p. 135-148.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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NEM Tudo é Verdade.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra71182/nem-tudo-e-verdade. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7