Sol sobre a Lama
Texto
Sol sobre a Lama (1963), de Alex Viany (1918-1992), tem o mesmo pano de fundo de A Grande Feira (1961), de Roberto Pires (1934-2001). Uma comunidade pobre de Salvador organiza resistência contra a destruição da Feira Água de Meninos, lugar de vida e trabalho daquela população, formada por feirantes, pescadores, malandros, prostitutas, bicheiros e crianças.
Diante do fechamento do cais, a comunidade é forçada a optar por dois caminhos. Para Vadu (Roberto Ferreira), antigo dono de um armazém, a única forma eficaz de deter a destruição da região é sabotar a draga. Valente [Geraldo del Rey (1930-1993)], outro líder da comunidade, propõe o diálogo com políticos locais e manifestação na imprensa. A proposta de Vadu vence, mas a traição de Babau [Carlos Petrovich (1936-2005)] frustra o plano: a denúncia previne a polícia para proteger a embarcação e dispersar os revoltados. Valente também não tem êxito com os políticos, mas matérias na imprensa - pagas com dinheiro arrecadado na comunidade - conseguem conter momentaneamente a destruição promovida pela draga. O progressista Valente afirma a síntese entre suas ideias e as de Vadu, o que resulta na conscientização geral para enfrentar o futuro de injustiças sociais.
O projeto de Viany é nítido: extrai de um problema real - o aterramento da angra de Água de Meninos - assunto de seu drama - a organização popular. Cineasta e militante do Partido Comunista, o diretor defende a organização das classes populares e denuncia a opressão capitalista. A concepção unívoca de classes populares, marcadas apenas pela violência é desfeita com a pluralidade dos personagens retratados no filme. Teresinha [Dilma Cunha (1941)] é a menina prostituída; Moreno [Othon Bastos (1933)] é o caminhoneiro mulherengo; Pureza [Glauce Rocha (1930-1971)] é a militante apaixonada por seu líder; Costeleta [Milton Gaúcho (1916-2005)] é o bicheiro sem escrúpulos e Bom Rojão [Antônio Pitanga (1939)] é o malandro boa-praça.
Nas sequências iniciais, o filme destaca a opção realista e a recusa de representação simplificadora. Um narrador descreve o tema do filme, enquanto são exibidos aspectos da vida em Água dos Meninos. Um plano geral mostra a feira e seus barracos. Um homem colhe cocos, uma canoa aporta, outro homem distribui gaiolas a crianças e um terceiro faz sinalização para pescadores em canoa. A fumaça negra de uma embarcação irrompe na tela, em contraste com as imagens telúricas anteriores. A vela de um saveiro é recolhida. Pescadores observam o horizonte, enquanto a chaminé cospe fumaça. Outra vela é içada e inicia-se uma conversa entre os homens do mar. Um jato de água suja sai do cano da draga e Mestre Manoel (Lídio Silva) anuncia mudanças. Um corte brusco leva ao interior da favela de Água de Meninos, onde uma mulher é perseguida e esfaqueada, enquanto uma canção francesa e romântica contrasta com a violência da cena. O volume da canção aumenta até o som ser distorcido, e a imagem transfigura-se em negativo.
A sequência apresenta dois registros de representação da realidade: por um lado, as imagens dos saveiristas contrasta de maneira abrupta com a draga que representa o progresso, referência ao cinema soviético e à montagem dialética proposta pelo cineasta russo Sergey Eisenstein (1898-1948)1. Por outro lado, a decupagem do assassinato segue os princípios do cinema comercial, com continuidade espacial e montagem alternada. Mais diversificada, a primeira sequência alude ao confronto entre comunidade e sociedade, atraso e progresso, religião e racionalidade.
Sol sobre a Lama explora questões objetivas e discute a condição socioeconômica da população carente. A recusa do cinema comercial é enfática, mas a proposta realista do filme reduz alguns aspectos formais da narrativa: a representação das classes abastadas, por exemplo, redunda em lugares-comuns, como o rico corrupto e a madame frívola. Um exemplo da concepção política que ampara o filme é Mestre Manoel, líder dos saveiristas. Conselheiro dos homens do mar, ele lança o grito contra a crueldade do progresso: “Vai haver castigo. Só minha mãe, a rainha das água [sic], pode fechar os caminhos do mar”. Ele também entrega ao mar o destino do traidor Babau. Esse líder, no entanto, não possui um projeto emancipador: cabe a ele apenas a profecia a ser cumprida por outrem. A religiosidade popular não se configura como alienação, mas também não fornece elementos para a ação coletiva renovadora. A narração prioriza o discurso da comunidade em aglutinação política e trata com simpatia aspectos indiretos à transformação.
Antes de ser exibido comercialmente, a edição do filme provoca desentendimento entre diretor e produtor: João Palma Neto submete a película à remontagem e Viany ameaça retirar seu nome dos créditos. A disputa torna-se pública2. A crítica intervém no debate: Benedito Junqueira Duarte (1910-1995), de O Estado de S. Paulo, acusa Alex Viany de “aventureiro” e “falso cineasta”. O carioca Henrique Pongetti (1898-1979), de O Globo, considera que, apesar da remontagem, o filme possui qualidades. Para superar a disputa, o crítico baiano Walter da Silveira (1915-1970) analisa o filme em três artigos para o Jornal de Notícias: descreve os percalços da produção, reconhece a cultura cinematográfica de Viany, mas conclui que o filme não alcança profundidade3. Em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber Rocha (1939-1981) destaca a contribuição do filme para o adensamento do realismo que antecede o cinema novo. Jean-Claude Bernardet (1936) destaca o idealismo do enredo, que individualiza ações sem tratar em profundidade suas motivações. Porém, aponta o filme como caso exemplar do pensamento social mistificador do povo e de sua capacidade de emancipação.
Depois de Sol sobre a Lama, Alex Viany retoma a carreira de crítico e historiador de cinema e só volta a filmar em 1978, quando realiza A Noiva da Cidade, antigo argumento de Humberto Mauro (1897-1983).
Notas
1. Muitos críticos indicam as influências de Alex Viany apresentadas no filme, do neorrealismo ao cinema soviético, passando pelo cinema japonês, especialmente O Túmulo de Sol (1960), do diretor japonês Nagisa Oshima (1932-2013).
2. Uma liminar judicial encerra a questão: Viany sai vitorioso e sua montagem é reconhecida como original e imutável. O filme exibido comercialmente, entretanto, mantém a remontagem realizada pelo produtor.
3. SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa. Jornal de Notícias, Salvador, 2 abr. 1963.
Fontes de pesquisa 12
- ALBERTO, Luiz. Farsa e filme. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 5 dez. 1964.
- BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
- BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Alex Viany renega totalmente filme. Última Hora, Rio de Janeiro, 11 set. 1964.
- DUARTE, Benedito Junqueira. Muita lama e pouco sol. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 jan. 1965.
- PALMA NETO, João. Sem o capricho de Alex Viany. [documento sem referência, depositado na Cinemateca Brasileira (P.196/41)].
- PONGETTI, Henrique. Sol sobre a lama. O Globo, Rio de Janeiro, 14 dez. 1964.
- ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
- SENNA, Orlando. Sol sobre a lama. Jornal da Bahia, Salvador, 2 nov. 1963.
- SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa (Fim). Jornal de Notícias, Salvador, 17 nov. 1963.
- SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa (I). Jornal de Notícias, Salvador, 2 abr. 1963.
- SILVEIRA, Walter da. Sol sobre a lama: acusação e defesa (II). Jornal de Notícias, Salvador, 10 nov. 1963.
- VIANY, Alex. Sol sobre a lama: esclarecimentos de Alex Viany. [documento depositado no acervo do crítico. Disponível em: < http://www.alexviany.com.br >.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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SOL sobre a Lama.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra70163/sol-sobre-a-lama. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7