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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Cabaret Mineiro

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 20.05.2024
1980
O terceiro longa-metragem de Carlos Alberto Prates Correia (1941) faz uso de elementos cenográficos das cidades mineiras de Montes Claros, Contria e Grão Mogole. Também conta com a participação dos moradores como figurantes, que utilizam seu vestuário cotidiano. Com direção de fotografia de Murilo Salles (1950), é filmado durante 12 semanas e nã...

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O terceiro longa-metragem de Carlos Alberto Prates Correia (1941) faz uso de elementos cenográficos das cidades mineiras de Montes Claros, Contria e Grão Mogole. Também conta com a participação dos moradores como figurantes, que utilizam seu vestuário cotidiano. Com direção de fotografia de Murilo Salles (1950), é filmado durante 12 semanas e não obedece rigidamente ao roteiro, tentando atingir no instante da gravação a proposta de combinação da cultura erudita aos elementos da cultura popular e do modo de viver de uma antiga Minas Gerais. O resultado, na apresentação de Luciano Ramos, é uma ampla “colagem de sequências que possuem vida independente e se completam no todo da obra. Lembranças, sonhos, 'flashes' da realidade, ilustração de canções, poemas, cantos, brincadeiras, piadas e alegorias se aproximam para compor um vasto painel de sugestões cinematográficas”1.

Colagem, por sinal, é o termo mais utilizado pelos críticos na tentativa de descrever o filme, na medida em que a sua fragmentada narrativa alterna tempos históricos e se constrói por falas declamadas, cheias de trocadilhos, alusões e duplos sentidos, que se amplificam pelos trechos musicados e pelas músicas cantadas. A fotografia destaca os tons amarelos, vermelhos e azuis, repetindo os elementos de terra, fogo e água; e os ruídos e a sonoridade de trens e pássaros ampliam o espaço entrevisto. Algumas das situações, em imagens simbólicas nem sempre de fácil compreensão, são retiradas da declarada recordação familiar do cineasta (como o disco voador); outras, baseadas na literatura mineira, tais como o poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) que dá título ao filme; a visualização do conto de Guimarães Rosa (1908-1967) que o encerra; o memorialismo nostálgico de Pedro Nava (1903-1984) a fundamentar a “mineiridade”; e a poesia satírica e libertina de Bernardo Guimarães (1825-1884), que embala os amores do personagem central.

A despeito da fragmentação, existe uma sequencialidade a que o espectador procura se ater. O filme se inicia quando Paixão (Nelson Dantas, 1927-2006), uma espécie de viajante ou aventureiro, passa por uma modorrenta cidadezinha, onde mora seu compadre, para convidá-lo para um jogo de pôquer em Montes Claros. No trem que para lá o conduz, apaixona-se por Salinas (Tamara Taxman, 1947), que se insinua, se entrega e depois desaparece, deixando-o desolado. Em companhia de Tomaz (Helber Rangel, 1944-2002), o “americano”, provável organizador do jogo, acompanha a chegada de um grupo de lindas garotas em um táxi-aéreo. O “americano”, ora fantasiado de índio de faroeste, ora de espingarda na mão em traje de caçador, profere discursos sobre a necessidade de grandes investimentos para o agrobusiness do Cerrado. Durante uma partida, que já está perdida, Paixão tenta derrotá-lo com um “jeitinho”, propondo para o jogo o Cri-Cri, conforme as cartas que têm na mão, de pontuação superior ao Royal Straight Flush. Ao jogo de cartas se misturam orgias e, em meio às mulheres que o tentam e propõem segredos de alcova, Paixão mantém seu pensamento em Salinas. Tudo termina em um Carnaval lascivo.

Em seguida, ele sonha com a mulher desaparecida que, envolta em véus, faz uma dança erótica no meio da mata. Acorda embriagado numa paisagem desértica, ao lado de uma ninfeta nua (Dora Pellegrino, 1960), com quem experimenta o aroma do pequi e a quem assa e saboreia como se fosse índio antropófago. Ei-lo, então, no cabaré no qual se apresenta Avana (Tânia Alves, 1953), bela dançarina espanhola. Sem se importar com o amante dela, um guerrilheiro que declara sua crença na utopia, Paixão a seduz no camarim. Sucedem-se dias e noites de amor intenso no Paraíso de Avana, um lugar que resplandece de flores, pores-de-sol, minas d'água, cachoeiras e borboletas. No entanto, em meio a mulheres de bocas pintadas, pernas desnudas e colos à vista, Paixão parece entediado, recorda-se de Salinas e procura conforto em Maruja (Eliane Narduchi), a empregada da casa, que o atrai pelo óleo de peroba que lhe escorre pela perna e pelo feijão que fumega no fogão a lenha. Embora sinta ciúmes, Avana o perdoa. Numa ruína, Paixão parece encantado com Maruja, mas surge uma onça ameaçadora em corpo de mulher. Paixão atira contra ela e a mulher-onça, em um sussurro de agonia, evoca o nome do “americano”.

Uma grupo de marujada introduz o episódio final. Paixão, em voz “off”, narra sua identificação com um entristecido homem que, numa estação de trem, embarca a filha e a esposa para o isolamento em um hospício em Barbacena. O homem canta pesaroso a sua despedida, “adeus, minha senhora”, sobre a paisagem que o trem vai deixando para trás. É acolhido e confortado pelo grupo da marujada e, no prolongamento do tom melancólico, a citação a Guimarães Rosa, retirada do conto Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha, fecha o filme: “A gente, com ele, ia até onde ia aquela cantiga”.

O aparente indecifrável sentido do filme provoca uma dura crítica de Rubens Ewald Filho (1945): “Seria necessário que cada espectador recebesse na entrada um folheto explicativo com a sinopse para se descobrir certos detalhes obscuros, principalmente políticos”2. Já para Susana Schild, privilegiando o lado sensorial do filme, “algumas histórias são engraçadas, satíricas, outras já parecem não ter sentido, um clima de reminiscências com um forte colorido, o que pode encantar uns e incomodar outros (…), exigindo muito mais uma empatia emocional do que o acompanhamento racional de um pretenso desenvolvimento linear da narrativa”3.

Uma minuciosa análise de Manoel Rangel (1971) propõe uma ordenação na qual os fios condutores são “o inventário das ideias que tomaram o país ao longo das décadas, e a gradual submersão de Paixão na Minas Gerais mitológica, como se fosse […] um retorno que pressupõe ajuste de contas com cada movimento feito no passado, para que se possa entender ao fim sua opção”4. Significa dizer que o personagem central, ao fazer uma visita a Minas Gerais, perfila-se inicialmente aos propósitos cordiais do ocupante imperialista que oferece a organização de um capitalismo periférico subordinado aos interesses dos Estados Unidos, encanta-se depois pela superação colonial proposta pela utopia revolucionária dos anos 1960, e descobre-se, ao final, solitário como Sorôco, mas solidário aos dramas de sua gente e imbuído de todos os valores que permanecem intocados. O filme, em resumo, diante das transformações culturais, econômicas e políticas ocorridas principalmente a partir do golpe de 19645, procura reconstituir uma identidade primitiva que, por meio do mito, fornece os “instrumentos de resistência” à “descaracterização que o modelo de desenvolvimento adotado promove”6.

A essa interpretação política, Sérvulo Siqueira contrapõe uma visão mais psicológica e observa

a promessa contida em delirantes visões de fantásticos prazeres, em mulheres ideais saídas do sonho e da fantasia, em miríficas paisagens paradisíacas inventadas por um jogador de pôquer (…), sem cacife para grandes lances contra os jogadores estrangeiros, e cuja única perspectiva será a constante busca da mulher ideal, além dos pequenos golpes da sorte.7

No lançamento, o cineasta, contrário a qualquer interpretação redutora, prefere destacar a recepção positiva da plateia de jovens, “talvez porque não tenham uma mentalidade organizada para receber um discurso já conhecido e planejado”. Para ele, tem maior importância “o que vive em nossa mente [e] aparece em qualquer lugar. E o que não se encontra dentro de nossa cabeça não existe em lugar nenhum”8.

Ganhador dos prêmios de melhor fotografia e melhor trilha sonora no Festival de Brasília de 1980, Cabaret Mineiro sai como o grande vencedor do Festival de Gramado do ano seguinte nas categorias de melhor filme, diretor, ator, fotografia, trilha sonora, montagem e atriz coadjuvante (Tânia Alves, 1953).

Notas

1 RAMOS, Luciano. Folha de S.Paulo, 30 mar. 1981, p. 21.

2 EWALD FILHO, Rubens. O Estado de S. Paulo, 11 abr. 1981.

3 SCHILD, Suzana. Jornal do Brasil, 19 mai. 1981.

4 RANGEL, Manoel. Balalaica, n. 1, 1997, p. 66.

5 A ditadura militar se instaura em 1º de abril de 1964 e permanece até 15 de março de 1985. Os direitos políticos dos cidadãos são cassados e os dissidentes perseguidos.

6 RANGEL, Manoel. Balalaica, n. 1, 1997, p. 77.

7 SIQUEIRA, Sérvulo. Filme Cultura, n. 40, p. 88.

8 Citado por NEWLANDS, Lilian. Jornal do Brasil, Revista do Domingo, n. 253, fev. 1980, p. 11.

Fontes de pesquisa 7

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  • EWALD FILHO, Rubens. Hermetismos oníricos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 abr. 1981. p. 19
  • NEWLANDS, Lilian. Delírios de um cabaré à mineira. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Revista do Domingo, n. 253, fev. 1980. p. 10-11
  • PRESS-release do filme. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1981. [Documento D 611/22, do acervo da Cinemateca Brasileira; depoimento do cineasta reproduzido em Framework, London, n. 28, 1985.]. p. 87-90
  • RAMOS, Luciano. A realidade fragmentada de Cabaret Mineiro. Folha de S.Paulo, São Paulo, 30 mar. 1981. p. 21
  • RANGEL, Manoel. A rua de baixo: análise do filme Cabaret Mineiro, de Carlos Alberto Prates Correia. Balalaica, São Paulo, n. 1, 1997. p. 64-78
  • SCHILD, Suzana. Reminiscências mineiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 mai. 1981, Caderno B. p. 9
  • SIQUEIRA, Sérvulo. Cabaret Mineiro. Filme Cultura, Rio de Janeiro, v. 15, n. 40, ago.-out. 1982. [Reproduzido em: Framework, London, n. 28, 1985. p. 87-89 , p. 90-93

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