Dialética da colonização
Texto
Publicado em 1992, Dialética da Colonização configura um dos momentos centrais da obra e do pensamento de Alfredo Bosi (1936), crítico literário e professor de literatura brasileira. O volume desenvolve questões que permeiam toda a carreira do acadêmico e ensaísta. Escritos em diferentes momentos das décadas de 1970 e 1980, os textos ali reunidos dialogam com a apreciação estética de suas obras anteriores. Sob a égide do conceito de cultura, articula análise literária, história política e formação social. O volume conceitua o trânsito entre as leituras de momentos-chave da construção do cânone literário brasileiro, de Raul Pompéia (1863-1895) a Dyonélio Machado (1895-1985) em Céu, inferno (1988) – e o impulso sistematizador de longo alcance, registrado na História Concisa da Literatura Brasileira (1970). Não resta dúvida de que Dialética é obra mais ambiciosa. Nela, registra-se, além de um modo específico de representação artística, o empenho de observar “um processo” – o cultural – “ao mesmo tempo material e simbólico”. Nesse processo, “as práticas econômicas dos seus agentes estão vinculadas aos seus meios de sobrevivência, à sua memória, aos seus modos de representação de si e dos outros, enfim aos seus desejos e esperanças”1.
Os três aspectos apontados ganham dinâmica particular sob a perspectiva da experiência brasileira fundadora, a da colônia. Por colônia, Bosi compreende a reinstauração e dialetização de três instâncias. Primeiro, a do trabalho do colono, isto é, da exploração do espaço mediante o cultivo da terra. Segundo, a do estabelecimento da fé, da qual deriva o culto religioso; e, por último, a da formação de representações que refletem e regulam as práticas sociais da nova ocupação, conferindo-lhes unidade cultural no tempo. A missão dos ensaios do volume é verificar a constituição da vida brasileira a partir desses três pilares e como se articulam.
Armado o campo conceitual, Bosi analisa personagens, realizações e momentos significativos do jogo entre tais nuances de sentido. Sem jamais perder de vista as mediações da palavra e do discurso, o autor inicia seu percurso em Padre José de Anchieta (1534-1597), cuja obra de catequese – trabalho de fé e cultura no coração da exploração econômica – estabelece em solo brasileiro as primeiras contradições do empreendimento colonial no Novo Mundo. O erudito humanista Anchieta toma a mitologia e a língua indígena para ressignificá-las sob os padrões culturais da Europa da Contrarreforma. Com isso, torna-se um dos responsáveis, na condição de “nosso primeiro intelectual militante”2, pelo estabelecimento de um código social da colônia, a ponto de sugerir, no contexto de seus atos como padre, o movimento da conversão regressiva da consciência culta europeia a uma simples ferramenta do poder. Bosi identifica os testemunhos de três figuras-chave da colônia consolidada numa sociedade que projeta sua cultura à sombra da exploração colonial e da conjuntura da “máquina mercante”. O primeiro é Gregório de Matos (1636-1696), cuja poesia de cronista e sátiro da sociedade escravista da Bahia seiscentista denuncia o desajuste entre o universo erudito e social do Velho Mundo e a instauração de tipos e exigências sociais no Novo. Seguem-no os padres Antônio Vieira (1608-1697) e João António Andreoni (1667-1716), jesuítas que compreendem de maneira diversa a sociedade de monocultura instalada na colônia. Vieira coloca em debate a estrutura produtiva em torno do cativeiro, liberando o indígena e assumindo postura ambígua em face dos padecimentos do negro. Já Andreoni representa a primazia da mercadoria, produto de uma sociedade auxiliar (a colônia) da qual não há de interessar a brutalidade cristalizada na cultura.
A herança colonial escravista, cultura simbólica e produção econômica, torna-se o ponto nevrálgico do debate de intelectuais e políticos do Brasil independente em seu esforço de integrar-se a civilização. Aqui, Bosi recorre ao indianismo de Alencar. Considera-o falsa feudalização do passado colonial e cristalização dos impulsos românticos e emancipatórios, presentes na figura do índio sacrificado e do bom senhor. Com isso, introduz as ambiguidades da formação da elite nacional (liberal, porém escravocrata) e do próprio país (formalmente independente, porém de estrutura colonial). O autor extrai duas vertentes fundamentais das tensões inerentes à acomodação econômica e política do país nos contextos do Brasil Império e da República proclamada. De um lado, a formação de um liberalismo escravagista com base na proteção da liberdade comercial (monocultura) e da garantia da propriedade (o escravo) a despeito do projeto social. Tal vertente terá em São Paulo sua realização maior graças à economia cafeeira e à substituição de importação. De outro, a formação lenta, no sul do país, de um pensamento de Estado de fundo positivista, autoritário, porém atento à fundação de estruturas de universalização da cidadania, fundamentada em princípios como impostos sobre a terra, isenções à manufatura, socialização dos serviços públicos, incorporação do proletariado à sociedade e ensino público. A primeira experiência desse projeto social dá-se sob a batuta do Partido Republicano rio-grandense, base do grupo político que ascende ao poder com a Revolução de 1930.
Notas
1. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 377.
2. Ibidem, p.93.
Fontes de pesquisa 2
- BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2003 (1a edição, 1988).
- BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Como citar
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DIALÉTICA da colonização.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69120/dialetica-da-colonizacao. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7