Teatro Popular do Nordeste (TPN)
Texto
Histórico
Liderado por Hermilo Borba Filho, o Teatro Popular do Nordeste se constitui sobre duas diretrizes: a busca por uma maneira nordestina de interpretar e de encenar, e a determinação de oferecer ao público recifense um teatro profissional pautado pela qualidade artística.
Ao lado de Hermilo Borba Filho, outros quatro ex-integrantes do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), Ariano Suassuna, Gastão de Holanda, José de Moraes Pinho e o músico Capiba, figuram entre os sócios fundadores do Teatro Popular do Nordeste (TPN). Além deles, José Carlos Cavalcanti Borges, autor influenciado pelos ideais renovadores do TEP, a atriz Leda Alves e o dramaturgo Aldomar Conrado, estes dois, na época, alunos do curso de teatro da Universidade do Recife.
Se nos anos 1940 o TEP estimula o surgimento de uma dramaturgia moderna centrada nos temas e nos mitos da cultura local, nos anos 1960 o TPN ambiciona criar um "espetáculo nordestino". Nesse empenho, Hermilo Borba Filho aprofunda seus estudos sobre as manifestações dramáticas espontâneas do povo do Nordeste, em especial o bumba-meu-boi e o mamulengo, tomando-as como principal fonte de inspiração, não somente para o ator, mas também para o encenador.
Não por acaso, uma interpretação erudita da arte popular do mamulengo é a matéria-prima central do primeiro espetáculo montado pelo grupo, A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna, que estreia em fevereiro de 1960, no Teatro do Parque. Mas já na montagem seguinte, A Mandrágora, de Maquiavel, no mesmo ano, o TPN evidencia uma compreensão de "teatro popular" não necessariamente restrita à questão da cultura regional. Com manifesta influência do Théâtre National Populaire [Teatro Nacional Popular], de Jean Vilar, Hermilo Borba e seus companheiros reverenciam os clássicos da dramaturgia ocidental, enxergando nessas obras uma grande capacidade de "penetração popular". Em paralelo, como no tempo do TEP, não se esquecem de prestigiar os autores nacionais, em especial os nordestinos.
Na prática, a literatura dramática, sobretudo aquela de qualidade amplamente reconhecida, torna-se o elemento primordial em todos os espetáculos produzidos pelo TPN. O apego ao texto faz com que Hermilo, invariavelmente, dedique mais da metade do tempo de preparação de cada montagem a leituras de mesa.1 Eis, então, o maior desafio do projeto estético do grupo: inspirar-se nos brincantes nordestinos, cuja arte é predominantemente marcada pelo improviso, para encenar obras de alto valor literário.
No campo ideológico, o posicionamento do TPN não era menos complexo. No tenso ambiente político que antecede o golpe militar de 1964, o Manifesto de Fundação do grupo, somente elaborado em 1961, anuncia oposição tanto ao Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), quanto ao Teatro de Cultura Popular (TCP). "Acreditamos que a arte não deve ser nem gratuita nem alistada: ela deve ser comprometida, isto é, deve manter um fecundo intercâmbio com a realidade, ser porta-voz da coletividade e do indivíduo, em consonância com o espírito profundo de nosso povo".2 Tal postura logo predispõe Hermilo Borba Filho e seus companheiros contra setores mais conservadores da direita e, simultaneamente, contra setores mais aguerridos da esquerda.
À semelhança do TEP, o TPN preconiza a necessidade de levar um teatro de qualidade às camadas socialmente menos favorecidas. Nos três primeiros anos de atividades, um convênio com a Fundação da Promoção Social - entidade ligada ao Governo do Estado -, viabiliza a apresentação do grupo não somente em diversos centros operários, mas também em outros espaços alternativos, como escolas e praças da periferia do Recife. Por trás desse apoio, o interesse do governo, então alinhado às forças de direita, é competir com o Movimento de Cultura Popular (MCP), promovido pela Prefeitura do Recife, no comando de Miguel Arraes, político apoiado pelas forças de esquerda. Essa disputa chega ao ápice em abril de 1962, quando Hermilo Borba Filho estreia A Bomba da Paz, farsa política de sua autoria, escrita com a franca intenção de ridicularizar o MCP - embora também retratasse de modo caricatural os representantes dos setores mais reacionários da sociedade.
Depois do sucesso de A Pena e a Lei, as duas produções seguintes, A Mandrágora, em 1960, e O Processo do Diabo, em 1961, deixam praticamente vazias as quase mil poltronas do Teatro do Parque. Com A Bomba da Paz, em 1962, o TPN transfere-se para o Teatro de Arena do Recife, pequena sala de espetáculos fundada por Hermilo Borba Filho, dois anos antes, em sociedade com Alfredo de Oliveira, irmão de Valdemar de Oliveira, líder do TAP. Nesse novo endereço, estreia, ainda no primeiro semestre de 1962, a comédia Município de São Silvestre, de Aristóteles Soares, dirigida por José Pimentel. Pela primeira vez, uma produção do grupo sobe ao palco sem a assinatura do encenador Hermilo Borba Filho.
Somente em julho de 1966, o TPN volta à cena, com a montagem de O Inspetor, de Nikolai Gogol, inaugurando a própria casa de espetáculos, um teatro à italiana, capaz de acomodar cerca de cem espectadores. Inicia-se, então, a fase mais produtiva do grupo. Nos cinco anos seguintes, o conjunto põe em cena 14 espetáculos, 11 para o público adulto e 3 para o público infantil, sempre com a orientação de Hermilo Borba Filho, mesmo quando outros encenadores, como Rubens Teixeira, Benjamim Santos, Rubem Rocha Filho ou José Pimentel, assumem o comando imediato de alguma montagem.
No convívio com artistas populares de sua região, alguns deles convidados a participar dos ensaios do TPN, Hermilo Borba Filho constata que os principais traços do teatro épico brechtiano estão, há muito tempo, presentes na arte dos brincantes nordestinos. "Meus atores não agirão como médiuns de sessões espíritas, deixando-se tomar pelo personagem. Não. Eles brincarão (no sentido do jogo medieval e dos folguedos populares), criticarão permanentemente o personagem, criarão o processo de afastamento e desinibirão o público",3 diz ele, na ocasião da estreia de O Inspetor.
A inauguração da sede do TPN coincide com o afastamento de Ariano Suassuna do convívio mais íntimo do grupo. Embora Hermilo Borba Filho afirme reiteradamente que o caráter épico de seu teatro advém, sobretudo, dos espetáculos populares do Nordeste, e não das prescrições brechtianas, Ariano justifica sua retirada do grupo da seguinte forma: "[...] nesse segundo momento os integrantes do TPN, apesar de que continuavam a falar como a gente sempre tinha falado, na importância do teatro popular, tinha também, ao lado disso, uma aproximação com Brecht que a mim parecia prejudicial ao teatro brasileiro, como eu sonhava".4
Passados os primeiros momentos da tomada de poder pelos militares, o TPN acolhe vários ex-integrantes do MCP, superando divergências pontuais em nome da resistência ao autoritarismo imposto pelo novo regime. A partir daí, críticas ao governo permeiam, cada vez mais, as montagens do grupo. Esse caráter contestatório ganha mais expressão em peças como Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen; O Santo Inquérito, de Dias Gomes; Antígona, de Sófocles; Andorra, de Max Frisch; ou Dom Quixote, de Antônio José, o Judeu. Em todos esses espetáculos, porém, a mensagem política não ofusca a investigação estética.
Naturalmente, com o recrudescimento da perseguição política após a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, os apoios se tornam mais escassos, e os problemas financeiros se avolumam a cada nova temporada. Porém, mesmo diante das maiores dificuldades, o grupo persegue certo ideal de profissionalismo: todos os integrantes, independentemente da função que exercem ou do papel que desempenham, são remunerados com o mesmo cachê - na realidade, quase sempre um valor simbólico.
Em 1970, após a temporada de BUUUM, espetáculo composto de duas peças: Auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins, e Enquanto Não Arrebenta a Derradeira Explosão, de José Bezerra Filho, o TPN se vê obrigado a fechar as portas de sua sede. O Recife perde mais do que um teatro, um efervescente polo de agitação político-cultural, abrigo de importantes cursos, palestras, exposições, lançamentos de livros e concertos.
Com a saúde debilitada, Hermilo Borba Filho praticamente encerra suas atividades teatrais. Em 1975, meses antes de morrer, ele ainda tenta reativar o TPN, com uma remontagem de A Caseira e a Catarina, de Ariano Suassuna. Logo após a estreia, que acontece em Maceió, os problemas cardíacos de Hermilo se agravam e o projeto é interrompido.
Em uma de suas últimas entrevistas, Hermilo Borba Filho assim resume a importância do seu TPN: "O grupo passou a estudar danadamente todos os espetáculos dramáticos populares da região, com todas as suas marcas de distanciamento, anti-ilusionismo, crítica, didática, etc. Formou um repertório constituído de autores estrangeiros como Gogol, Ibsen, Sófocles, Antônio José, o Judeu; e de nacionais como Ariano Suassuna, Sylvio Rabello, Osman Lins, eu mesmo, José Bezerra Filho, Dias Gomes e a esse repertório aplicou o sentido popular de todos os espetáculos populares vistos e estudados, dando ênfase ao despojamento, à máscara, à quebra de ilusão, à improvisação, à roupa. Não creio que nenhum outro grupo do Brasil tenha feito experiência igual a esta. Só que o TPN realizou-se na província, tendo obtido quarenta por cento daquilo a que se propunha e realizava, quando teve de fechar suas portas por absoluta falta de meios".5
Notas
1. Cf. REIS, Carlos. Hermilo Borba Filho: líder e encenador. In: BORBA FILHO, Hermilo. Diálogo do encenador - Teatro do povo, Mise-en-scène e A donzela Joana. Prefácio Luís Augusto Reis. Recife: Edições Bagaço: Editora Massangana, 2005. p. 14.
2. Manifesto de lançamento do Teatro Popular do Nordeste. In: MAURÍCIO, Ivan et al (orgs). Hermilo vivo - vida e obra de Hermilo Borba Filho. Recife: Comunicarte, 1981.
3. Texto escrito por Hermilo Borba Filho na ocasião da estreia do espetáculo O inspetor, na inauguração da sede do Teatro Popular do Nordeste. Original datilografado, pertencente ao arquivo pessoal do autor.
4. SUASSUNA, Ariano. In: BACCARELLI, Milton. O teatro em Pernambuco: trocando a máscara. Prefácio de José Mário Austregésilo. Recife: Fundarpe, 1994., p. 36.
5. BORBA FILHO, Hermilo. Cultura popular ou barriga cheia. In: MAURÍCIO, Ivan. et al (orgs). Arte popular e dominação: o caso de Pernambuco - 1961/77. Recife: Editora Alternativa.
Espetáculos 2
Fontes de pesquisa 6
- BACCARELLI, Milton J. Trocando a Máscara... - 20 anos de Teatro em Pernambuco. Recife: Fundarpe, 1994.
- CADENGUE, Antonio Edson. TAP: sua cena & sua sombra (O Teatro de Amadores de Pernambuco: 1948-1991). 1991. 769 f. Tese (Doutorado em Artes-Teatro) - Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 3v.
- CARVALHEIRA, Luiz Maurício. Por um teatro do povo e da terra: Hermilo Borba Filho e o Teatro do Estudante de Pernambuco. Prefácio de Maximiniano Campos. Recife: Fundarpe, 1986. 212 p.
- FERRAZ, Leidson (Org.). Memórias da cena pernambucana 02. Recife: Funcultura, 2006. p. 58-80
- PONTES, Joel. O teatro moderno em Pernambuco. São Paulo: DESA / São Paulo Editora S. A., 1966. 157 p.
- REIS, Luís Augusto. Fora de cena, no palco da modernidade: um estudo do pensamento teatral de Hermilo Borba Filho. 457 f. Tese (Doutorado em Letras/Teoria da Literatura) Departamento de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
TEATRO Popular do Nordeste (TPN).
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/grupo404786/teatro-popular-do-nordeste-tpn. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7