José Carlos Burle
Texto
Biografia
José Carlos Queiroz Burle (Recife, Pernambuco, 1910 - Atibaia, São Paulo, 1983). Diretor, produtor, roteirista e compositor. Filho de uma tradicional família pernambucana de usineiros, ingressa em 1928 na Faculdade de Medicina de Recife para logo em seguida, em 1930, durante as agitações getulistas,1 transferir-se para a Faculdade da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, onde se forma em 1934. Os anos de faculdade na capital são regados a noites de boemia nos cabarés da Lapa. Burle entra em contato com importantes sambistas do período e consolida certa veia artística, já prenunciada na juventude em seus tempos de Rádio Clube do Recife. Assim, depois de um breve retorno à casa dos pais, se estabelece definitivamente no Rio de Janeiro em 1936, não tanto pelo interesse na carreira médica, que nunca exerceu, mas pela oportunidade de escrever crônicas para o Jornal do Brasil, especialmente sobre a música e o universo do rádio.
Cada vez mais conhecido dos artistas cariocas, Burle é convidado, no mesmo ano, para uma audição de suas composições na prestigiosa Sociedade de Cultura Musical. A repercussão é excelente. Por conta dela, recebe um convite para ser o diretor musical do filme Maria Bonita (1937). Embora a produção seja um fracasso em todos os sentidos, sua atuação no longa vai além da direção musical, acumulando as funções de assistente de direção e até mesmo de ator. É também nas filmagens de Maria Bonita que Burle conhece o engenheiro de som Moacyr Fenelon (1903-1953), criando o que viria a ser uma das principais parcerias do cinema brasileiro. Burle e Fenelon fundam uma produtora. No dia 20 de setembro de 1941, o Diário Oficial da União anuncia o estatuto da Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil. No ano seguinte, é iniciada a produção de Moleque Tião (1943), primeiro filme de ficção da companhia, dirigido por Burle.
Burle está à frente de alguns dos títulos mais importantes da Atlântida, tais como Tristezas Não Pagam Dívidas (1944); Luz dos Meus Olhos (1947); Também Somos Irmãos (1950) e Carnaval Atlântida (1953). Após afastar-se da companhia, produz e dirige de forma independente, primeiro na Multifilmes, em São Paulo, depois se associando a outros produtores independentes e antigos parceiros, como Anselmo Duarte (1920-2009), em Depois Eu Conto (1956); e Silveira Sampaio (1914-1964), em Quem Roubou Meu Samba (1959). Em 1964, dirige seu último filme, Terra Sem Deus. Afasta-se do cinema indo viver em Atibaia, São Paulo.
Comentário crítico
Na madrugada do dia 2 de novembro de 1952 um incêndio destrói a sede da Atlântida Cinematográfica, consumindo boa parte dos negativos e das cópias dos filmes produzidos nos primeiros dez anos da companhia. Muitos títulos se perdem, dentre eles vários filmes importantes de Burle.
O nome da produtora Atlântida está hoje, pelo menos à primeira vista, intimamente associado ao gênero conhecido como chanchada. Para seus fundadores e idealizadores, no entanto, a coisa é bem diferente. A ambição de Burle, Fenelon e seus pares de “valorizar nossos temas, no que possuímos de mais belo, nos ambientes pictóricos e regionalistas, nos aspectos sociais do brasileiro, na sua história, na sua arte, suas tradições e seus costumes e na psicologia deste homem”,2 certamente não passava pela comédia musical ligeira.
Isso fica claro logo no primeiro longa-metragem de ficção da companhia: Moleque Tião, dirigido por Burle, tem como argumento reportagens feitas para o jornal Última Hora, do jornalista Samuel Wainer (1912-1980), baseadas na biografia do ator Grande Otelo (1915-1993), astro do filme. Ainda que a obra, segundo relatos, já que não restam cópias devido ao incêndio, repita os eternos problemas técnicos do cinema brasileiro, a temática social do enredo, aliada a certo cuidado com a produção, faz com que tanto público quanto crítica a recebam bem, a tal ponto que parte desta última, talvez por uma espécie de “otimismo da vontade”, passa nos anos seguintes a cultivar o mito de que o filme possui traços do neorrealismo italiano”,3 quando o máximo que podemos imaginar são altas doses de melodrama social intermeadas por números musicais.
Em geral, a recepção ao filme permite que a Atlântida dê um passo adiante com É Proibido Sonhar (1944), de Fenelon. Entretanto, a ameaça consumada à contabilidade da empresa obriga Burle, de forma emergencial, a interromper temporariamente a produção de Romance de um Mordedor (1944) - filme que, coerentemente com a proposta da companhia de retratar a psicologia do homem brasileiro, envereda pelo universo do malandro carioca - para antes dirigir a comédia despretensiosa Tristezas Não Pagam Dívidas, do mesmo ano. O sucesso imediato do longa, o primeiro grande sucesso da Atlântida, salva a produtora, mas prescreve a sina de Burle: sonhar com um cinema que incite o incremento moral das massas, mas na prática ser um diretor de comédias que ele, particularmente, considera vulgares.
Burle permanece fiel em espírito ao princípio de Fenelon: “[...] no Brasil o cinema só poderá ser levado a sério quando trabalhar assunto sério”.4 Talvez por isso certa mão pesada, certa falta de ritmo sejam sempre sentidas em suas comédias. De modo que quando as chanchadas são reabilitadas pelos estudos críticos a partir dos anos 1980, o mesmo não acontece em igual medida com Burle. Enquanto Watson Macedo (1918-1981) e Carlos Manga (1928-2015) ganham a fama de criadores inspirados, Burle é lembrado basicamente como o diretor que permite a gênios como Oscarito (1906-1970), Grande Otelo e José Lewgoy (1920-2003) o mérito da criação.
Na época de seu lançamento, as chanchadas da Atlântida são hostilizadas por grande parte da crítica, que só vê espectros de nosso atraso profissional. Um exemplo sintomático: “[...] surge este Carnaval Atlântida que, dadas às circunstâncias, pode bem ser considerado a maior ignomínia produzida neste país. O filme é pior do que tudo o que a própria Atlântida já fez sobre o Carnaval”.5 O texto, evidentemente, é sobre Carnaval Atlântida que, juntamente com Barnabé, Tu És Meu (1952), representa o ponto alto da filmografia de Burle. Após o fracasso dos dramas Também Somos Irmãos (1950) e Maior que o Ódio (1951), Burle se desliga do controle da Atlântida, agora sob as ordens de Severiano Ribeiro (1886-1974), e passa a trabalhar como contratado da companhia. Nesse período, suas comédias são mais soltas, mais livres do compromisso firmado no Manifesto de 1941. Nelas, Burle realiza a transição das antigas chanchadas para o humor mais sofisticado de comédias paródicas, como Nem Sansão, Nem Dalila (1954) ou O Homem do Sputnik (1959), ambas dirigidas depois por Manga na Atlântida; nelas, a carnavalização ganha novos sentidos e implicações, torna-se autoconsciente, um sinal da maturidade do gênero.
Quando chamado pela Multifilmes para dirigir duas produções, retorna às bases de imaginação melodramática em filmes como O Craque (1953) e Chamas no Cafezal (1954). Depois, como produtor independente, Burle se abre novamente para a comédia de costumes em Depois Eu Conto (1956) e para os números musicais em Quem Roubou Meu Samba (1959). No começo dos anos 1960, aqueles que sempre o haviam superado na fatura cômica, tais como Carlos Manga e Watson Macedo, eram agora vistos com desconfiança pelos cineastas do cinema novo. Burle, por outro lado, julga-se capaz de “soprar com o vento”. Ao assumir o posto de Ismar Porto (1931) na direção do filme Terra sem Deus (1964), ele se vê como o homem certo para revelar na película o Nordeste sertanejo que, supõe, conhece tão bem. Ali, enfim, realizaria sua obra maior [...]. O problema é que ninguém vê o filme, já que o lançamento de Vidas Secas (1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Os Fuzis (1964) precipita a querela entre antigos contra modernos. Pior, com o advento do Golpe de 1964, paira sobre o novo filme de Burle a pecha de obra comunista, devido ao seu apelo social.
Notas
1 Em meio à crise econômica mundial e às disputas internas pelo poder político e econômico, o presidente eleito, Júlio Prestes, é deposto. Getúlio Vargas assume a presidência do Brasil através de um golpe de estado.
2 Idealizado por Fenelon e redigido provavelmente pelo roteirista Alinor Azevedo (1914-1974), o documento conhecido como Manifesto da Atlântida é uma versão ampliada do Manifesto de Incorporação, publicado originalmente no Diário Oficial da União em 20 set. 1941.
3 Opinião partilhada, por exemplo, por Alex Viany na sua Introdução ao cinema brasileiro, de 1959.
4 AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 103
5 OTONI, Décio Vieira. Diário carioca, 8 fev. 1953. in: BARRO, Máximo. José Carlos Burle: o drama na chanchada. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. p. 243, 244.
Obras 1
Exposições 2
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26/10/2001 - 14/1/2000
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30/11/2003 - 2/3/2002
Fontes de pesquisa 12
- AUGUSTO, Sérgio. Este Mundo é Um Pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
- BARRO, Máximo. José Carlos Burle: drama na chanchada. São Paulo, Imprensa Oficial, 2007.
- BARRO, Máximo. Moacyr Fenelon e a Criação da Atlântida. São Paulo, SESC, 2001.
- BASTOS, Mônica Rugai. Tristezas Não Pagam Dívidas: cinema e política nos anos da Atlântida. São Paulo, Olho d’Água, 2001.
- CATANI, Afrânio M. & Souza, José I de Melo. A Chanchada no Cinema Brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1983.
- DEMASI, Domingos. Chanchadas e Dramalhões. Rio de Janeiro, Funarte, 2001.
- DIAS, Rosângela de Oliveira. Chanchada – cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Relume-Dumará, 1993.
- FERREIRA, Suzana Cristina de Souza. Cinema Carioca nos Anos 30 e 40: os filmes musicais na tela da cidade. São Paulo, Annablume, 2003.
- MANIFESTO DA ATLÂNTIDA. In: Estatutos da Atlântida. Rio de Janeiro, Tipografia Mercantil, 1942. Uma versão on-line está disponibilizada no catálogo virtual da exposição abaixo citada. Segue o link: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/atlantida/.
- RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000. p.74-75.
- ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
- VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro, Alhambra, 1987.
Como citar
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JOSÉ Carlos Burle.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa16931/jose-carlos-burle. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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