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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

O Bandido da Luz Vermelha

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 04.04.2024
1967
O Bandido da Luz Vermelha, primeiro longa-metragem de Rogério Sganzerla (1946-2004), produzido pela Distribuidora de Filmes Urânio, é uma versão paródica da história do marginal perseguido que termina morto pela polícia. Inspira-se em um caso verídico que se torna fenômeno de imprensa. Trata dos vários assaltos cometidos por João Acácio Pereira ...

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O Bandido da Luz Vermelha, primeiro longa-metragem de Rogério Sganzerla (1946-2004), produzido pela Distribuidora de Filmes Urânio, é uma versão paródica da história do marginal perseguido que termina morto pela polícia. Inspira-se em um caso verídico que se torna fenômeno de imprensa. Trata dos vários assaltos cometidos por João Acácio Pereira da Costa1, cuja prisão é feita em agosto de 1967, depois de grande empenho por parte da polícia.

O filme acompanha a trajetória de um anti-herói, Jorginho [Paulo Villaça (1933-1992)], cujos assaltos e fugas são encenados de maneira entrecortada por uma montagem que destaca os lances excêntricos do embate entre ele e a polícia. As cenas de ação ou de repouso do anti-herói são pontuadas por comentários sensacionalistas que locutores de uma rádio local fazem a respeito do bandido e do delegado Cabeção [Luiz Linhares (1926-1995)] e seu auxiliar Tarzã [José Marinho], tratados como antagonistas de um drama que parece tomar conta da cidade. Os locutores comentam sua origem, seus atos, suas mulheres e suas andanças erráticas, compondo a imagem do bandido célebre. Essa imagem se multiplica e se esfacela, um mito construído de clichês, em franco contraste com a figura de Jorginho no quarto precário de um edifício de paredes carcomidas, em plena Boca do Lixo. Camaleônico, ele exibe seu mau gosto na constante troca de roupa, recompõe seu figurino, se examina diante do espelho, sempre em busca do personagem que não chega a ser.

A trilha sonora alterna os comentários do rádio com a fala do próprio Jorginho, que ressalta seu fracasso e reitera um discurso autodepreciativo ("quando a gente não pode nada, a gente se avacalha e se esculhamba"). O senso de impotência e a composição do anti-herói destinado ao fracasso fazem parte do gênero que o filme parodia e, ao mesmo tempo, não deixam de se referir ao momento político do Brasil, evocado de forma sempre deslocada e na chave do humor negro.

O gênero policial é o ponto de partida para uma colagem de distintas referências, que envolve elementos do cinema, do rádio, da imprensa, da televisão e das histórias em quadrinhos. A paisagem noturna, o asfalto brilhante e seus reflexos, os carros que freiam abruptamente são clichês do filme policial que se misturam com números de dança em boates precárias, fachadas de cinema da Boca do Lixo, excursões em carro conversível pela Baixada Santista ao lado de Janete Jane [Helena Ignez (1939)], a namorada vamp que cumpre o roteiro de traição da femme fatale, completando a galeria de tipos extraídos do film noir. Entre as várias referências, O Bandido homenageia Jean-Luc Godard, ao fazer do suicídio de Jorginho uma evocação do suicídio de Pierrot, o protagonista de O Demônio das Onze Horas (1965), e dialoga do começo ao fim com o cinema de Orson Welles, em tônica também de homenagem, e com o cinema novo, na tônica da provocação [o cangaceiro em plena rua do centro da cidade e a citação dos cantos afro-brasileiros que pontuam cenas-chave de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha (1939-1981)].

Na multiplicidade de linguagens, gêneros e citações, o filme compõe a colagem que define sua inserção no momento tropicalista de 1968, combinando referências literárias, como Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues, com o imaginário da crônica policial do rádio e variados lances da comédia musical. É um ponto de inflexão no percurso do cinema brasileiro na segunda metade dos anos 1960, com a recuperação da chanchada e sua resposta irônica ao tom grave do cinema novo.

Tal como acontece em Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, há uma identidade em pedaços, um personagem construído pelo discurso dos outros, que convida à decifração. A primeira fala - "Quem sou eu?" - traz a interrogação que o filme mantém até o fim. Na abertura, o letreiro luminoso de um edifício já coloca a polaridade: um "gênio" ou uma "besta"?

A fragmentação da personalidade espelha a da linguagem do filme e se projeta sobre a imagem da cidade. As vozes do rádio definem o gênero do filme: "Um faroeste do Terceiro Mundo". E a ideia de um terceiro mundo inserido num sistema de opressão neocolonial, presente no cinema novo, é retomada numa chave diferente, em consonância com a autoironia e o deslocamento da fala profética: "O terceiro mundo vai explodir. Quem estiver de sapato não sobra". Apresentando a experiência de um personagem periférico em um mundo periférico, o filme toma a Boca do Lixo como lugar alegórico de um terceiro mundo à deriva2. A própria geografia de referência do bandido se estilhaça: Egito, Paraguai, Araraquara, América do Norte, Cuiabá, Lima etc. E a Boca do Lixo, seu espaço por excelência, tem os limites alargados, incluindo outros pontos da cidade. Como observa Jean-Claude Bernardet (1936)3, é possível identificar uma diferença essencial entre a Boca do Lixo da São Paulo real e aquela do filme, pois a Boca representada não tem fronteiras. Com a fusão de espaços e designações, a Boca passa a abranger São Paulo, o Brasil e a América Latina.

Um travelling ascendente e as falas que o acompanham sintetizam esse espraiamento. No início, a câmera dentro de um elevador, em uma obra ao lado da Igreja da Consolação, enquadra a Praça Roosevelt repleta de entulho. Na continuação do movimento, por trás das madeiras de sustentação do elevador, a torre da igreja, literalmente, paira sobre o lixo. As vozes dos locutores descrevem o espaço como "o império [...] da prostituição em massa [...], do tráfico de menores [...], um bairro criminal cheio de fome e culpa, a Boca do Lixo". Sobrepondo-se ao fim dessas falas, o berro de um anão, afirmando que o Terceiro Mundo vai explodir, é retomado bruscamente. Assim, a Praça Roosevelt se projeta, não apenas na Boca, mas em todo um espaço imaginário identificado com o Terceiro Mundo. O bandido compõe um novo olhar sobre a cidade de São Paulo como ponto de convergência dos traços típicos do subdesenvolvimento e lugar da diversidade selada por migrações de variadas origens - uma experiência caótica da modernização4.

Exibido em grandes cinemas lançadores, obtém boa resposta de público, dado o seu diálogo bem-humorado com gêneros como o policial e a chanchada. Nesse sentido, marca sua diferença em relação aos filmes do cinema marginal, que, posteriormente, tornam mais agressiva a ruptura com as regras do cinema narrativo clássico. Nas entrevistas por ocasião do lançamento, Sganzerla reitera suas provocações, prega a estética do mau gosto e reafirma o ataque ao cinema novo. O filme recebe diversos prêmios, entre eles o de melhor filme no Festival de Brasília de 1968.

O crítico Jairo Ferreira identifica no filme o "metacinema" e comenta sua linguagem: "A linearidade é mantida, mas na locução; as imagens são de um ritmo interno admirável; toda a linguagem do filme tem uma estrutura interna terrível, bem concatenada, antilinear por essência"5.

Em texto de 2001, João Luiz Vieira afirma que o filme de Sganzerla organiza "uma espécie de colagem de materiais achados, promovendo a noção de que o Terceiro Mundo só herda as migalhas do Primeiro". Segundo ele, "O Bandido explora uma estratégia de conflito de gêneros, comum ao cinema marginal. O noir, o musical, o documentário, o faroeste, a chanchada e a ficção científica surgem numa compilação de pastiches, espécie de escritura cinematográfica entre parênteses"6.

Notas

1 O Bandido da Luz Vermelha do título é na vida real o apelido do assaltante. Esse apelido decorre do uso de uma lanterna no momento em que invade as casas. Ele ganha muita notoriedade na época, dada a repercussão de seus crimes na imprensa.

2 Para uma interpretação do filme como alegoria nacional e da Boca do Lixo como "lugar alegórico" do subdesenvolvimento, ver XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.

3 BERNARDET, Jean-Claude. O voo dos anjos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991. p.163.

4 Para mais detalhes sobre a representação da cidade de São Paulo no cinema marginal ver MACHADO JÚNIOR, Rubens. São Paulo vista pelo cinema. São Paulo: Idart, 1992.

5 FERREIRA, Jairo. Rogério, o bandido. São Paulo Shimbun, 12 dez. 1968.

6 VIEIRA, João Luiz. Lixo, marginais e chanchada. In: PUPPO, E.; HADDAD, V. (orgs.). Cinema marginal e suas fronteiras. São Paulo: CCBB, 2001. p. 98.

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O Bandido da Luz Vermelha
Direção: Rogério Sganzerla Conteúdo licenciado para uso exclusivo na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras

Fontes de pesquisa 9

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  • BERNARDET, Jean-Claude. O vôo dos anjos. São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • BERNARDET, Jean-Claude. Os Jovens Paulistas. In. XAVIER, Ismail.; BERNARDET, Jean-Claude.; PEREIRA, Miguel. O desafio do cinema: a política do Estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
  • FERREIRA, Jairo. Candeias. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
  • FERREIRA, Jairo. Rogério, o bandido. São Paulo Shimbun, 12 dez. 1968.
  • MACHADO JÚNIOR, Rubens. São Paulo vista pelo cinema. São Paulo: Idart, 1992.
  • RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968-1973). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
  • VIEIRA, João Luiz. Lixo, Marginais e chanchada. In: CINEMA Marginal e suas fronteiras: filmes produzidos nas décadas de 60 e 70. Curadoria Eugênio Puppo, Vera Haddad. São Paulo, SP: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001.
  • XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
  • XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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