Iracema - Uma Transa Amazônica
Texto
Dirigido por Jorge Bodanzky (1942) e Orlando Senna (1940), é um documentário dramático, também chamado “docudrama”, que trabalha simultaneamente a linguagem documental e ficcional. Na origem dessa aventura cinematográfica na Amazônia, roteirizada por Senna, em coprodução com o canal alemão ZDF e reduzida equipe, está a ideia de Bodanzky de registrar o contexto da construção da rodovia BR-230, a famosa Transamazônica.
O projeto inacabado da rodovia de oito mil quilômetros é um dos mais ambiciosos do governo militar à época, peça fundamental de propaganda do regime para o chamado “milagre econômico”. Em função do quadro político de ditadura e do resultado da obra da rodovia, considerado desabonador pelos militares, o filme é censurado e só estreia no país em 1980.
A ousadia de Iracema não se limita ao desafio geográfico de filmar o ambiente da floresta que vive grande transformação e atrai todo tipo de interessado nas oportunidades da nova obra, como a exploração de madeira ou grilagem. O que torna o filme inovador é a narrativa, que mistura cenas realistas e de ficção, sem denotar onde estão umas e outras. Tal procedimento é conhecido como cinema direto e, naquele momento sobretudo, deve muito ao cineasta francês Jean Rouch (1917-2004), expoente do estilo denominado cinema-verdade. Para o ensaísta Ismail Xavier (1947), “Iracema é o exemplo lapidar de uma mistura de gêneros que desafia nossos hábitos de leitura, põe em cotejo premissas da ficção e do documentário clássicos, trabalhando com ironia a relação entre imagem e real, sem renunciar a uma busca de efeitos de verdade derivados da clareza com que expõe as regras de seu próprio jogo”1.
O jogo que Xavier chama de “efeito do real” pode ser detectado já na escolha dos protagonistas. Ator profissional, Paulo César Pereio (1940) interpreta o caminhoneiro gaúcho Tião Brasil Grande, apelido dado por seu apoio ao governo militar e à conhecida divisa patriótica. Iracema, no entanto, é interpretada por Edna de Cássia (1959), garota de 15 anos sem experiência de atuação e que nunca havia assistido a um filme até então2. O nome da personagem faz referência ao romance homônimo de José de Alencar (1829-1877) e ao nome preferido de prostitutas da região para exercer seu ofício. A Iracema do filme é uma indígena que chega a Belém do Pará para o Círio de Nazaré e passa a se prostituir. Tião, tipo malandro e debochado, está na cidade para carregar madeira. Conhecem-se e Iracema decide seguir com ele na viagem, para ao fim ser largada em um bordel de estrada. Conceição Senna (1937-2020), mulher de Orlando Senna, interpreta a dona do lugar e contribui para o figurino e na preparação da jovem Edna, o que dá ao projeto um aspecto de cooperativa.
Apesar da parceria alemã com o produtor Wolf Gauer (1941), conhecido de Bodanzky em projetos anteriores, a realização se dá com técnica modesta. O filme é rodado em Super-8 e 16mm e mais tarde ampliado para 35mm. Essa opção inicial confere agilidade, possibilitando captar entrevistas com anônimos e cenas do povo sem a presença intimidadora do grande maquinário de filmagem. Esse aspecto espontâneo é original na produção brasileira, como anota o crítico Carlos Alberto Mattos, em 2006: “Admirador de Jean Rouch, [...], Bodanzky transformou diálogos em entrevistas, gente de verdade em personagens, cenários reais em sets de filmagem não-invasiva, e colocou as convenções do road movie a serviço da denúncia social. A novidade [...] exerceu forte influência em muitos cineastas [...]. Passou-se a falar no gênero ‘semidocumentário’, denotando uma interação de linguagens que nunca mais deixaria de inspirar parcela significativa e avançada do nosso melhor cinema”3.
Uma cena emblemática compõe longa sequência a partir do momento em que Tião inicia a viagem com Iracema. Da boleia, enquanto o casal discute, vê-se a precariedade da rodovia de terra, a paisagem devastada e a nuvem de fumaça das queimadas ilegais. Na primeira parada, Tião compra lotes de madeira sem recibo, enquanto a jovem ouve da mulher do madeireiro a miséria ali com os filhos pequenos. Os diálogos de Tião com outros caminhoneiros, posseiros e pequenos comerciantes, oferecem retrato das agruras daquela população desvalida.
Se os militares se incomodam, a crítica e o circuito de festivais locais e internacionais respaldam a força do filme. Em 1975, na França, ganha o Prêmio Georges Sadoul, atribuído por críticos do país. No ano seguinte, recebe o Prêmio Jovem Cinema na seção Semana da Crítica do Festival de Cannes. Cinco anos depois, já liberado para exibição pela censura, Iracema vence quatro categorias no politizado Festival de Brasília, incluindo melhor filme e atriz para Edna de Cássia. A estreia nas salas ocorre em 1981. No Jornal do Brasil, o crítico José Carlos Avellar (1936-2016) analisa: “Iracema [é] um ponto de reflexão e do reflexo do próprio cinema brasileiro [...], o reflexo e a reflexão de toda aquela mentirosa ficção em torno da Transamazônica e de um país que ninguém era capaz de segurar”4. O próprio Jean Rouch, em 1983, comenta por ocasião de uma retrospectiva de Bodanzky na Cinemateca Francesa: “nós jamais nos esqueceremos dos amores reais ou imaginários de Iracema, a pequena prostituta indígena, e de um motorista de caminhão no inferno sinistro da rota transamazônica”5.
Em um regime de exceção da história brasileira, Iracema: uma transa amazônica confere conceito original ao modelo cinematográfico vigente e, com uma proposta híbrida de representação e realismo, contesta o falso retrato de desenvolvimentismo propagado pelo governo militar.
Notas
1. XAVIER, Ismail. Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro. Revista Devires, Belo Horizonte, v. 2, n. 1, p. 70, jan/dez. 2004.
2. SENNA, Orlando. Cinema e guerrilha. Revista Piauí, Rio de Janeiro, n. 180, set. 2021.
3. MATTOS, Carlos Alberto. Jorge Bodanzky: o homem com a câmera. São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 19.
4. AVELLAR, José Carlos. O Filme em Questão - Iracema. Jornal do Brasil - Caderno B, Rio de Janeiro, 3 abr. 1981, p. 11.
5. ROUCH, Jean. JORGE BODANZKY: cinéaste brésilien: une leçon de cinéma-direct qui vient d‘ Amazonie. La Cinémathèque Française. Paris, out. 1983.
Fontes de pesquisa 6
- CANBY, Vicent. Iracema, Victim of Brasil’s Amazon Policy. The New York Times, Nova York, 25 maio 1982. Seção C, p. 10. Disponível em: .https://www.nytimes.com/1982/05/25/movies/iracema-victim-of-brazil-s-amazon-policy.html/. Acesso em: 23 abr. 2022.
- CINEMATECA BRASILEIRA. Base de dados Filmografia Brasileira. Disponível em: https://bases.cinemateca.org.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/. Acesso em: 25 abr. 2022.
- ESCOREL, Eduardo. O documentário brasileiro: entre a ficção e a realidade. História Viva, v. 1, n. 9, p. 76-81, jul. 2004.
- HOULE, Jean-Sébastien. L’allégorie nationale à l’épreuve du cinéma: le cas d’Iracema. 2013. 131 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade de Montreal, Canadá, 2013. Disponível em: https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/bitstream/handle/1866/11583/Houle_Jean-Sebastien_2014_m%c3%a9moire.pdf?sequence=2&isAllowed=y/. Acesso em: 23 abr. 2022.
- RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000.
- SADOUL, Georges. Dicionário de filmes. Porto Alegre: L&PM, 1993.
Como citar
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IRACEMA - Uma Transa Amazônica.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra71378/iracema-uma-transa-amazonica. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7