Vereda da Salvação
Texto
Histórico
Vereda da Salvação é uma peça teatral escrita pelo dramaturgo Jorge Andrade (1922-1984) e encenada pela primeira vez, em 1964, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, sob direção de Antunes Filho (1929). Quase três décadas depois, o diretor revisita a obra: a remontagem estreia em dezembro de 1993, no Teatro Sesc Anchieta, na capital paulista.
O texto, baseado em evento verídico de 1955, ocorrido em uma fazenda no interior de Minas Gerais, narra a tragédia de um grupo de agricultores em busca de melhores condições de vida, guiados e iludidos por um líder religioso carismático.
A obra de Andrade faz uma crítica veemente à falta de liberdade e de igualdade na sociedade brasileira da época e denuncia os problemas agrários e o fenômeno do messianismo religioso. No enredo, sem perspectiva de melhoria de vida e na esperança de salvação, agricultores rendem-se à fé e sacrificam quatro crianças, segundo eles, possuídas pelo demônio. Ao descobrir o crime, a polícia intervém e segue-se um conflito sangrento.
Como escreve o pesquisador e filósofo Mario Guidarini, a peça:
denuncia e critica a prática social injusta, onde os direitos dos meeiros são descurados, onde o “Cristo das Roça” manipula as consciências indefesas de seus seguidores para que o acolham como líder religioso. Promete salvá-los da opressão social e cultural a que estavam submetidos. No entanto, no lugar de uni-los em protestos úteis contra a mentira social, prega o escapismo utópico duma fé ingênua.
Jorge Andrade escreve a peça em 1958, com base no contato e em conversas com trabalhadores da fazenda de seu pai. No livro Marta e a Árvore e e o Relógio, ele afirma: “antes de ser um ato longínquo ao meu mundo, está profundamente enraizada em minha memória. Suas personagens fazem parte da mesma paisagem social, da mesma realidade política e econômica a que todos pertencemos. E eu em particular”.
Em 1993, Antunes Filho retoma o texto e escala a atriz Laura Cardoso (1927) e o ator Luís Melo (1957) para os papéis principais. A nova montagem é feita pelo Centro de Pesquisas Teatrais (CPT). O diretor está engajado em fortalecer o teatro crítico brasileiro que, de acordo com ele, perde espaço para um teatro esvaziado de sentido: “Estou espantado com a atual alienação do teatro, só fazem comédias de costumes comerciais ou espetáculos masturbatórios, de um misticismo barato. O teatro virou uma coisa ornamental”.1 A crítica desperta a fúria de jovens diretores, como Bia Lessa (1958) e Gerald Thomas (1954).
Em matéria publicada no Jornal do Brasil, em 30 de novembro de 1993, o jornalista Roberto Comodo explica que, três décadas depois da primeira versão, Antunes faz de Vereda da Salvação um “resgate da cidadania e uma alegria infantil soterrada na miséria, mas incorporada pelo messianismo popular”.2
Na nova encenação, o diretor adapta a história à situação social do Brasil dos anos 1990. Se, em 1964, os trabalhadores rurais sem-terra eram massacrados na história de Jorge Andrade, a atualização do texto inclui os indígenas, os moradores e os presidiários entre os oprimidos.
À luz dessa revisão de Antunes Filho, o jornalista e escritor Gilberto Dimenstein (1956), em texto publicado no programa do espetáculo, pontua: “É como se fôssemos vítimas de uma maldição política. A incapacidade de sairmos de uma deterioração que se avoluma. Uma sociedade que, ao perder a razão, consegue enxergar fanaticamente na violência não a concepção da morte. Mas da vida”.3
No livro Hierofonia, do crítico e pesquisador Sebastião Milaré (1945-2014), o diretor esclarece que, em 1993, Vereda da Salvação propõe rever um fato 30 anos depois do primeiro olhar. E o resultado, afirma Antunes, reflete a ideologia com a qual ele interpreta os problemas sociais do Brasil. “Acho que tenho mais sabedoria para ver essa pobre gente”, explica o diretor, para quem o comportamento dos personagens está justificado como um “movimento messiânico”. “Foram conduzidos a isso. Não tinham saída”.
Sebastião Milaré lembra que a cenografia do espetáculo, assinada por J. C. Serroni (1950), reproduz esse olhar de Antunes de forma emblemática. Os atores são estimulados a expressar as emoções por meio de um corpo livre e gestos amplos em um cenário naturalista com troncos fixos que cruzam o cenário verticalmente. O diretor também se utiliza de marcas simbólicas, como na abertura da peça, com “20 defuntos, cada qual em um caixão, de pé, em linha reta, fechando a boca da cena” – alusão às chacinas no Brasil. Notícias contemporâneas de rádio, que falam sobre a violência no país, também são utilizadas e reforçam a crítica social e o diálogo com a realidade.
As interpretações de Laura Cardoso e Luís Melo são consideradas pelos críticos como trunfos do espetáculo. Melo imprime um ar de tragédia nacional ao personagem Joaquim, na opinião de Macksen Luiz (1945):
“O ator se parece a uma estranha mistura de líder messiânico enlouquecido com um frágil homem miserável que vai construindo sua alienação por não mais suportar o que não consegue mudar”. Laura Cardoso, como Dolor, “tem uma máscara que dá força e ao mesmo tempo sutileza à uma mulher ciente da realidade sofrida, mas desencorajada de se matar”.
Vereda da Salvação torna-se um dos principais espetáculos do teatro brasileiro, pela força da dramaturgia, pela relevância que imprime à trajetória de Antunes Filho e pelo marcante encontro em cena de Laura Cardoso e Luís Melo. A montagem é reconhecida com o troféu Mambembe, concedido ao diretor, e os prêmios da Associação Paulista de Críticos de Artes (Apca) e Shell, dedicados ao cenógrafo.
Notas
1. COMODO, Roberto. Teatro sem ornamentos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 ago. 1993.
2. Idem
3. VEREDA DA SALVAÇÃO. Direção Antunes Filho. São Paulo, 1993. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Sesc Anchieta em dezembro de 1993.
Ficha Técnica
Jorge Andrade
Direção
Antunes Filho (Troféu Mambembe)
Cenografia
J. C. Serroni (Prêmios Associação Paulista de Críticos de Artes - APCA; Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo - Apetesp e Shell)
Figurino
J. C. Serroni (Prêmio Apetesp)
Iluminação
Davi de Brito
Elenco
Andréa Rodrigues / Eva
Angela Banhoz / Artuliana
Dionísio Neto
Geraldo Mario / 1º Homem
Gustavo Bayer / Onofre
Helio Cicero / Geraldo
Joice Aparecida / Jovina
José D'Angelo / Pedro
Laudo Olavo Dalri / 2º Homem
Laura Cardoso / Dolor
Lázara Seugling / 2º Mulher
Luís Melo / Joaquim
Nelson Alexandre / 4º Homem
Raquel Anastásia / Durvalina
Renata Jesion / 1ª Mulher
Roberto Audio / 5º Homem
Rogério F. da Costa / 6º Homem
Rosane Bonaparte / Conceição
Sandra Correa / Ana
Sueli Penha / Germana
Vanusa Ferlin / Daluz
Walter Portella / Manoel
Wilson Rocha / 3º Homem
Espetáculos 1
Fontes de pesquisa 7
- ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.
- COMODO, Roberto. O retorno de Antunes aos palcos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 nov. 1993.
- GUIDARINI, Mário. Os excluídos em As Confrarias de Jorge Andrade. Crítica Cultural, Santa Catarina, v. 1, n. 1, p. 1-7, jan./ jun. 2006. Disponível em: < http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Critica_Cultural/article/view/81/88 >. Acesso em: 05 maio 2017.
- LEKS, Julia. Laura Cardoso: contadora de histórias. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. (Série Aplauso Perfil).
- MILARÉ, Sebastião. Antunes Filho e a dimensão utópica. São Paulo: Perspectiva, 1996.
- MILARÉ, Sebastião. Hierofonia: o teatro segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições Sesc, 2010.
- VEREDA DA SALVAÇÃO. Direção Antunes Filho. São Paulo, 1993. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Sesc Anchieta em dezembro de 1993.
Como citar
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VEREDA da Salvação.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/evento392126/vereda-da-salvacao. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7