Proezas de Satanás na Vila de Leva-e-Traz
Texto
Análise
Proezas de Satanás na Vila de Leva-e-Traz é o primeiro longa-metragem de Paulo Gil Soares. Trata-se de um filme de ficção que dá continuidade ao estudo da cultura sertaneja, tema este tratado nos documentários anteriores do diretor, como Memória do Cangaço (1964).
Em tom de comédia, Proezas de Satanás na Vila de Leva-e-Traz apresenta a história de um vilarejo nordestino dominado pela figura de um forasteiro, que realiza milagres e promove o progresso da região. O filme inicia com a descoberta de um poço de petróleo próximo à cidade de Leva-e-Traz que atrai jovens trabalhadores, prostitutas, o padeiro, até mesmo o padre abandona a igreja. Restam apenas as pessoas velhas, as crianças e os inválidos. Inesperados incidentes anunciam a chegada de Satanás, este é encarnado por um tipo estranho que se transforma em diversos animais, incluindo um sapo cururu e um bezerro com cara de gente. Mesmo com origens demoníacas, ele introduz grandes mudanças no vilarejo, assumindo as funções de líder religioso e prefeito. Promove a cura dos doentes, o desenvolvimento da agricultura regional e, em coligação com políticos locais, sua candidatura para a Presidência da República, que causa fervor entre os devotos moradores. Em seu discurso, ironicamente, promete vida eterna a todos e que o trabalho vai ser extinto. No fim, em meio a uma procissão, a magia se desfaz, Satanás volta a ser um bode e a pobreza retorna ao vilarejo.
Segundo Glauber Rocha (1939-1981)1, o filme faz parte de uma segunda fase do cinema novo, pautada pelos estilos pessoais e pela busca por uma comunicação efetiva com o público. Proezas de Satanás pensa o Brasil a partir do sertão nordestino, e discute as formas de consciência popular na adversidade. Ao focalizar as práticas religiosas, traço da cultura nacional, critica o processo de modernização vivenciado pelo país. Junto com Roda e Outras Estórias (1965), de Sérgio Muniz, e Vitalino/Lampião (1969), de Geraldo Sarno (1938), consolida o modelo de cinema inspirado no cancioneiro popular nordestino denominado por Wills Leal como cinema de cordel2. Este se apoia na cultura sertaneja, sobretudo em sua tradição oral de versejadores, em Proezas, trabalhada numa chave satírica. A trajetória do Satanás fanfarrão faz da vida religiosa, e suas ilusões, a metáfora de uma submissão coletiva a uma política enganadora, em nome do progresso. O conflito central de Proezas de Satanás envolve um embate entre a credulidade dos habitantes católicos e a sedução exercida por um demônio comediante, cujos truques mágicos e feitos mirabolantes são comentados pela trilha sonora composta de canções de Caetano Veloso (1942), que contribui com comentários a respeito das ações e acontecimentos da história.
Uma sequência em especial concentra esses traços narrativos. O padre deixa a cidade, levando consigo a imagem da padroeira. Leva-e-Traz é abandonada pela Igreja e Satanás encontra terreno livre para seu domínio, e aparece e desaparece como um mágico ilusionista diante dos camponeses. Após seduzir os desamparados, prometendo-lhes glória e fortuna, realiza milagres: devolve a visão ao violeiro e dá um braço ao maneta. Por fim, em discurso eleitoreiro, promete usar sua magia para o desenvolvimento da cidade. As imagens mostram as máquinas agrícolas, pessoas trabalhando e o encaixotamento mecânico de frutas. O discurso desenvolvimentista dá espaço a uma canção tocada por instrumentos elétricos, com rimas inspiradas na literatura de cordel e que prevê a transformação do sertão em campos arados, prometendo o fim da pobreza. Há na música algo de profético e improvisado, tal como na poesia cantada por repentistas. No fim do filme, porém, tal futuro é apresentado como uma quimera. O alimento dado por Satanás aos pobres é falso, sua magia não passa de uma ilusão, o próprio personagem volta a ser um animal de quatro patas, ironicamente cultuado pelos sertanejos famintos.
Proezas de Satanás é premiado em diversos festivais, como melhor filme no L'Office Catholique International du Cinéma [Agência Internacional Católica do Cinema], em 1967; melhor filme, melhor argumento e melhor música, no Festival de Brasília de 1967; melhor roteiro, no Festival de Belo Horizonte de 1968; e melhor filme, no Festival de Pesaro de 1968.
Parte da crítica recebe o filme de Soares com ressalvas. Presente no Festival de Brasília como jurado, Paulo Emílio Salles Gomes critica o tratamento negativo dado ao petróleo. Jean-Claude Bernardet (1936), por sua vez, faz uma apreciação positiva do filme, destacando a relação da figura do diabo com a ideia desenvolvimentista. Proezas de Satanás também chama atenção da crítica pelo simbolismo e pelo diálogo com a cultura sertaneja. Em longo artigo dedicado ao filme, Clarival Valladares (1918-1983) o contextualiza em frente a diferentes tipos de arte, que trabalham com representações populares do demônio no Brasil. Segundo ele, "todo o lastro [...] das aparições demoníacas, conforme ocorre na fabulação brasileira, em parte fixada pela literatura de cordel, participa do argumento unindo no mito-personagem o texto fragmentado da tradição oral"3.
Notas
1 ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. 2 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p.149.
2 Para mais informações sobre o cinema de cordel: LEAL, Wills. O nordeste no cinema. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1982.
3 VALLADARES, Clarival do Prado. As muitas proezas de Satanás. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jan. 1968.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 11
- A. Cineastas em depoimento. Filme Cultura, Rio de Janeiro, v. 2, n. 8, p. 26-33, mar. 1968.
- ALENCAR, Miriam. As Proezas de Paulo Gil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 jun. 1968. p.30.
- ANDRADE, Valério M. de; AVELLAR, José Carlos Avellar; AUGUSTO, Sérgio. O filme em Questão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 jun. 1968. p.30.
- BERNARDET, Jean-Claude. [Carta de Jean-Claude Bernardet para Alex Viany.] 30.12.1967. Acervo Pessoal Alex Viany, Rio de janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.alexviany.com.br>. Acesso em: 14 jul. 2010.
- CINECLUBE MACUNAIMA. Programação de filmes brasileiros. Rio de Janeiro, 197-. [Pasta D 406, Cinemateca Brasileira].
- GOMES, Paulo Emilio Salles. [Brasília: III Festival do cinema Brasileiro.] 1967. Arquivo Paulo Emilio Salles Gomes, São Paulo, Cinemateca Brasileira. [Pasta PE/PI. 0828].
- J. B. PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS. [Release mimeografado de Proezas de Satanás na Vila de Leva-e-Traz]. 1968. Acervo Pessoal Alex Viany, Rio de janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.alexviany.com.br>. Acesso em: 13 dez. 2009.
- LEAL, Wills. Cinema falando pelo Cordel. In. _____. O nordeste no cinema. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1982.
- ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
- VALLADARES, Clarival do Prado. As muitas proezas de Satanás. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jan. 1968.
- XAVIER, Ismail. O cinema Brasileiro moderno. In. ______. O cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
PROEZAS de Satanás na Vila de Leva-e-Traz.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67289/proezas-de-satanas-na-vila-de-leva-e-traz. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7