Isael Maxakali
Texto
Isael Maxakali (Santa Helena de Minas, Minas Gerais, 1978). Professor, artista, cineasta. Sua arte e pedagogia buscam resgatar a memória e contribuir na luta por melhores condições de vida para o seu povo, tikmũ’ũn, mais conhecido como maxakali.
Desde a infância, é iniciado na escuta das histórias e cantos dos yãmĩyxop [espíritos]. Casa-se, em 1993, com a também professora, artista e cineasta Sueli Maxakali (1976), com quem compartilha a produção da maior parte de seus trabalhos. Poucos anos mais tarde, assume a kuxex [casa dos cantos], antes sob o cuidado de seu avô, o pajé Otávio. Torna-se, assim, uma jovem liderança espiritual e política de seu povo, responsável por diversos rituais e ações militantes na luta por direitos.
Entra em contato com o cinema antes mesmo de aprender português, de modo que a arte atravessa todo o seu processo de conhecimento de outras culturas. Inicialmente, chama sua atenção o contato com outras produções indígenas. Em 2004, tem sua primeira experiência com a produção audiovisual em uma oficina oferecida pelo Festival do Filme Documentário e Etnográfico (forumdoc.bh) e sob instrução do cineasta xavante Divino Tserewahú (1974).
Neste evento, entra em contato com realizadores e antropólogos não indígenas fundamentais para parcerias que atravessam toda sua filmografia. Seu primeiro curta-metragem, Tatakox (2007), conta com a colaboração de antropólogos brancos e sua parceira, Sueli. O filme é apresentado no fórumdoc.bh e alcança destaque ao obter o Prêmio Glauber Rocha.
Este trabalho inaugural já apresenta um tema central de sua filmografia: os yãi hã mĩy. Esse termo é frequentemente traduzido como ritual, mas sua etimologia mais precisa remete a “produzir transformação”1.
No curta, filmado na Aldeia Verde, em Ladainha, Minas Gerais, o cineasta registra um ritual de iniciação espiritual e aprendizagem próprio da infância. Mostram-se os meninos, que assumem o estado de “crianças-mortas-espírito” e são trazidos pelo grupo de “lagartas-espírito”. Essas crianças são levadas às mães, que choram ao lembrar de seus próprios filhos falecidos. Trata-se, assim, de um evento tanto de transformação como de memória.
Desde o início, o desejo de um fazer coletivo, com compartilhamento da autoria e com as necessárias negociações, alianças e embates que esse gesto pressupõe, torna-se uma marca fundamental de seu cinema. Em 2008, funda a produtora Pajé Filmes, dedicada à produção cinematográfica do povo Maxakali.
Em 2020, durante a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Isael é premiado com o filme Yãmĩyhex: as mulheres-espírito (2019), codirigido com Sueli Maxakali. Como nos seus demais filmes, percebe-se o uso expressivo de planos-sequência em jogos de aproximação e distanciamento. Ora se aproxima do ritual, ao entrar no ritmo do coletivo e se mover junto com ele, ora se afasta para atingir a distância necessária para observar o todo. Esse modo de agir íntimo e participativo leva pesquisadores a caracterizarem sua produção como “filmes-rituais”2.
A cinematografia do Maxakali não se propõe a uma abordagem informativa ou analítica diante da comunidade filmada, assumindo uma ética da opacidade3. Propõe-se uma experiência de aproximação sensível de seu povo e se respeita o direito de resguardar certas situações que devem permanecer restritas a quem participa do convívio. Em Tatakox, por exemplo, quando as crianças entram na casa dos cantos, a câmera permanece ao longe, resguardando camadas de segredo do ritual. O cinema de Isael aponta para a forte presença dos cantos, que carregam em sua materialidade os espíritos audíveis, porém invisíveis.
É comum perceber planos em que poucas ações acontecem, convocando o espectador a se concentrar na escuta e abrir sua imaginação ao invisível.
Nos momentos em que a câmera se afasta dos rituais, é comum verificar comentários do cineasta em off4, apresentando informações e impressões em primeira pessoa. Esse procedimento revela uma proximidade, por exemplo, com estratégias reflexivas de cineastas modernos como o francês Jean Rouch (1917-2004). O pesquisador André Brasil (1969), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca essas relações para desfazer uma perspectiva essencializante dos cinemas indígenas, como se inventassem uma linguagem totalmente à parte das demais tradições cinematográficas.
Em 2020, Isael é consagrado também por suas fotografias e desenhos ao vencer o Prêmio PIPA, dedicado à arte contemporânea brasileira. No começo dos anos 2000, passa a utilizar principalmente a aquarela para desenhar paisagens, fauna, flora, espíritos e pessoas que perpassam a vida nas aldeias. Em 2011, gradua-se no curso de formação de educadores indígenas na UFMG. É em contato com esta extensão universitária que passa a expor os seus desenhos fora da aldeia. Durante a formação, junto com sua companheira, organizou o livro Hitupmã’ax: curar (2008), o qual também ilustra.
Durante o processo de voto popular para o Prêmio PIPA, o casal Maxakali se muda emergencialmente, com mais de cem famílias, para uma região mais próxima do Rio Mucuri, Minas Gerais, onde passam a viver em condições mais dignas. Lá criam a Aldeia Nova, onde fundam a Escola-Floresta. O projeto se define como campo transversal de conservação ambiental, preservação da memória e ensino das culturas indígenas e de seus fazeres artísticos.
No trânsito entre memória e invenção, a trajetória de Isael Maxakali conjuga espiritualidade, pedagogia, arte e militância. Ao apresentar as suas estéticas e cosmologias ancestrais ao público não-indígena, destaca-se como importante mediador intercultural na defesa dos direitos indígenas.
Notas
1. A explicação do significado do termo é da pesquisadora Rosângela Pereira de Tugny. Uma versão didática está disponível na entrevista sobre a cultura Maxakali que integra a série As vozes dos artistas, promovida pela 34ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y7W8bqbpA-4&ab_channel=BienaldeS%C3%A3oPaulo. Acesso em: 15 abr. 2022.
2. O termo tem sido utilizado por diversos críticos e pesquisadores. Um dos mais conhecidos é o pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) André Brasil (1969). Ver BRASIL, André. O cinema-lagarta dos Tikmũ’ũn: teoria-prática das imagens xamânicas. Intexto, Porto Alegre, n. 48, p. 157-175, jan./abr. 2020.
3. O conceito de opacidade é criado com o intuito de pensar modos de se relacionar que abarquem a impossibilidade de um conhecimento totalizante e escapem do princípio de esclarecimento, próprio do pensamento moderno ocidental. É extraído principalmente das obras O discurso antilhano, de 1981, e Philosophie de la Relation, de 2010, do escritor martinicano Édouard Glissant (1928-2011) e tem sido utilizado por pensadores e artistas brasileiros contemporâneos implicados com o pensamento decolonial, como Jota Mombaça (1991). A noção de opacidade mobilizou a curadoria de um dos mais importantes encontros mundiais dedicados à reflexão sobre documentário, o Flaherty Seminar, realizado nos Estados Unidos, em 2021, que contou com filmes de Isael Maxakali.
4. Quando a voz integra a cena sem que o sujeito que fala apareça em quadro.
Exposições 3
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22/5/2019 - 29/7/2019
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4/9/2021 - 28/11/2021
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20/10/2024 - 25/2/2023
Fontes de pesquisa 12
- BERBERT, Paula; ROMERO, Roberto. Isael e Sueli Maxakali. BDMG Cultural, Minas Gerais, 4 nov. 2020. Disponível em: https://bdmgcultural.mg.gov.br/artigos/isael-e-sueli-maxakali/. Acesso em: 15 abr. 2022.
- BERGAMASCHI, Bárbara; GOMES, Juliano; GUIMARÃES, Victor; PORTUGAL, Aline. Insistir na opacidade: reverberações a partir do Seminário Flaherty 2021. Revista Cinética, 18 ago. 2021. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/nova/flaherty-2021-opacidade/#:~:text=Insistir%20na%20opacidade%3A%20reverbera%C3%A7%C3%B5es%20a%20partir%20do%20Semin%C3%A1rio%20Flaherty%202021,-18%20de%20agosto&text=O%20di%C3%A1logo%20a%20seguir%20busca,9%20e%2017%20de%20julho. Acesso em: 2 maio 2022.
- BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. Caçando a capivara: com o cinema-morcego dos Tikmũ’ũn. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 140-153, 2016.
- BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo em filmes indígenas. Revista de Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, 2016.
- BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. O cinema-lagarta dos Tikmũ’ũn: teoria-prática das imagens xamânicas. Intexto, Porto Alegre, n. 48, p. 157-175, jan./abr. 2020.
- DEPOIMENTO/TESTIMONY Rosângela Pereira de Tugny. Produção: Fundação Bienal de São Paulo, nov. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y7W8bqbpA-4&ab_channel=BienaldeS%C3%A3oPaulo. Acesso em: 15 abr. 2022.
- ISAEL Maxakali. Prêmio PIPA, [Rio de Janeiro], 2020. Disponível em: https://www.premiopipa.com/isael-maxakali/. Acesso: 27 maio 2020.
- LUIZ Camillo Osorio conversa com Isael Maxakali. Prêmio PIPA, 27 nov. 2020. Disponível em: https://www.premiopipa.com/2020/11/luiz-camillo-osorio-conversa-com-isael-maxakali/. Acesso em: 15 abr. 2022.
- MAIA, Marta Regina; ANDRADE, Andriza Maria Teodolino de. O cinema Maxakali: a narrativa audiovisual como ação política. Revista Mídia e Cotidiano, v. 12, n. 1, p. 93-108, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.22409/ppgmc.v12i1.9864. Acesso em: 6 abr. 2022.
- MAXAKALI, Isael; MAXAKALI, Sueli. Kõnãg kox me mõg: seguir o caminho do rio: a saga de um povo em busca de água e terra. Revista Piauí, n. 181, out. 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/ko%CC%83na%CC%83g-kox-me-mo%CC%83g-seguir-o-caminho-do-rio/. Acesso em: 6 abr. 2022.
- MOQUÉM_Surarî: arte indígena contemporânea. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2021. Disponivel em: https://mam.org.br/exposicao/moquem_surari-arte-indigena-contemporanea/. Acesso em: 23 ago. 2021.
- TUGNY, Rosângela; BELISÁRIO, Bernard. Cantos, luto e resistência Tikmũ’ũn (Maxakali) no filme GRIN (2016). In: CESAR, Amaranta; MARQUES, Ana Rosa; PIMENTA, Fernanda; COSTA, Leonardo (Eds.). Desaguar em cinema: documentário, memória e ação com o CachoeiraDoc. Salvador: EDUFBA, 2020.
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ISAEL Maxakali.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa493413/isael-maxakali. Acesso em: 04 de maio de 2025.
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