Com que roupa?
Texto
A canção Com que roupa? é a segunda gravação de Noel Rosa (1910-1937), realizada em 1930 na Parlophon, com interpretação do próprio compositor. A letra bem humorada e mordaz, associada à melodia e ritmo alegres, fazem dela sucesso popular. As paródias, charges, crônicas e propagandas comerciais que ela inspira revelam, sua popularidade. Além disso, consagra o bordão popular “com que roupa” na linguagem cotidiana.
As biografias sobre Noel apresentam pequena discussão a respeito dos objetivos e inspiração do compositor na formulação da letra. Isso ocorre também como fruto das versões conflitantes dadas pelo próprio compositor. O debate inclui as motivações pessoais do autor (falta de dinheiro, convite inesperado para uma festa) e as críticas sociais do período. Com relação ao último aspecto, Noel confessa que a canção é uma metáfora de “um Brasil de tanga, pobre e maltrapilho’’. Seja como for, o impacto da canção é grande porque ela se aproxima com bom humor de questões relativas à vida cotidiana, criando empatia com a população carioca:
Seu português agora foi-se embora,
Já deu o fora e levou seu capital.
Esqueceu que tanto amava outrora,
Foi no Adamastor pra Portugal,
Pra se casar com uma cachopa,
E agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu
Meu paletó virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
A música da canção também gera controvérsia na literatura sobre Noel Rosa. De acordo com ela, a melodia do primeiro verso (“Agora eu vou mudar minha conduta”) seria semelhante à do Hino Nacional (“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”). Essa semelhança é percebida pelo maestro Homero Dornelas (1901-1990) que altera um pouco os intervalos melódicos e coloca-a no pentagrama. Mesmo assim, o trecho introdutório continua parecidoco o Hino. O elemento que estabelece a diferença entre as duas melodias é a acentuação rítmica: o padrão marcial do hino frente ao tempo recortado da síncopas do samba. A discussão é, novamente, sobre as motivações do compositor: se a semelhança surge inconscientemente, uma vez que paródias ao Hino Nacional são comuns à época, ou se a citação é proposital. Quando se associa este segundo aspecto à letra satírica e à indicação de que ela trata do “Brasil de tanga”, configura-se uma vontade manifesta de criar esse sentido.
Mesmo sendo um das primeiras gravações do jovem compositor, “Com que Roupa?” contém as principais características da obra de Rosa. A letra apresenta os dilemas humanos, atravessados por humor, ironia, desejos, miséria e sofrimentos. Além disso, não segue as estruturas poéticas tradicionais, já que formulada para a canção popular. Ou seja, a escrita coloquial e curta, baseia-se nas linhas rítmicas e melódicas presentes no cotidiano do mundo urbano. Essa pulsação rítmica é transportada para a melodia e letra. Neste caso, ainda, com um bordão popular. A estrutura inovadora de “Com que Roupa?” tem que se equilibrar no trinômio melodia-ritmo-letra, tocada e cantada de modo diferente do padrão do período. Consagra uma maneira de cantar quase "falada". Como o próprio Noel grava boa parte de suas composições, é possível identificar como ele enxerga o novo desenho do samba. Ele segue o modelo de síncopas produzido pela turma do Estácio, distante do formato maxixe.
Essa nova forma consagra o gênero samba, atrai intérpretes de sua época e outros contemporâneos que gravam “Com que Roupa?”, entre eles, Aracy de Almeida (1914-1988), Marília Batista (1917-1990), Nelson Gonçalves (1919-1998), Rosinha de Valença (1941-2004), Elza Soares (1937), Martinho da Vila (1938), Maria Creuza (1944), MPB-4, Zezé Motta (1944), Zizi Possi (1956), Gilberto Gil (1942), Ivan Lins (1945), Caetano Veloso (1942), Zeca Pagodinho (1959), Johnny Alf (1929-2010), Joyce Moreno (1948), Olivia Byington (1958).
Fontes de pesquisa 7
- DIDIER, Carlos, MAXIMO, João. Noel Rosa. Uma biografia. Brasília, Ed. UnB, 1990.
- DOMINGUES, Henrique Foreis (Almirante). No Tempo de Noel Rosa. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977.
- MARCONDES, Marcos Antônio. (Ed.). Enciclopédia da Música Popular Brasileira: erudita, folclórica e popular. São Paulo: Art Editora,1977. 2 v.
- SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed./Ed.UFRJ, 2001.
- SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 1: 1901-1957). São Paulo: Editora 34, 1997. (Coleção Ouvido Musical).
- TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1999.
- VVAA, Nova História da Música Popular Brasileira, Noel Rosa. São Paulo: Editora Abril, 1977.
Como citar
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COM que roupa?.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69190/com-que-roupa. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7