Falso Brilhante
Texto
Análise
Falso Brilhante é um álbum de estúdio da cantora Elis Regina (1945-1982), lançado pela Philips em 1976. O disco tem o repertório baseado no espetáculo homônimo, em cartaz no Teatro Bandeirantes de dezembro de 1975 a fevereiro de 1977 em São Paulo. O show tem 257 apresentações e público de 280 mil pessoas. Criado coletivamente pela equipe, com direção cênica de Myriam Muniz (1931-2004) e musical de Cesar Camargo Mariano (1943), traz uma retrospectiva da carreira da cantora, com elementos teatrais e um repertório de 42 músicas, dividido em duas partes. O cenário circense das apresentações é evocado pela arte gráfica do disco, cujo interior traz imagens dos músicos caracterizados em seus personagens. O título, extraído do bolero “Dois pra lá, dois pra cá” [João Bosco (1946) e Aldir Blanc (1946)], lançado por Elis em 1974, é ressignificado como uma metáfora da vida de artista, em que o suposto brilho ofusca os dissabores.
Seguindo a multiplicidade do espetáculo, as dez faixas que compõem o LP abrangem diversos gêneros, com canções inéditas no repertório de Elis. Uma delas é a valsa “Fascinação”, composta pelo italiano Dante Pilade Marchetti (1876-1940) com letra do francês Maurice de Féraudy (1859-1932), em 1905. A canção é popularizada nos anos 1940, traduzida por Armando Louzada e interpretada pelo cantor Carlos Galhardo (1913-1985). Nos arranjos de Cesar Camargo Mariano, recebe modulações nas trocas de acorde e o teclado imita cordas. À exceção dessa e da última faixa do disco, “Tatuagem” [Chico Buarque (1944) e Ruy Guerra (1931)], a seleção musical privilegia canções de teor político e contestatório. A última, apesar de seu conteúdo romântico, provém da peça teatral Calabar: o Elogio da Traição, censurada até o início dos anos 1980 por criticar a ditadura militar vigente.
Gravado em apenas dois dias entre as folgas do espetáculo, Falso Brilhante, à época, é tido como inferior aos três trabalhos anteriores da cantora em termos técnicos e de arranjos. No entanto, recebe elogios pelo resgate da emoção e pelo engajamento1. O disco traz um diálogo arrojado de Elis com o rock, sendo comparado ao da cantora norte-americana Janis Joplin (1943-1970), ainda que pejorativamente2.
Tal apreciação deve-se às duas primeiras faixas, a balada “Como os Nossos Pais” e o rock “Velha Roupa Colorida”, ambas da autoria de Belchior (1946). A última, com andamento em blues e vocal rasgado, é gravada em duas tentativas e exige uma extensão vocal acima da região alcançada pela mezzo-soprano Elis. Somada às rotinas de espetáculos, resulta na voz rouca registrada na gravação. A interpretação agressiva, no entanto, dá o contorno requisitado pelas letras das canções, que denunciam o cerceamento da liberdade com o Ato Institucional n. 5 (AI-5) e a acomodação da sociedade frente a esse quadro. A versão de Elis impulsiona a carreira de Belchior, procurado no mesmo ano pela Philips para gravar o disco Alucinação (1976), que, assim como Falso Brilhante, é produzido por Mazzola (1950).
Outro compositor lançado por Elis é Thomas Roth (1951), autor de “Quero”. Retomando o tema de “Casa no Campo” [Zé Rodrix (1947-2009) e Tavito (1948)], gravada por Elis em 1972, a música manifesta o ideal de uma vida bucólica, recebendo interpretação suave, sem ornamentos, que contrasta com a dramaticidade de outras faixas. Em “Los Hermanos” [Atahualpa Yupanqui (1908-1992)], Elis opta por uma interpretação impostada, com ornamentos de vibrato, terminando triunfalmente com a palavra libertad, o que confere à canção a estrutura de um flamenco. Outra representante da nueva canción latino-americana no disco, “Gracias a la vida”, saúda os que a apoiam em sua trajetória e homenageia a compositora chilena Violeta Parra (1917-1967), autora da canção. Por causa desta faixa, o disco é proibido na Argentina durante a ditadura militar e a cantora recusa convites para apresentar-se no país no período.
Completam o disco três parcerias de Aldir Blanc e João Bosco, “Um Por Todos”, “Jardins de Infância” e “O Cavaleiro e os Moinhos”. A primeira decompõe-se em três momentos e tem a segunda parte transformada em samba, “meio velório, meio farra”. “Jardins de Infância” é mais enfática com relação à cegueira social frente à ditadura: “Você vive o faz de conta, / Diz que é de mentira, brinca até cair”. “O Cavaleiro e os Moinhos” remete ao anti-herói Dom Quixote e inicia defendendo: “Acreditar na existência dourada do sol / Mesmo que em plena boca / Nos bata o açoite contínuo da noite”. A intensidade da voz assume um crescendo, desfechando num brado na palavra “vento”. O segundo movimento da música, acelerado, tem aspecto jocoso, confirmado pela letra - “Eu, baderneiro, me tornei cavaleiro / Malandramente (...)” - até atingir o ápice em “Já não há mais moinhos como os de antigamente”.
Falso Brilhante representa uma síntese da obra de Elis Regina, mesclando padrões performáticos anteriores e posteriores à bossa nova, consolidando suas características como intérprete. Com esse trabalho, a cantora concilia popularidade com reconhecimento por parte da crítica especializada. O disco é exemplar do paradoxo entre mercado e engajamento, ocorrido no cenário musical brasileiro nos anos 1970. Se, por um lado, a politização implica dilemas para os artistas, por outro, é exigida pela audiência de classe média, consagrando a expressão MPB como uma tendência musical eclética.
Em 2007, é lançado o DVD Falso Brilhante, pela EMI Music, produzido por Roberto de Oliveira, com uma síntese do espetáculo. Inclui “O Guarani” e clássicos do repertório internacional (“Singin’ in The Rain”, “La Puerta”, “Nel Blu Dipintu di Blu”, “Hymne À L'Amour”) e mais “Aquarela do Brasil”, “Diz que Tem” e “Canta Brasil”. O DVD tem também imagens de outras apresentações de Elis e duetos com Tom Jobim (1927-1994), Milton Nascimento (1942) e Fátima Guedes (1958).
Faixas
1. “Como Nossos Pais” (Belchior)
2. “Velha Roupa Colorida” (Belchior)
3. “Los Hermanos” (Atahualpa Yupanqui)
4. “Um por Todos” (João Bosco/Aldir Blanc)
5. “Fascinação” (Fascination) (F. D. Marchetti/Maurice de Féraudy/Versão: Armando Louzada)
6. “Jardins de Infância” (João Bosco/Aldir Blanc)
7. “Quero” (Thomas Roth)
8. “Gracias a la Vida” (Violeta Parra)
9. “O Cavaleiro e os Moinhos” (João Bosco/Aldir Blanc)
10. “Tatuagem” (Chico Buarque/Ruy Guerra)
Notas
1 A principal crítica nesse sentido é feita pelo jornalista Maurício Kubrusly no artigo “Elis num Brilho que Ofusca a Perfeição”, em 23 fev. 1976. Disponível em: < http://www.elisregina.com.br/Por-Elis/Albuns >. Acesso em 19 set. 2016.
2 Oswaldo Mendes é o autor dessa segunda crítica, intitulada “Abaixo os falsos brilhantes de Elis Regina”. Disponível em: < http://www.elisregina.com.br/Por-Elis/Albuns >. Acesso em 19 set. 2016.
Fontes de pesquisa 4
- ELIS Regina. Site Oficial da Artista. Disponível em: http://www.elisregina.com.br/.
- FARIA, Arthur de. Elis: uma biografia musical. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2015.
- LUNARDI, Rafaela. Em busca do “Falso Brilhante”. Performance e projeto autoral na trajetória de Elis Regina (Brasil, 1965-1976). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
- MARIA, Julio. Elis Regina: nada será como antes. São Paulo: Master Books, 2015.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
FALSO Brilhante.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra70098/falso-brilhante. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7