A Hora e a Vez de Augusto Matraga
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Dirigido por Roberto Santos (1928-1987), baseado no conto homônimo de Guimarães Rosa (1908-1967), o filme reúne música original de Geraldo Vandré (1935), fotografia de Hélio Silva (1959), montagem de Silvio Reinoldi, diálogos de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e interpretação de Leonardo Villar (1923) (Augusto Matraga), Flávio Migliaccio (1934) (Quim Recadeiro), Jofre Soares (1918-1996) (Joãozinho Bem-Bem) e Maurício do Valle (padre moço). Publicado em 1946 no volume Sagarana, o conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga é considerado um “entre os dez ou doze mais perfeitos da língua” pelo crítico literário Antonio Candido (1918). O filme, realizado quase 20 anos depois pelo cineasta paulistano, introduz algumas mudanças no enredo, tais como a cena inicial, em que os jagunços contratados por nhô Augusto amedrontam as criancinhas vestidas de anjo e os moradores do lugar, o que não há no conto; a cena final, em que a luta se passa dentro de uma igreja e no conto, em uma casa; a cena em que nhô Augusto doma o jumento, momento fundamental do filme é uma adição de Roberto Santos; e a cena do enterro, também.
O filme conta a história de Augusto Matraga, dono de terras do norte de Minas Gerais, temido pelo povo local. No dia em que ele descobre quea mulher e a filha fugiram de casa, seus capangas passam para o lado do seu maior rival. Nhô Augusto é espancado por seus antigos empregados, cai numa ribanceira e é dado como morto. Um casal de negros o acode e o leva para sua cabana, cuidando dele com rezas e remédios caseiros. Nhô Augusto vai lentamente se recuperando. Um dia o padre o faz-lhe uma visita e diz: "Cada um tem a sua hora e a sua vez, você há de ter a sua". Nhô Augusto decide conquistar o direito a entrar no céu e muda-se com o casal de negros para um pequeno sítio de sua propriedade, onde se penitencia. Um dia, recebe a visita do bando de seu Joãozinho Bem-Bem, jagunço muito temido na região. Bem-Bem o convida a entrar no bando, mas Augusto não aceita o convite. O bando parte sem ele. Algum tempo depois, nhô Augusto deixa o sítio e segue sem rumo pelo sertão. Passado um tempo, encontra novamente o bando de Bem-Bem, que se prepara para vingar a morte do jagunço Juruminho. Chega então um velho homem, pai do assassino, e vai até o chefe do bando e pede que poupem a vida de seus filhos inocentes. Bem-Bem se recusa a acatar o pedido, nhô Augusto interpela o chefe e pede para deixar o homem em paz, Bem-Bem se nega e nhô Augusto enfrenta-o. O bando de jagunços parte pra cima dele e começa a luta, que termina no duelo entre nhô Augusto e Bem-Bem.
A fotografia de Hélio Silva, com quem o diretor trabalha em O Grande Momento (1958), destaca as paisagens, dando-lhes importante significadodentro do filme. Os enquadramentos são feitos com esmero: na cena em que Matraga encontra João Lomba, interpretado por Emmanoel Cavalcanti , hámolduras no quadro que impedem o aparecimento total do personagem, protegendo-o da visão do espectador. Na cena em que aparece o jumento, os movimentos de câmera, além de se prestarem a contar da história, mostram o estado psicológico do personagem. No final, os contraplongées se sobressaem: nesses enquadramentos o céu ocupa cerca de 80% do espaço na tela e os personagens se tornam miniaturas diante da proporção da imagem.
A montagem de Sílvio Reinoldi é discreta na maior parte do filme, porém transforma-se nas duas cenas de embate: a de Matraga e o jumento e aluta final contra Bem-Bem. Ela, nesses momentos, não tem um compromisso com o registro documental, pois sua intenção é expressar a realidade do personagem. A montagem é empregada de modo a conseguir a dilatação do tempo, utiliza-se de inúmeros planos postos em sequência, ampliando a representação e seus sentidos.
A música de Geraldo Vandré pontua como um comentário musical a trajetória do protagonista. Ela está presente, no início do filme, na forma de um canto sem palavras que se assemelha a um aboio energizado. Já a letra de sua canção Réquiem para Matraga diz: "Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja pra melhorar / Tanta vida pra viver / Tanta vida a se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar / Você que não me entendeu / Não perde por esperar". Os primeiros quatro versos da canção são utilizados na cena final, ampliando o espectro interpretativo da obra.
A atuação de Jofre Soares e Leonardo Villar, como Joãozinho Bem-Bem e Augusto Matraga respectivamente, é importante. Segundo Francisco Luiz de Almeida Salles: "Cabe ressaltar a interpretação que Leonardo Villar nos dá do Matraga, traduzindo de maneira fabulosa a explosiva exuberância física do herói, contida pelo afã místico a que se entrega, para melhor se dominar". É possível exemplificar a afirmação com a cena em que nhô Augusto encontra o padre pela primeira vez, quando o clérigo lhe ensina a seguinte oração: "Jesus manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso". Ao repeti-la, a fisionomia de Villar não demonstra humildade nem mansidão. Do rosto contraído do ator transparece apenas raiva e agressividade: dentes cerrados, sobrancelha arqueada, maxilar contraído e olhar injetado.
A breve oração ensinada pelo padre é repetida por Matraga algumas vezes durante o filme. Em um momento, ao fim de uma conversa na qual ouve as más notícias sobre a mulher e a morte de Quim, nhô Augusto repete as palavras do padre: "Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso". Mas sai de casa correndo e urrando, embrenhando-se no mato. Ele cai de joelhos, bate com os punhos no chão e grita: "Pro céu eu vou e vou mesmo, por bem ou por mal! Pro céu eu vou nem que seja a porrete! Pro céu eu vou!". A oração do padre é substituída por esta, criada por nhô Augusto, e corresponde, ao contrário das palavras ensinadas pelo padre, ao que ele sente de fato.
Há uma complexa relação entre os movimentos do personagem e da natureza, que tem a função de estabelecer temporalidade na narrativa. O voo das aves migratórias, por exemplo, aparece determinando pontos de inflexão no destino de Matraga. Primeiro, as aves no céu marcam o encontro do negro Serapião com o moribundo nhô Augusto. Depois, pássaros cruzam o céu na chegada do padre. Em outro momento – em que ele resolve ir atrás da sua hora e vez – veem-se os pássaros novamente. Também o vento (a cena do jumento é marcada pela ventania) e a chuva exercem papel essencial na interface homem e natureza.
Em crítica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Almeida Salles resume o espírito que norteia a recepção da obra: "Matraga atinge um regional que adquire desde logo uma dimensão universal. [...] Não tínhamos tido uma iconografia cinematográfica sertaneja com a sutileza, a profundidade e ao mesmo tempo o depuramento de que este filme nos dá prova. Principalmente o despojamento que retira desta obra qualquer caráter folclórico. O folclórico é o regionalismo em estado cru. O Matraga de Roberto Santos transcende o folclore para dar uma imagem de uma região do Brasil, a menos demagógica possível, mas rica de peculiaridades e de autenticidade".
A Hora e a Vez de Augusto Matraga recebe prêmios de melhor filme, argumento, diálogo, direção e ator (Leonardo Villar), em 1966, na 1ª Semana do Cinema Brasileiro, atualmente Festival de Brasília.
Espetáculos 3
Fontes de pesquisa 9
- ANDRADE, João Batista de. Entrevista com Roberto Santos. São Paulo : SAC, 1966. 13 p. Caderno da SAC.
- BARROS, José Tavares de. Revisão: A Hora e Vez de Augusto Matraga. Filme Cultura, n. 33, maio 1979, p. 74-8.
- CHAMIE, Mário. O Cavalo e o Crucifixo. In: CHAMIE, Mário. A Linguagem Virtual. Säo Paulo : Quíron, 1976. p. 77-82.
- LIMA, Clara S. L. Dois Sertões: o universo roseano no filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. São Paulo: USP, 2007. Dissertação.
- MARCELO, Carlos (coord). Quando fomos felizes. Textos sobre os 10 melhores filmes vencedores do Festival de Brasília, eleitos por 20 especialistas. Acesso: F151(81)brasília"2007"anexo - Correio Braziliense, 24.nov.2007, p. 1-7.
- SALLES, Francisco. de A. Transcendência da revolta.In: Suplemento Literário do Estado de S.Paulo. São Paulo, 26 março de 1966.
- SASSO, Wilson R. S. A Hora e a vez de Augusto Matraga: da literatura ao cinema. Curitiba: Universidade Federal do Paraná Instituição, Dissertação. 2010.
- SIMÕES, Inimá F. Roberto Santos: A Hora e a Vez de um Cineasta. São Paulo: SECSP, Estação Liberdade, 1997.
- SOUSA FILHO, Antonio Ferreira. Caminhos de Poeiras e Estrelas: o processo de criação de Roberto Santos em Hora e Vez de Augusto Matraga de João Guimarães Rosa. Apresentação Marília Santos. São Paulo: LCTE Editora, 2009. p. 208.
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A Hora e a Vez de Augusto Matraga.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67243/a-hora-e-a-vez-de-augusto-matraga. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7