Relato de um certo Oriente
Texto
Análise
Relato de um Certo Oriente (1989) é o romance de estreia do escritor amazonense Milton Hatoum (1952). Ambientado em Manaus, traz o primeiro registro de questões centrais de seus romances, como as relações entre memória e coletividade e a construção da identidade do imigrante.
O Relato narra a história e os conflitos dos membros de uma família de imigrantes libaneses, centrada na figura da matriarca Emilie. Sua morte motiva a filha adotiva a voltar a Manaus, depois de anos distante, para registrar os depoimentos de pessoas cujo parentesco ou intimidade funcionam como índices inserção social. A memória volta-se para dois acontecimentos: primeiro, a morte prematura de Emir (irmão de Emilie), por suicídio. O fato remete as testemunhas ao passado e à sucessão migratória. Elas relatam as origens da família e os acontecimentos que antecedem a vida no Brasil. Segundo, a morte da neta surda-muda de Emilie, Soraya Ângela, filha bastarda de Samara Délia e razão de um cisma familiar. Com base nesse cisma, delineiam-se as tensões morais e religiosas do clã. O núcleo familiar é formado pela católica Emilie, o marido muçulmano e seus quatro filhos: Samara Délia, Hakim e os dois “inomináveis”, cujos modos indicam a intolerância, a hipocrisia e a amoralidade no seio familiar. Em torno deles, estabelece-se a comunidade heterogênea, composta por pessoas da terra, como a amiga Hindié Conceição e a empregada Anastácia Socorro, e estrangeiros, como o fotógrafo alemão Dorner.
A apresentação dos acontecimentos ocorre em forma de diálogo. Neles, a narradora – filha adotiva de Emilie – entra em contato com outros narradores, como Hakim e Hindié Conceição, ou dá voz a outras personagens, como Dorner e, por meio deste, ao marido de Emilie. A narrativa organizada por ela cobre praticamente um século. Seu posicionamento é anunciado no início e no fim do romance (conferindo-lhe caráter circular), a pedido do irmão, também adotado, por Emilie e residente em Barcelona. Durante esse período, pode-se acompanhar a chegada dos fundadores da família a Manaus no final do primeiro ciclo da borracha e a belle époque da cidade. Esta, remonta à loja de artigos finos A Parisiense, fonte de sustento da família e à formação e consolidação da Cidade Flutuante. Finalmente, chega-se à “praia de imundícies”, tempo presente da narrativa (fins da década de 1980), que apresenta uma cidade empobrecida na qual seus antigos protagonistas já não se reconhecem.
O desenvolvimento da narrativa implica mais do que a ampliação do horizonte histórico e social do romance. Identificando-se com as perspectivas dos personagens da história, a narrativa mescla-se a um tecido social em que se articulam testemunhos e identidade de cada envolvido. O relatório, tal como concebido pela narradora anônima, torna-se trama em que a memória – espaço da construção de si – surpreende-se com fantasmagorias. Nelas, explora-se o conflito temporal e geográfico. O deslocamento e o choque cultural que marcam as personagens somam-se à fatalidade do passado perdido. Isso ocorre pela consciência da discrepância entre público e privado, inerente à narrativa de Hakim, ou pelo total estranhamento ante a vida, como é o caso de Dorner. Além disso, a autora do relato passa pelo trabalho de invenção de si mesma a que se submetem os imigrantes no esforço de (re)construção de laços afetivos na cidade. Exemplos disso são a expansividade de Emilie, que promove a ascensão de sua empregada Anastácia Socorro à condição de agregada, e, no polo oposto, o fechamento do pai muçulmano na loja familiar. A relatora é internada pela mãe biológica numa casa de repouso em São Paulo, cidade em que vive, após uma crise nervosa. É flagrada, vagando no casarão comandado pela matriarca, buscando sentido no mosaico resultante de seu esforço de edição de notas e gravações.
Hatoum produz em Relato uma narrativa comprometida com um espaço e um modo de vida, associados à construção subjetiva e social das personagens. Pelas vozes que se enredam e lançam luzes umas sobre as outras, Hatoum recupera a ação individual e seu lugar numa coletividade da qual a construção narrativa é a grande metáfora.
Fontes de pesquisa 3
- CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois irmãos, Relato de um certo oriente e Cinzas do norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.
- GEBALY, Maged Talaat Mohamed Ahmed El. Mobilidades culturais e alteridades em Relato de um certo oriente e sua pré-tradução árabe. 2012. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
- MAQUÊA, Vera Lúcia da Rocha. Memórias inventadas: um estudo comparado entre 'Relato de um certo oriente', de Milton Hatoum e 'Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra', de Mia Couto. 2007. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
Como citar
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RELATO de um certo Oriente.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69171/relato-de-um-certo-oriente. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7