Romanceiro da Inconfidência
![Romanceiro da Inconfidência, 1953 [Obra]](http://d3swacfcujrr1g.cloudfront.net/img/uploads/2000/01/000183002019.jpg)
Romanceiro da Inconfidência, 1953
Cecília Meireles
Texto
Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles (1901-1964), livro de poemas que efetua um mergulho lírico na história da Conjuração Mineira (1789), é das obras poéticas de maior fôlego na literatura brasileira. Resultado de dez anos de pesquisa sobre o século XVIII no Brasil, o livro registra com exatidão dados e documentos históricos, embora busque uma resposta poética ao “atroz labirinto de esquecimento e cegueira em que amores e ódios vão” (Fala Inicial).
Por um lado, a relação direta com a realidade parece estranha a uma obra centrada na primeira pessoa, como é a poesia de Cecília. Por outro, o interesse pela cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, dá-se na esteira dos esforços modernistas pela recuperação do passado nacional. Em 1951, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dedica uma seção de seu Claro Enigma às cidades históricas mineiras. Em 1954, Murilo Mendes (1901-1975) lança Contemplação de Ouro Preto.
O projeto do livro nasce quando Cecília é enviada à cidade como jornalista para acompanhar as festividades da Semana Santa. No contato com Ouro Preto, é tocada pelas projeções da antiga Vila Rica e seu passado histórico – decide, então, obedecer a “esse apelo dos meus fantasmas”, em suas próprias palavras. Inicialmente pensado como obra dramática, encontra a forma definitiva no romanceiro, conjunto de poemas curtos de origem popular. Utilizando principalmente a redondilha maior (verso de sete sílabas) e um esquema livre de rimas, as composições combinam os registros épico (narração dos fatos), dramático (presença de vozes de personagens) e lírico (reflexões da primeira pessoa). Com isso, Cecília assegura três de suas intenções: reconstituir cenas com liberdade, mas preservando a informação histórica; apropriar-se de estilos da época (em alguns poemas há ecos, por exemplo, das liras de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), um de seus personagens); e, finalmente, “preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda”.
O tratamento dado aos documentos históricos produz efeito contundente: os personagens, retratados em detalhes comoventes e humanizantes, aproximam-se do leitor, suspendendo o longo período que os separa no tempo. É o caso das esporas que Gonzaga deixa na fortaleza da ilha das Cobras, quando sai da prisão em direção à África, para cumprir o degredo a que é condenado pela participação na Inconfidência. O simples objeto desperta críticas à condenação, que põe fim a sonhos e aspirações de poetas (“que isso de amores de poetas / são tudo aéreas palavras…”, Romance LXVI).
A denúncia de injustiça estende-se a todos os setores da sociedade, que tem sua formação também retratada no livro. Emprega-se em múltiplos contextos a referência ao ouro que permite o enriquecimento da região. No Romance I, ele é objeto de busca de “homens alucinados”; no IV, matéria-prima de um punhal usado por um pai para assassinar a filha (nesse caso, recriação de fato verídico). Entre outros aproveitamentos, destaca-se o do metal como símbolo da ganância permanente (“Que a sede de ouro é sem cura, / e, por ela subjugados, / os homens matam-se e morrem, / ficam mortos, mas não fartos”, Romance I), que tem como consequência a desigualdade e a exploração brutal do trabalho escravo (“Morre-se de febre e fome / sobre a riqueza da terra”, Romance II).
Ainda que objetive reconstituir a história da Inconfidência Mineira em seus múltiplos aspectos, o poema se interessa pelos injustiçados e oprimidos. “E assim me acenam por todos os lados. / Porque a voz que tiveram ficou presa / na sentença dos homens e dos fados”, canta o sujeito que é, ao mesmo tempo, o eu lírico e narrador. A visão, no entanto, nada tem de maniqueísta; até mesmo a rainha dona Maria I, responsável pela condenação dos inconfidentes, surge em sua dimensão humana. No Romance LXXIV, ou “Da Rainha Prisioneira”, lê-se:
[...] jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo luzeiro...
Prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...
Os exemplos mencionados dão indícios da organização da obra. Pode-se dividir o Romanceiro em três partes, com progressão narrativa: a formação de Ouro Preto e os antecedentes da Inconfidência; os eventos diretamente relacionados ao movimento, incluindo retratos dos envolvidos e de suas possíveis motivações; e as consequências da Conjuração, com o enforcamento de Tiradentes, a sentença de morte comutada em degredo para os demais acusados e a solidão das mulheres dos exilados.
A organização é sustentada pela existência de dois tipos de composição além do romance: os cenários e as falas, que comentam a narrativa, unem-se e abrem espaço para a reflexão poética. De modo simplificado, pode-se dizer que o cenário corresponde a uma marcação dramática, localizando e ambientando os eventos.
Pelo apuro formal, o rigor no tratamento da matéria histórica, a relevância do tema para a história do Brasil e os momentos de lirismo, o livro é saudado como obra-prima de Cecília Meireles. “Eis, no melhor sentido, uma amostra da poesia social de alta categoria”, escreve Murilo Mendes em 1953.
Mais recentemente, a crítica empenha-se em demonstrar como essa poesia social também é lírica, pois não se limita ao registro histórico. Ao tratar do drama humano implicado na Conjuração Mineira, o Romanceiro da Inconfidência questiona a fragilidade do destino humano e as contingências e aspirações que o determinam. Daí o tom interrogativo em seu fecho:
Quais os que tombam,
em crime exaustos,
quais os que sobem,
purificados?.
Fontes de pesquisa 9
- AYALA, Walmir. Cecília Meireles – obra completa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 nov. 1958. Suplemento Dominical.
- BOSI, Alfredo. Em torno da poesia de Cecília Meireles. In: GOUVÊA, Leila V. B. (Org.). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007. p. 13-32
- GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Roteiro de leitura: Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. São Paulo: Ática, 1998.
- GOUVÊA, Leila V. B. (Org.). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007.
- GOUVÊA, Leila V. B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São Paulo: Edusp, 2008.
- MANNA, Lucia H. S. Pelas trilhas do Romanceiro da Inconfidência. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1985.
- MEIRELES, Cecília. Como escrevi Romanceiro da Inconfidência. In: MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
- MENDES, Murilo. A poesia social. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958. p. LXV-LXVII
- MONTEIRO, Adolfo Casais. Cecília Meireles. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 jun. 1957. Suplemento Dominical.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
ROMANCEIRO da Inconfidência.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra6408/romanceiro-da-inconfidencia. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7