Geraldo Sarno
Texto
Fidélis Geraldo Sarno (Poções, Bahia, 1938 - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022). Diretor de cinema, roteirista, produtor. Nome atuante de uma geração que desde os anos 1960 busca registrar, compreender e problematizar a complexidade de um Brasil desigual. Nessa configuração, seus documentários e ficções têm viés político e forte componente social.
Na infância, frequenta a sala de cinema local e coleciona fotogramas. Ingressa, em 1955, no curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Torna-se ativo na política estudantil e participa da criação do Departamento de Cinema do Centro Popular de Cultura (CPC). Em 1962, viaja a Cuba para estudar cinema. Dois anos depois, segue para São Paulo onde integra grupo de curta-metragistas capitaneado por Thomaz Farkas (1924-2011), iniciativa mais tarde denominada Caravana Farkas1.
Na primeira produção conjunta, Sarno estreia com o média documental em 16mm Viramundo (1965). O filme introduz conceitos de seu cinema, como o domínio da produção já a partir do argumento e a temática nordestina, em especial a migração. Nele, a chegada de trabalhadores do Nordeste a São Paulo e a busca por trabalho é registrada por depoimentos dos migrantes, referências à religião e à atitude solidária. O diretor adota os preceitos do chamado cinema-verdade2, entre eles o uso do som direto e de câmeras portáteis. Viramundo é recebido como um marco, retrato crítico das relações dos migrantes com a capital da indústria e sua riqueza. Em 1968, o filme é ampliado para 35 mm e integra o longa coletivo Brasil Verdade.
Em 1966, realiza Auto de Vitória, curta que confirma a vocação documental e sociológica de sua carreira. A realização se dá junto ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Em duas partes, registra-se o traslado dos restos mortais do padre José de Anchieta (1534-1597) à basílica de Aparecida e a encenação por atores de teatro da peça do religioso que nomeia o filme. Nesse contexto universitário, o diretor faz viagens ao sertão nordestino em 1967 e 1969. Delas resultam oito curtas em 16 mm e 35 mm, com temas como a literatura de cordel, o ofício dos artesãos, a religiosidade e a questão agrária. Viva Cariri (1970), título determinante dessa fase, é rodado em Juazeiro do Norte e articula a figura do Padre Cícero ao cenário de pujança econômica da região. Um narrador contextualiza as situações mostradas e serve como voz crítica ao desenvolvimentismo do governo militar, em expediente comum a todas as produções do projeto.
Dedica-se a uma sequência de curtas e médias-metragens de cunho educativo para televisão e instituições oficiais. Tais experiências o conduzem ao primeiro filme ficcional e em longa-metragem, O Picapau Amarelo (1973). A adaptação do clássico de Monteiro Lobato (1882-1948) se centra em personagens de fábulas infantis que saem dos livros para ganhar vida. Em seu segundo longa ficcional, Coronel Delmiro Gouveia (1977), renova as preocupações sociais em chave política. O drama revisita o conflito do empreendedor e comerciante de origem cearense Delmiro Augusto da Cruz Gouveia (1863-1917) quando, em Alagoas, funda fábrica de linhas de costura e rivaliza com líder internacional do setor. O sucesso da empreitada incomoda a concorrência e os coronéis da região, situação que teria levado ao assassinato de Gouveia. Para analistas, o filme traz discussão fundamental sobre o papel da elite econômica brasileira na história do país e a aproximação necessária entre burguesia e operariado para combater pressões de fora.
O interesse pelas religiões retorna com o média-metragem A Terra Queima (1984) e o longa Deus É um Fogo (1987), inspirados pela tendência católica da Teologia da Libertação3 . Em 2008, o diretor experimenta sobre o próprio ato de filmar no metalinguístico Tudo Isso me Parece um sonho. O longa se vale de um registro da vida do general pernambucano José Inácio de Abreu e Lima (1794-1869) para discutir a busca de imagens e a construção da personagem.
Faz na sequência um híbrido de ficção e documentário, O Último Romance de Balzac (2010), de temática espírita. Mais uma vez investiga o fazer artístico, adicionando a questão mediúnica, a partir do fato revelado por um médium de que o romancista francês Honoré de Balzac (1799-1850) teria lhe ditado do além um livro derradeiro. A crítica vê no filme uma vitalidade ao buscar o espelhamento entre a alegaçãodo espírita, a pesquisa de um estudioso sobre a obra psicografada, um romance similar de Balzac e a encenação deste.
A noção de vitalidade também é lembrada uma década depois para novo longa ficcional. Sertânia (2020) contempla em preto-e-branco universo do sertão com seus mitos, sua cultura popular e suas personagens referenciais como o cangaceiro e o jagunço. Sobretudo, há o retorno à temática do migrante, em ciclo de predileção iniciado com Viramundo. Na trama, o jovem sertanejo Antão, levado ainda criança da Canudos massacrada4 para São Paulo, volta para compreender a morte do pai. O protagonista, alistado nas forças de combate a operários insurgentes na metrópole, é considerado paradigmático dos interesses do realizador no embate entre donos de poder e oprimidos, modernização e conservadorismo, um Brasil dinâmico e arcaico, por fim.
O veterano Sarno desenvolve com coerência um cinema voltado ao entendimento do povo brasileiro, seus conflitos e suas aspirações, quer na linguagem documental, quer na ficcional. Mantém como ética utilizar do conhecimento e das ferramentas criativas definidas na sua formação nordestina, raiz constante dos filmes que dirige.
Notas
1. Caravana Farkas é o nome informal dado a um conjunto de documentários produzidos por Thomaz Farkas entre 1964 e 1969. Inicialmente, o conceito se refere a vinte produções sobre a cultura popular nordestina realizadas em 1969 e reunidos sob o título A Condição Brasileira. Os episódios são dirigidos por Paulo Gil Soares (1935-2000) e Sérgio Muniz, além de Sarno. Mais tarde, passam a integrar nesta noção coletiva outros quatro curtas-metragens em 1964 sob a produção de Farkas , entre eles Viramundo, de Sarno.
2. Cinema-verdade, ou Kino Pravda, é uma teoria desenvolvida pelo pioneiro documentarista soviético Dziga Vertov (1896-1954) e diz respeito a filmar a realidade de improviso, sem a interferência do realizador e o conhecimento de quem é filmado. Busca-se, assim, a expressão da verdade, do real. Inspirados nas ideias de Vertov, o filósofo Edgar Morin (1921) e o antropólogo cineasta Jean Rouch (1917-2004) desenvolveram o estilo documental chamado Cinéma Vérité, assim batizado por Morin em 1960.
3. Teologia da Libertação é uma corrente teológica cristã suprapartidária surgida na América Latina nos anos de 1960. O lançamento, em 1971, do livro A Teologia da Libertação, de autoria do padre peruano Gustavo Gutiérrez Merino (1928), costuma ser considerado o fato fundador do movimento. Junto à fé, adota as ciências humanas e sociais como base estrutural e atua em prol de direitos básicos do ser humano, no combate à fome e à pobreza.
4. A pequena comunidade de Canudos, no sertão baiano, se torna palco de um conflito de dimensão nacional quando, em 1893, o líder messiânico Antonio Conselheiro (1830-1897) ali se instala e atrai milhares de seguidores entre camponeses, índios e ex-escravos. A partir de 1896, os governos locais e mais tarde o poder federal passam a enviar expedições para destruir o povoado, o que acontece um ano depois na quarta tentativa. Pelo menos 25 mil pessoas são mortas na chamada guerra ou campanha de Canudos.
Exposições 4
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13/6/2014 - 10/8/2014
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25/1/2015 - 29/3/2015
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1/5/2015 - 29/5/2015
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2/9/2017 - 22/1/2016
Fontes de pesquisa 7
- CINEMATECA Brasileira - Filmografia: base de dados. Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p. Acesso em: 5 nov. 2021.
- FGV/CPDOC. Banco de dados do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/memoria-documentario/geraldo-sarno/. Acesso em: 6 nov. 2021.
- GERALDO Sarno morre aos 83 anos. G1, 23 de fev. de 2022. Pop e Arte. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2022/02/23/cineasta-geraldo-sarno-morre-aos-83-anos.ghtml. Acesso em: 23 fev. 2022.
- RAMOS, Clara Leonel. As múltiplas vozes da Caravana Farkas e a crise do “modelo sociológico”. 2007. Dissertação (Mestrado em Estudo dos Meios e da Produção Midiática) – Programa de Ciências da Comunicação – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-21072009-202642/publico/5064474.pdf. Acesso em: 8 nov. 2021.
- SOBRINHO, Alexandre Gilberto. Os documentários de Geraldo Sarno (1964-1971): das catalogações e análises do universo sertanejo aos procedimentos reflexivos. Revista Alceu, v. 13, n.26. ja./jun. 2013. Disponível em: http://revistaalceu-acervo.com.puc-rio.br/media/artigo6_26.pdf. Acesso em: 5 nov. 2021.
- SOBRINHO, Alexandre Gilberto; BOMFIM, Felipe Corrêa. As representações religiosas no cinema de Geraldo Sarno. In: Doc On-line – Revista Digital de Cinema Documentário. Universidade da Beira Interior/Portugal e Universidade Estadual de Campinas. Mar. 2017. Disponível em: file:///C:/Users/Orlando/Downloads/Dialnet-AsRepresentacoesReligiosasNoCinemaDeGeraldoSarno-5893424.pdf. Acesso em: 6 nov. 2021.
- THOMAZ FARKAS. Site oficial. São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.thomazfarkas.com/filmes/viramundo/. Acesso em: 5 nov. 2021.
Como citar
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GERALDO Sarno.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa279417/geraldo-sarno. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7