Câncer
Texto
Filmado no Rio de Janeiro, em 1968, com poucos atores, película de 16mm e baixo orçamento, Câncer só é montado, por Glauber Rocha (1939-1981), na Itália, em 1972, com o apoio da Radiotelevisione Italiana (RAI), uma empresa estatal de telecomunicação. O filme permanece inédito no Brasil até meados dos anos 1980, quando a Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme) obtém os negativos da produtora italiana. Segundo Rocha, ele é realizado enquanto sua equipe aguarda decisões burocráticas para filmar O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), em Milagres, Bahia. Além de alguns atores profissionais, conta com a atuação do diretor e produtor Zelito Viana (1938) e os artistas Hélio Oiticica (1937 - 1980) e Rogério Duarte (1938).
Na sequência inicial, surgem imagens documentais de um encontro de artistas e intelectuais no auditório do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), acompanhadas da narração off do próprio Rocha sobre o contexto político brasileiro e as condições de produção do filme. Com duração aproximada de 120 minutos, Câncer apresenta um conjunto de episódios autônomos em torno de três personagens: um negro marginal e desempregado (Antônio Pitanga), um marginal de classe média (Hugo Carvana) e uma atriz de cinema (Odete Lara). Não há trama nem enredo propriamente ditos, mas circunstâncias diversas de violência e tensão dramática, provocadas a partir de diálogos improvisados. Cada cena aborda situações de violência psicológica, racial e sexual. As filmagens realizadas nas ruas do Rio de Janeiro incorporam transeuntes e curiosos à encenação, como demonstra claramente a cena na qual Pitanga pede emprego e fala da sua história de pobreza para pessoas que encontra no caminho.
O filme de Rocha expressa formas de violência que perpassam, em vários níveis, a confecção da obra. A encenação é violenta: os atores se exasperam, gritam, se agridem fisicamente e de modo gratuito, num jogo lúdico grosseiro e visceral; cada cena é tensionada pela longa duração de planos-sequências que, em geral, se prolongam por dez, 11 minutos; a participação da câmera é agressiva, investindo sobre os atores, perscrutando o olhar dos curiosos que não abandonam o espaço da filmagem; e, finalmente, a presença provocativa do cineasta na voz over, gritando e incitando os atores.
Além disso, os temas tratados referem-se a situações de violência social e política (desemprego, desigualdade, repressão policial, malandragem), violência étnica (expressões racistas e irônicas contra os atores negros) e violência de gênero, especialmente nos diálogos entre Carvana e Odete. Os personagens não possuem estrutura psicológica clássica nem coerência dramática, oscilando conforme as improvisações de cada cena. À fragilidade na construção dos personagens se acrescentam a disposição para o humor e a quebra da expectativa das situações construídas.
Numa das sequências iniciais, Pitanga aparece no quarto de Carvana, uma espécie de receptador dos objetos roubados que o personagem traz consigo. Desenvolve-se um diálogo tenso a respeito das façanhas de Pitanga ao roubar alguns objetos. Carvana se interessa por uma caixa preta, aparentemente de madeira, que Pitanga afirma ter roubado de um americano. Eles disputam a posse da caixa, aos gritos e empurrões, enquanto o receptador questiona: "Você sabe que negócio é esse?". Pitanga responde: "Não sei, mas roubei de um americano" - como se o fato expressasse a riqueza enigmática do objeto. Carvana retruca, com fingida seriedade e preocupação: "Se é de americano, é um negócio complicado, tá legal? E como é que tu vai roubar um troço que tu não sabe o que que é?".
Na cena seguinte, eles levam o objeto a um suposto comprador, que descreve de forma incompreensível as maravilhas da caixa roubada, um "aparelho trazido de Nova York", num jogo de palavras e gestos que enganam os dois malandros. A cena termina com Carvana de revólver em punho, agredindo e acusando Pitanga de ter escondido o pagamento (em dólar) pelo objeto misterioso, que desaparece do filme.
A inversão de papéis - o malandro enganado pelo comprador aparentemente honesto -, a expectativa (não cumprida) de revelar o sentido da caixa preta, os diálogos improvisados e a violência gratuita corroboram para intensificar o traço de agressão e sarcasmo que marcaria, na mesma época, os filmes do cinema marginal.
Num episódio emblemático, Carvana e Odete estão numa delegacia, depois de iniciar uma briga doméstica provocada pela presença de um amante. Em cena, além dos três, encontra-se um delegado que segura uma grande cruz de madeira, numa provável referência a Porfírio Diaz, personagem de Terra em Transe (1967). A conversa abrange acusações exasperadas e as agressões verbais do trio amoroso. No meio da cena, Carvana se senta, olha para a câmera e inicia um monólogo sobre sua trajetória e suas profissões até chegar à condição de "marginal brasileiro". O papel é alegórico, mas o tom jocoso e a cena curta não convidam a uma reflexão mais profunda. Inesperadamente, na mesma sequência, entra em cena outro ator (o cineasta Eduardo Coutinho) no papel de um estudante pego pela polícia distribuindo panfletos. Ele começa a ser interrogado por Carvana, que incorpora o papel de delegado e acusa o jovem rapaz de ser subversivo. Mas o diálogo não transcorre como se pode esperar naquele contexto. Coutinho não defende as posições de esquerda do debate político, mas ironiza a militância, afirmando que não está interessado em revolução, mas em ordem: não importa se os estudantes ou os militares vencerão, é preciso ter organização. E exemplifica: se é marcado um encontro às 15h15 na esquina, as pessoas devem estar lá nesse horário. Carvana, como um improvisado agente da repressão, concorda com o rapaz e muda o discurso agressivo, fechando a cena em tom de paródia.
Assim, na mesma sequência, um bate-boca sobre adultério e comportamento sexual se transforma numa cena de tonalidade teatral sobre o estereótipo do malandro encarnado por Carvana, mas, ato contínuo, ele se transforma em investigador de polícia envolvido num falso interrogatório. De modo geral, oscilações como essa desestabilizam a frágil teia dramática que sustenta as experiências fragmentárias dos três personagens e reiteram o predomínio dos efeitos da linguagem cinematográfica.
Câncer é, portanto, um filme experimental pautado, particularmente, sobre três aspectos: a improvisação do jogo dramático, o uso do som direto (uma novidade técnica para Rocha, naquele momento) e a extensão do plano-sequência. No entanto, também é um filme sobre a condição marginal, encarnado na imagem corrosiva e no cotidiano de miséria e mesquinhez dos personagens, como afirma professor Ismail Xavier (1947), em Glauber Rocha: O Desejo da História, publicado em 1987.
Um pequeno artigo do professor Jean-Claude Bernardet (1936), escrito em 1968 e publicado no jornal A Gazeta, comemora a realização de Câncer como experiência promissora para libertar os cineastas de produções caras e dependentes do Instituto Nacional de Cinema (INC), orgão do governo federal responsável pelo financiamento cinematográfico no Brasil. No entanto, Câncer não ganha destaque na imprensa nos dias de filmagem e, depois de finalizado, em 1972, permanece mais de uma década inédito no Brasil, por isso, o debate sobre o filme só ocorre posteriormente, em análises que pretendem explicar as relações entre esse trabalho e o conjunto da obra do cineasta. O jornalista Bernardo Carvalho, em artigo de 1984, argumenta que o filme é considerado uma "obra menor" de Rocha, pois o problema formal (a reflexão sobre o plano longo e o uso do som direto) predomina sobre a construção de alegorias e o sentido totalizador que marcam profundamente o cineasta baiano.
Num estudo acadêmico publicado em 2001, a professora Regina Mota defende que a experiência de Câncer é a base para o trabalho de Rocha no programa de televisão Abertura (1980), visto que, nas filmagens de 1968, ele aprende a gravar em som direto, utiliza a improvisão e começa a interferir diretamente na cena - traços estilísticos que marcam o quadro televisivo.
Segundo Ismail Xavier, na obra do cineasta, Câncer representa o ponto de inflexão e indica os primeiros sinais de ruptura com suas experiências na década de 1960 - marcadas pelo esforço de totalização e alegoria histórica condensada em figuras emblemáticas (o cangaceiro, o santo, o intelectual militante, o líder popular etc.). A partir de Câncer, a montagem fragmentária e o simbolismo mais exasperado predominam sobre os grandes esquemas históricos, como em Cabezas Cortadas (1969) e Idade da Terra (1980); o cineasta passa a interferir no espaço diegético com a voz over, invadindo o espaço da cena para dirigir os atores ou se pronunciar diretamente para a câmera, como em Claro (1975) e no quadro do programa televisivo Abertura.
Fontes de pesquisa 8
- AUGUSTO, Sérgio. Kanzer não mata. Folha de S.Paulo, 22 ago.1984. Ilustrada, p. 31.
- BERNARDET, Jean-Claude. O último filme de Glauber. A Gazeta, 11 jul. 1968. Cinema, p. 15.
- CAMBARÁ, Isa. A odisséia de uma velha cópia de filme. Folha de S.Paulo, 22 ago.1984. Ilustrada, p. 31.
- CARVALHO, Bernardo. Filme-Filme. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 43, p. 105-7, jan/abr. 1984.
- FERREIRA, Jairo. Glauber Rocha, plano sequência. In: ______. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986.
- MOTA, Regina. Como nasce uma estrela de TV. In: ---------------. A Épica Eletrônica de Glauber: um estudo sobre cinema e TV. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 53-9.
- ROCHA, Glauber. O caminho do cinema são todos os caminhos. Folha de S.Paulo, 22 ago. 1984. Ilustrada, p. 31,.
- XAVIER, Ismail. Glauber Rocha: o desejo da história. In: ----------------. O Cinema Brasileiro Moderno. RJ: Paz e Terra, 2001.
Como citar
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CÂNCER.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67316/cancer. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7