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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Macunaíma

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 26.03.2024
1969
A adaptação do romance ocorre em um momento particularmente problemático para diversos setores da sociedade brasileira. A repressão política e a censura, a ação dos grupos de luta armada e a fragmentação da esquerda, a modernização das estruturas econômicas baseada na expansão do mercado de consumo e os intensos confrontos culturais e ideológico...

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Terceiro longa-metragem do diretor Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), é baseado na obra do escritor Mário de Andrade (1893-1945), Macunaíma, O Herói sem Nenhum Caráter (1928), livro de referência do movimento modernista brasileiro.

A adaptação do romance ocorre em um momento particularmente problemático para diversos setores da sociedade brasileira. A repressão política e a censura, a ação dos grupos de luta armada e a fragmentação da esquerda, a modernização das estruturas econômicas baseada na expansão do mercado de consumo e os intensos confrontos culturais e ideológicos, em curso desde o golpe militar de 1964, acirram-se no conturbado ano de 1968 – data em que Joaquim Pedro de Andrade inicia as filmagens.

Tal conjuntura exige do cinema novo uma redefinição pela qual o rigor estético e político deve se ajustar a imperativos da comunicação. Joaquim Pedro não esconde o salto arriscado: "Macunaíma é um filme popular, mas que nem por isso é contrário à linha que sempre me impus. É filme em cor, de orçamento relativamente alto. Filme-espetáculo, cuja posição implica que tenha grande público"1.

A transposição do livro de Mário de Andrade assume diversos compromissos: precisa agradar a reduzida classe média politizada e somar grande bilheteria; objetiva recuperar o inventário antropológico enraizado no romance, reafirmando as pontes entre o cinema novo e o modernismo de 1920 a 1930; e, ao mesmo tempo, imprime uma relação de tensão e proximidade com o tropicalismo, fazendo uma leitura particular do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (1890-1954).

O romance, afinado com o experimentalismo dos anos 1920, torna-se mais linear em sua transposição para as telas; a jornada do herói, claramente definida em três tempos e três espaços, é facilitada pela narração over que se encarrega de suavizar as elipses ou fazer ouvir a escrita do romancista, na maioria das vezes sublinhando as lendas que dão embasamento à criação literária.

Na mata virgem – começa o filme –, nasce homem feito a criança Macunaíma [Grande Otelo (1915-1993)], portador de uma dupla significação: é "herói de nossa gente", como brada seu irmão, e dotado de má sina, como diz sua mãe caricaturada [Paulo José (1937)]. Prevalece no herói os traços negativos: preguiçoso, zombeteiro, aproveitador, chorão, despudorado e mentiroso. Sua família inclui dois irmãos, o negro e desconfiado Jiguê (Milton Gonçalves), vestido com os trapos de um colonizador português, e o índio de bom coração Maanape (Rodolfo Arena), cujo traje recorda a dominação jesuítica, ambos representando raízes étnicas e culturais do povo brasileiro.

Jiguê vive com Sofará [Joana Fomm], espécie de feiticeira, que descobre que, por baixo da pele retinta de Macunaíma, há um lindíssimo príncipe branco, com quem comete as maiores safadezas. Ela veste um saco da Aliança para o Progresso2 e, ao transformar Macunaíma em um príncipe postiço, de conto de fadas, fantasiado para o Carnaval, alude à fragilidade de um "milagre" econômico modernizador subordinado à política imperialista dos Estados Unidos. Inúmeros episódios reafirmam o mau (ou a falta de) caráter desse herói picaresco, ardiloso e velhaco. Por conta da fome e depois da morte da mãe, Macunaíma, transformado em homem branco (Paulo José), e seus irmãos chegam à cidade grande, em pau de arara clandestino, como migrantes saídos do Nordeste.

Encontram Ci [Dina Sfat (1938-1989)], a guerreira amazona, livre, feroz e sanguinária, transformada pelo filme em solitária guerrilheira da luta armada, que se rende aos encantos do herói. O caráter malandro de Macunaíma, agora urbanizado, se amplifica: abandona os irmãos à própria sorte, passa a ser sustentado pelas ações belicosas de Ci, com quem tem um filho (Grande Otelo), e, além da vida mansa, descobre gostar bastante de dinheiro.

O canibalismo, sem a base mitológica que fundamentara um episódio anterior com o Curupira, desdobra-se agora em dois sentidos: a devoração positiva (a liberdade sexual representada pela guerreira Ci) e a negativa (o capitalismo predatório e a luta pela sobrevivência), a segunda antecipada pela introdução do muiraquitã, um talismã que Ci traz ao pescoço e motiva a cobiça de Macunaíma. Ci e o filho morrem em uma explosão acidental e ela vira estrela, conforme acentua o narrador, o que deixa Macunaíma muito triste.

Ao curar sua tristeza, descobre que o ambicionado muiraquitã faz parte da coleção de um industrial, Venceslau Pietro Pietra [Jardel Filho (1927-1983)], o gigante Piaimã, devorador de gente. Travestido de mulher, Macunaíma tenta seduzir Pietro e convencê-lo a lhe entregar o talismã, mas não consegue concretizar o plano. Uma série de novos episódios recoloca as características já conhecidas: aproveitador, ainda mais mentiroso, otário, um herói egoísta que procura tirar vantagens pessoais e se nega a coletivizar suas ações, a não ser quando precisa escapar de situações adversas por ele mesmo provocadas.

A obstinação em obter o muiraquitã o conduz novamente à casa do magnata em que quase se torna vítima da canibalesca família do gigante. Venceslau, com segundas intenções, envia um convite para uma feijoada em comemoração do noivado da filha, durante a qual Macunaíma arranca o muiraquitã do pescoço do industrial e o empurra para dentro da piscina onde se acumula uma pantagruélica feijoada de carne humana.

O herói e seus irmãos retornam para a floresta. Ele está, de início, com seus trajes de caubói norte-americano, meio pop star, ainda mais fanfarrão, pois vencera o gigante Piaimã e a metrópole, da qual acumula um saqueio de guerra. Os bens da cidade logo se tornam sucata, os irmãos não toleram sua preguiça nem acreditam em suas mentiras e o abandonam, restando como companheiro, no transcorrer do tempo, um papagaio que ouve o relato de um Macunaíma decrépito, envelhecido e desdentado que conta seus sucessos e suas glórias passados. Ao voltar o desejo, é atraído por Uiara, devoradora de homens, pula no riacho e é engolido.

O canibalismo, embora recolocado em sua caracterização mítica, arremata na sequência final o distanciamento crítico de Joaquim Pedro das fabulações de Mário de Andrade. Macunaíma não vira estrela-guia, símbolo condutor das esperanças de um Brasil rumo à civilização, mas morre devorado por um de seus próprios mitos.

Trata-se de um procedimento que promove uma "radicalização ideológica" do romance, dando destaque a uma postura sociológica mais apurada e a uma aproximação com a realidade brasileira menos mítica. O objetivo é propor uma reflexão voltada tanto para a constatação de um processo antropofágico institucionalizado, segundo o qual o Brasil devora os brasileiros pela miséria e pelo subdesenvolvimento em estado perpétuo, quanto para a questão do mito da identidade nacional e da fundamentação ética de um herói brasileiro.
Ismail Xavier conclui que, no final, o personagem de Joaquim Pedro é reduzido a um estado de "esvaziamento maior da sua condição de herói"3. O sonho transformador que eventualmente se concretizaria com a descoberta de um símbolo da identidade brasileira, representado por uma alegre e encantadora figura literária e cinematográfica, cede diante da essência negativa de um herói que, embora vencendo o capitalista, sucumbe diante do consumismo, motor do capitalismo, na aceitação de uma "modernidade ilusória" e "atrelada à dependência" estrangeira, vítima de seu comportamento individualista e seu parasitismo.

Para transmitir essa visão agressiva e feroz do Brasil se superpõe à trama básica a reiterada acumulação de símbolos oficiais e da ordem estabelecida, de alusões sexuais e comportamentais, cruzando épocas, ideologias, criações culturais, do passado e do presente, em suas variadas manifestações: o circo, o teatro de revista, o surrealismo, o ufanismo patriótico, a chanchada, a marchinha de Carnaval, a música erudita, o bom e o mau gosto, o nobre e o sublime – elementos de transgressão utilizados pelo tropicalismo, cuja irreverência, deboche e anarquia são contrapontos irônicos às posturas políticas mais sisudas do cinema novo. 

Em seu lançamento, a crítica jornalística prefere destacar os elementos mais referenciais da composição do filme, identificando cada um a sua maneira, a favor ou contra, a absorção de recursos estilísticos do tropicalismo: a exacerbação do verde-amarelismo, a trilha sonora que mistura hino patriótico, marchinha carnavalesca, bolero, tango e iê-iê-iê, a exuberância da cenografia e dos figurinos, o aspecto histriônico das interpretações. A crítica estrangeira, em um primeiro momento, não esconde sua perplexidade4.

Análises posteriores5 procuram compreender e acentuar a dimensão política do filme, em detrimento de um suspeito "elogio da contracultura" que está na base do tropicalismo6. O cineasta não adere ao movimento tropicalista, ele se utiliza de seus recursos estilísticos (a justaposição de arcaico e moderno, da combinação do folclore rural e urbano, da televisão e da música, a incorporação do pop, do kitsch, da farsa, da paródia e da chanchada) para melhor fundamentar suas amplas proposições sobre o momento cultural, político e econômico brasileiro do fim dos anos 1960.

Conforme esperado, o sucesso de bilheteria é extraordinário. Prêmios nacionais e internacionais se acumulam. Talvez caiba perguntar o que é um herói moderno na concepção de Joaquim Pedro de Andrade. Para ele, uma das características fundamentais desse herói "é a consciência coletiva. Ao contrário de Macunaíma, ele terá de encarnar um ser moral, no sentido de estar possuído por toda uma ética social"7.

Notas

1 Depoimento para a revista Visão, 28 fev. 1969.
2 Programa de desenvolvimento para América Latina, financiado pelos Estados Unidos de 1961 a 1970, em resposta à revolução socialista ocorrida em Cuba.
3 Alegorias do subdesenvolvimento, p. 152 e seguintes.
4 LAURA, Ida. O Estado de S. Paulo, 10 dez. 1969; Marco Polo G. Martins, A Crítica, São Paulo, 1970; Alex Viany, Jornal do Brasil, 7 nov. 1969; Jean de Baroncelli, Jornal do Brasil, 1970 [?], traduzido de Le Monde. 
5 XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento; JOHNSON, Randal. Literatura e cinema: Macunaíma, do modernismo na literatura ao cinema novo; STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e arte da adaptação.
6 Para Roberto Schwarz (Cultura e política no Brasil: 1964-1969, transcrito em: BASUALDO, Carlos. Tropicália: uma revolução na cultura brasileira, sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta [no tropicalismo] a divisa entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração. p. 292.
7 Citado em HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Macunaíma: da literatura ao cinema. p. 115.

Espetáculos 4

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Fontes de pesquisa 17

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  • ANDRADE, Joaquim Pedro de. Depoimento. Visão, São Paulo, 28 fev. 1969.
  • AZEREDO, Ely. Olhar crítico: 50 anos de cinema brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009. p. 249-252. [Originalmente publicado em Jornal do Brasil, 1970.].
  • BASUALDO, Carlos (org). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo : Cosac Naify, 2007. principalmente p. 99-128 [artigo de Ivana Bentes] e 279-309 [artigo de Roberto Schwarz].
  • FASSONI, Orlando L. Macunaíma. In: LABAKI, Amir (org). O Cinema Brasileiro: de O Pagador de Promessas a Central do Brasil. São Paulo: Publifolha, 1998.
  • GRUNEWALD, José Lino. Macunaíma. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 08 nov. 1969. [Transcrito em: ______, _______. Vertentes do cinema moderno: inventores e mestres. Campinas : Pontes, 2003. p. 124-125.].
  • GUERRINI JUNIOR, Irineu. A Música no Cinema Brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem/Fapesp, 2009. p. 109-117.
  • HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
  • JACOB, Mario & WAINER, Jose. Una tarde con Joaquim Pedro de Andrade: Macunaíma política indirecta. Cine Cubano, La Habana, n. 66/67, mar. 1971 [?], p. 32-37.
  • JOHNSON, Randal. Cinema Novo and cannibalism. In: ______, _______ & STAM, Robert. Brazilian cinema. London, Toronto: Associated University Press, 1982. p. 178-190.
  • JOHNSON, Randal. Literatura e cinema: Macunaíma, do Modernismo na literatura ao Cinema Novo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
  • NAGIB, Lúcia. A Utopia no Cinema Brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias. São Paulo: Cosac Naify, 2006. principalmente p. 99-102.
  • RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema Estado e Lutas Culturais: anos 50/60/70. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1983. principalmente p. 78-83.
  • RODRIGUES, Antonio. Macunaíma ou a Alteridade Absoluta. O Correio da Unesco, Paris, ano 17, n.12, dez. 1989, p.14-17.
  • ROSSINI, Miriam de Souza. Policarpo e Macunaíma: duas visões do nacional no cinema. SOCINE. Estudos sociais de cinema, ano IV. São Paulo: Panorama, 2003. p. 133-141.
  • STAM, Robert. A Literatura Através do Cinema: realismo, magia e arte da adaptação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 423-434.
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  • XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993. principalmente p. 139-158.

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