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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

Dois irmãos

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 10.06.2020
2000
Segundo romance do escritor Milton Hatoum (1952), Dois Irmãos é publicado em 2000. A obra é resultado de mais de dez anos de trabalho de depuração literária. Dois Irmãos dá novos sentidos ao cenário característico da ficção de Milton Hatoum  – o mundo amazônico de Manaus – e ao drama vivido por uma família de imigrantes libaneses, cuja decadênci...

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Segundo romance do escritor Milton Hatoum (1952), Dois Irmãos é publicado em 2000. A obra é resultado de mais de dez anos de trabalho de depuração literária. Dois Irmãos dá novos sentidos ao cenário característico da ficção de Milton Hatoum  – o mundo amazônico de Manaus – e ao drama vivido por uma família de imigrantes libaneses, cuja decadência afetiva e material serve de roteiro para a criação da história. Trata-se da expressão madura do projeto iniciado pelo escritor manauara em Relato de um certo Oriente (1989), seu livro de estreia.

Dois Irmãos se constrói das “ruínas” desse universo, no qual o narrador-testemunha de Hatoum guarda familiaridade e, ao mesmo tempo, distância. Tem como matéria formal a memória e seus processos cognitivos, sua natureza ambígua, suas formas sensoriais de associação, e a reinvenção do passado – tempo com o qual o protagonista procura alguma unidade simbólica.

Distante das armadilhas do folhetim e do exotismo regionalista, Dois Irmãos cobre um leque temporal que vai do final da Segunda Guerra Mundial, passa pelos anos do desenvolvimentismo juscelinista e da construção de Brasília, até chegar à ditadura militar com o golpe de 1964, e à criação do polo industrial de Manaus. No entanto, à diferença do primeiro livro, Hatoum ameniza em Dois Irmãos o teor lírico e evocativo, para concentrar-se no jogo dramático entre as personagens, na objetividade da história e articulação da trama ao espaço romanesco. Esse arranjo permite ao escritor traçar com mais firmeza as transformações sociais e urbanas pelas quais passa a capital manauara, na sua incidência sobre o relato e as personagens da história. 

Dois Irmãos é narrado em primeira pessoa pela voz de Nael, que cresce no meio de uma família de imigrantes libaneses assentados em Manaus. No momento em que redige a história, Nael vive num pequeno cômodo do casarão onde um dia moraram Halim e Zana, o casal de patriarcas, e seus três filhos, Rânia e os gêmeos Yakub e Omar. Segundo o vocabulário local, Nael é um “curumim”, mestiço, filho da índia Domingas, empregada da família, com um dos gêmeos. Para montar seu relato, Nael reúne os depoimentos do patriarca Halim, as histórias que ouve de sua mãe, Domingas, as cenas que presencia vivendo na casa e outros retalhos de memória. O foco de seu relato é a turbulenta relação entre os gêmeos Yaqub e Omar, cujos conflitos acompanham o esfacelamento doméstico. À medida que assiste à ruína da casa, Nael tenta construir sua própria identidade, erguida com base nos conflitos e na dúvida, nunca resolvida, quanto à sua paternidade.

Longe de um arranjo melodramático, a narrativa se organiza pela mimetização do relato memorialista, sem o maniqueísmo e os arroubos dramáticos. O protagonista vale-se da memória, com as idas e vindas temporais e as incertezas e ambiguidades da narrativa. A imaginação cumpre papel fundamental ao preencher as lacunas e os vazios, como interpretar a experiência vivida pelas personagens. 

É em meio a esse terreno móvel que a história de Dois Irmãos se desenrola, em consonância com a duplicidade dos gestos das personagens, sobretudo dos gêmeos Omar e Yaqub, e com o lugar ocupado pelo narrador-bastardo. Este, ao mesmo tempo parte e “não-parte” da família, um “filho de ninguém” como se autodenomina – mestiço de pais cuja identidade cultural, ameríndia e branca, é tão diversa. O espaço romanesco descrito pelo protagonista, a Manaus entre as décadas de 1940 e 1960, em processo de transformação, reforça a atmosfera flutuante que marca a obra.

Dois Irmãos acrescenta novos capítulos à história da literatura brasileira moderna, ampliando seus temas. Parte importante de seu êxito repousa na coerência de dimensões e referências diversas: dos mitos arcaicos e bíblicos, passando pelo romance de Machado de Assis (1839-1908), Esaú e Jacó, e pelo diálogo com  monumentos da cultura do Oriente como As Mil e Uma Noites. Na contramão do pitoresco regional e do culto nacionalista à natureza exuberante da floresta, perspectiva marcante no relato dos viajantes e na ficção brasileira do século XIX, Hatoum reinventa em Dois Irmãos o “mundo amazônico”, agregando-lhe novos personagens e sentidos simbólicos. Apresenta uma visão original da história da imigração libanesa no país, do choque entre diferentes culturas e da modernização capitalista da cidade de Manaus. 

Distante das narrativas clássicas sobre o imigrante, nas quais o conflito tradicionalmente repousa na busca pela adaptação a um novo contexto, Dois Irmãos celebra outro tipo de experiência, mais próxima àquela descrita pelo crítico uruguaio Ángel Rama (1926-1983) como “transculturação” – processo pelo qual identidades culturais distintas combinam-se para formar uma nova realidade.

Fontes de pesquisa 6

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  • CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas – Edua/ Centro Universitário do Norte, 2007.
  • FREIRE, José Alonso Torres. Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço amazônico em romances de Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
  • HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • MELLO, Lucius de. Dois irmãos e seus precursores: o mito e a Bíblia na obra de Milton Hatoum. São Paulo: Humanitas: Fapesp, 2014.
  • PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Entrevista com Milton Hatoum. Intelligere: Revista de História Intelectual, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 2-10, 2016. Disponível em: http://revistas.usp.br/revistaintelligere/article/view/120279/118467. Acesso em: 10 nov. 2016
  • RAUDEL, Michel. Quando a ficção se recorda, quando o sentido passa a resistir. Novos Estudos, São Paulo,n. 84, p. 251-261, jul. 2009.

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